sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Afeganistão: “De uma cidade bombardeada”

Gareth Porter

Afegãos disputam com EUA as condições de sua (dos afegãos) destruição

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
  
Kandahar. O comandante das Forças EUA-OTAN no sul do Afeganistão, major-general James Terry, disse mês passado que as casas destruídas pelos soldados dos EUA em três distritos da província de Kandahar, como parte da Operação “Ataque do Dragão” em outubro e novembro “estavam abandonadas, desertas e tomadas por engenhosos arranjos de explosivos”.

Mas em entrevista com InterPress Services no local da vila destruída de Tarok Kalache, onde agora nada há, além de uma planície empoeirada, com apenas alguns pomares, ex-residentes desmentem esse relato das circunstâncias em que a vila onde residiam foi destruída.

Os residentes dizem que não acreditam que suas casas tenham sido tomadas pelos Talibãs e convertidas em ninho de explosivos e que, mesmo depois que evacuaram as casas, agricultores que viviam na região continuaram a cuidar de suas hortas na e em torno da parte da vila onde estavam as casas, até que a destruição começou.

A partir do dia 6 de outubro, a vila de Tarok Kalache foi sistematicamente bombardeada por aviões e foguetes de longo alcance norte-americanos e afegãos, que espalharam bombas de explosão retardada por toda a vila, como conta Paula Broadwell. Sua narrativa da destruição da vila, baseada em fontes militares dos EUA foi publicada no blog do militar e escritor Thomas Ricks e em sua própria página do Facebook em janeiro.

Broadwell, que trabalha numa biografia do general David Petraeus, escreveu que a vila também foi coberta com Mine Clearing Line Charges [1], que destrói tudo e abre uma trilha larga o suficiente para deixar passar um tanque.

Moradores contaram a IPS que o terreno da vila foi depois nivelado, porque as bombas abriram crateras que tiveram de ser aterradas e niveladas. Disseram a operação estendeu-se por um mês.

Baseada em relatórios de fontes militares dos EUA, Broadwell diz em sua página que os moradores da vila não foram, de fato, deslocados por causa da ofensiva dos EUA. Que os Talibãs “pagaram ao Malik [chefe da vila] em junho-julho, para que se mudassem dali”, e os moradores obedeceram, “entendendo que assim ‘vendiam’ a vila aos Talibãs (...)”.

Moradores de Tarok Kalache disseram a IPS que começaram a deixar a vila quando os Talibãs começaram a disputar a vila com soldados dos EUA, mas que os Talibãs permitiam que os moradores voltassem para cuidar das casas, dos jardins e pomares dentro e em torno da vila; até que começaram os ataques dos norte-americanos.

Haji-Dawoud Shah, morador de Tarok Kalache cuja casa foi destruída por soldados dos EUA, com as demais 36 casas da vila, disse em entrevista que ele e outros só começaram a deixar a vila no final de agosto, quando os Talibãs começaram a instalar dispositivos explosivos, preparando-se para a batalha. “Percebemos que, mais dia menos dia, as mulheres e crianças seriam mortas pelas bombas de uns ou de outros, ou em combates”, disse ele.

Mas disse que os moradores voltaram várias vezes à vila, vindos de Kandahar, a poucos quilômetros de distância, para cuidar dos pomares e “encarregaram agricultores que viviam nos arredores, de tomar conta dos jardins”.

Outro residente da cidade, Nik Muhammad, 40, confirmou que a população local tinha autorização para vir à vila, mesmo depois de terem deixado as casas, porque os Talibãs abriram trilhas seguras pelas quais os moradores locais podiam andar, para cuidar dos pomares e jardins.

Muhammad disse que os Talibãs permitiram que agricultores e outras pessoas cuidassem das propriedades e, para isso, que usassem algumas trilhas que, normalmente, os Talibãs mantinham minadas entre as 9h e as 16h.

Explicou que os Talibãs desenvolveram alta capacidade para ligar e desligar seus explosivos, procedimento que implica remover e reinstalar baterias nos explosivos que fabricam e enterram. Depois das 16h, contou ele, os Talibãs repõem as baterias nos explosivos enterrados e deixam-nos preparados para detonar.

Haji-Abdul Qayoum, 52, de uma vila próxima, Khisrow Ulla, confirmou que os Talibãs respeitam o acordo que têm com os agricultores locais. Quando os Talibãs percebem que há patrulha dos EUA por perto, nas horas liberadas para os aldeões, eles avisam, para que a área seja evacuada, e rapidamente religam os explosivos. Têm havido casos de pessoas que não são avisadas a tempo e que são feridas pelos explosivos dos Talibã, disse ele.

