Venezuela: Discurso radical e percurso conciliador
17.Fev.11 :: Outros autores
“Depois das eleições legislativas do passado dia 26 de Setembro terem conferido uma exígua maioria simples de votos aos candidatos do PSUV e aliados, a reação de Chávez foi a de «radicalizar» o discurso oficial com o objetivo de calar as vozes críticas que podiam surgir nas suas fileiras.” Será suficiente?
Desde há muito tempo, duas facções aparentemente inconciliáveis polarizam a vida política venezuelana: o oficialismo, que se apropriou das bandeiras do anti-imperialismo e da revolução socialista, e a oposição de direita, que embora recobrindo o seu discurso com a defesa das liberdades e da democracia não passa em última instância de representação política da oligarquia local e dos seus amos imperialistas. É sem dúvida difícil fazer-se uma ideia cabal da realidade venezuelana no meio da feroz e permanente campanha de propaganda lançada por ambas as partes.
Sem dúvida que o principal acontecimento dos últimos meses foi a emergência por chuvas desencadeada pelas inundações de fins de 2010, que deixou dezenas de vítimas mortais e 130.000 atingidos. A intervenção do governo bolivariano foi enérgica e eficaz e impediu que se repetissem na Venezuela as trágicas perdas que se deram na vizinha Colômbia. Contudo, a emergência por chuvas pôs a claro o drama por detrás do «déficit habitacional» venezuelano, que, longe de se reduzir durante a última década, aumentou até aos dois milhões de lares.
A concentração de infra-habituações [«ranchos» ou «cerros») torna-se especialmente preocupante na zona da grande Caracas, onde a aglomeração humana origina inúmeros problemas de viabilidade, insegurança, acumulação de lixo e ameaça de colapso dos sistemas de transporte público, pese embora os importantes investimentos realizados nos últimos anos. As medidas que de momento o governo bolivariano está a tomar para atacar o grave problema da habitação são de natureza parcial (expropriação de terrenos urbanos abandonados, projetos de construção de 150.000 habitações em 2011 com a ajuda de empresas de construção estrangeiras…) e não vão ao fundo do problema, a necessidade de descongestionar a região central através do desenvolvimento de projetos produtivos e habitacionais no resto do vasto e escassamente povoado país. Uma primeira e muito necessária medida neste sentido seria descentralizar toda uma série de instituições estatais atualmente sediadas em Caracas.
Depois das eleições legislativas do passado dia 26 de Setembro terem conferido uma exígua maioria simples de votos aos candidatos do PSUV e aliados, a reação de Chávez foi a de «radicalizar» o discurso oficial com o objetivo de calar as vozes críticas que podiam surgir nas suas fileiras. Uma de tais medidas radicais foi a eleição de Fernando Soto Rojas, ex-guerrilheiro e esquerdista de largo currículo, como presidente da nova Assembleia Nacional. Sem dúvida que Soto Rojas e a sua equipe saberão responder adequadamente à demagogia dos deputados da oposição na Assembleia Nacional, mas o que se espera deles é a elaboração de toda uma série de leis progressistas que permitam manter a Venezuela na vanguarda dos processos de transformação no continente.
Especialmente necessárias são a derrogação e substituição dos elementos de legislação reacionária que inexplicavelmente ainda subsistem na Venezuela, 12 anos depois de iniciado o processo bolivariano. Referimo-nos à renovação da lei orgânica do trabalho (LOT) herdada da IV República, à despenalização do aborto ou ao reconhecimento dos direitos civis do coletivo LGBT, entre outras.
Outro sinal de radicalização parece ser a aceleração das expropriações de empresas por parte do governo bolivariano durante os últimos meses de 2010 (sobretudo nos setores petroquímico e agro-alimentar). No entanto, estas novas expropriações seguiram o curso normal dos últimos anos, tanto pelo seu caráter parcial (expropriam-se empresas individuais e não setores econômicos, o que facilitaria muito ao Estado uma planificação à margem do mercado), como pelo pagamento de indenizações a preços de mercado. Em qualquer caso, o ponto central nas indústrias estatais venezuelanas é a aplicação de um verdadeiro controle operário sobre as mesmas, pois só deste modo as nacionalizações começarão a adquirir um verdadeiro caráter anticapitalista.
No entanto, a realidade é que o governo bolivariano empreendeu um percurso conciliador, tratando de evitar as medidas impopulares que poderiam provocar um conflito com um ou outro setor social. Não se pode compreender de outro modo a retirada por parte de Chávez da anunciada subida do IVA (motivada talvez pelos efeitos do “gasolinazo” de Evo Morales na Bolívia), ou o veto de Chávez à nova lei das universidades (na medida em que ia democratizar o acesso e o governo universitários, iria sem dúvida encontrar forte resistência na sua aplicação por parte das elites acadêmicas vinculadas à burguesia). Igualmente nesta linha se deve entender a oferta de Chávez de encurtar o tempo da lei habilitante, devolvendo-a ao Parlamento para o 1º de Maio (oferta que parece não ir concretizar-se, sendo provável que a lei habilitante que concede poderes legislativos especiais ao presidente da República se prolongue pelos 18 meses inicialmente previstos; episódio este que, no entanto, exemplifica o caráter sumamente discricionário com que Chávez exerce o poder).
Certamente Chávez não considerou adequado vetar muitas outras leis que a última Assembleia Nacional aprovou com alguma urgência durante os últimos meses de 2010 antes de a chegada dos deputados opositores acabar com o virtual monopólio legislativo com o qual o oficialismo tinha contado durante cinco anos. Tal inclui diversas leis para fortalecer o controle governamental sobre os conteúdos da Internet ou o financiamento de organizações políticas e sociais ou uma lei anti-transfugas idealizada especificamente para perseguir a dissidência no grupo parlamentar do PSUV.
A Venezuela fechou o ano de 2010 com uma situação econômica nada risonha, combinando uma queda do PIB com uma elevadíssima taxa de inflação (27,1%). A vasta rede de subsídios e serviços sociais levantada pelo governo bolivariano (um feito de grande envergadura para um país da periferia capitalista) é cada vez mais difícil de manter, uma vez que o modelo de desenvolvimento aplicado nesta última década (baseado na extração de hidrocarbonetos, na diversificação das relações comerciais no quadro do mercado capitalista mundial e num projeto desenvolvimentista ligado à constituição de empresas mistas com potências estrangeiras) não incrementa o tecido produtivo do país, tremendamente dependente das importações.
Como resultado de tudo isso, o Estado venezuelano apresenta certos problemas de liquidez, o que explica a drástica desvalorização do bolívar no início de 2010, consolidada no início de 2011 com a subida do tipo de câmbio para alimentos e medicamentos a 4,3 bolívares por dólar. Se a isto juntarmos o projeto de um orçamento organicamente deficitário (baseado num preço do barril de petróleo de apenas 40 dólares), que exige a aprovação constante de «créditos adicionais» para o pagamento de todo o tipo de despesas ordinárias (como os salários dos funcionários públicos), dão-se casos bastante generalizados de paralisia do funcionamento das instituições venezuelanas, tanto em nível nacional, como nos estados e municípios.
É um lugar comum da propaganda oficial comparar as estatísticas atuais com as da IV República para justificar os êxitos do governo e é óbvio que o forte desenvolvimento econômico e social desta última década contrasta vivamente com a catástrofe neoliberal dos anos 90. Contudo, um projeto político que pretende (re)construir a unidade latino-americana enquanto se emancipa do jugo