Especialistas em IEDs [ing. Improvised Explosive Device, aprox. “engenhos explosivos feitos em casa”] da organização Joint IED Defeat Organization (JIEDDO) no Departamento de Defesa dos EUA dizem que nunca ouviram falar de IEDs à bateria no Afeganistão, segundo a porta-voz da JIEDDO Irene Smith. Mas em e-mail para o InterPress Service, Smith diz que os Talibãs usam, sim, IEDs comandados por rádio e ligados por fios, e que os dois tipos, mesmo enterrados, podem ser ativados e desativados.

Um morador de Tarok Kalache, Dad Gul, 60, contou ao IPS que foi levado de volta à vila reduzida a pó por soldados do Exército Nacional afegão e dos EUA, 10 dias depois de concluída a Operação “Ataque do Dragão”. Os soldados lhe contaram que sua casa fora destruída por explosivo dos Talibãs; quando chegaram ao local onde estivera sua casa, os americanos apontaram um objeto semidestruído no chão e disseram “Aí está a bomba”.

“Era minha panela de pressão” – disse Gul. “Apanhei e mostrei a eles. Não é bomba. É minha panela!”  

Gul disse que é possível que houvesse explosivos em outras casas, “mas nada aconteceu como os americanos estão contando”.

Um dos soldados do Exército afegão que assistia à entrevista com três moradores da vila comentou que “Os Talibãs plantavam seus IEDs em algumas casas, e os norte-americanos destruíram as casas por isso. Mas o povo aqui diz que não havia IEDs em todas as casas que os norte-americanos bombardearam”.

Apesar de 250 trabalhadores que vivem nas vilas trabalharem hoje em projetos financiados pelos EUA, ainda não há qualquer projeto de reconstrução das 36 casas que havia na vila, embora já se tenha iniciado o trabalho de reconstrução da mesquita.

Hajji Abdul Hamid, ancião que vivia em Tarok Kalache, controu a IPS que lhe ofereceram dinheiro para reconstruir cinco das 14 casas de sua propriedade que havia na vila, e que o terreno das outras nove casas está sendo usado para uma Base de Operação Avançada dos EUA no local; disse que espera receber o pagamento que lhe foi prometido pelo aluguel desses terrenos.

Hamid declarou-se “feliz com esse negócio, desde que cumpram o que prometeram”. Mas acrescentou que “Nem eles confiam em nós, nem nós confiamos neles e duvido que os americanos cumpram o que prometeram”.

Mesmo que cumpram, os proprietários receberão menos de 50% do que tinham em Tarok Kalache, disse Hamid. Disse que, até aqui, só 1% dos que viviam ali já receberam qualquer compensação. Acredita que as queixas dos moradores ainda se repetirão por muito tempo.

“Vai demorar para que as pessoas confiem nos americanos a ponto de se prestarem a trabalhar como informantes sobre os movimentos da resistência nessa área”, disse Hamid.

Outro ancião de Tarok Kalache, Hajji Shah Wali, disse que “ninguém pode aproximar-se muito dos norte-americanos”, porque os norte-americanos desconfiam que todos os que vivem aqui sejam simpatizantes dos Talibãs.

A questão que preocupa todos esses moradores dessa região é se os Talibãs voltarão na primavera. “Se aparecerem, ninguém por aqui estará seguro e todos terão medo de ajudar os norte-americanos”, disse Wali.

Nik Muhammad disse que teme que os americanos só ajudarão a reconstruir as casas em Tarok Kalache de moradores que concordem em trabalhar contra os Talibãs.

“Podemos ajudar os americanos, mas não podemos desafiar os Talibãs”, disse ele. “Se os americanos e o governo afegão decidirem obrigar os moradores a armar-se contra os Talibãs, não acredito que alguém aceite trabalhar com os americanos”. 

Nota de tradução
[1] MCLC, que se diz “mick lick”, é usada para criar uma brecha em campos minados. Há vários tipos, mas o tipo básico consiste de várias cargas explosivas interconectadas, lançadas sobre campo minado. As cargas MCLC explodem e fazem explodir também as minas, com o que se abre uma trilha razoavelmente segura para a passagem de tropas de infantaria. Há modelos portáteis e modelos montados em veículos (mais sobre isso em: Mine-clearing line charge  .

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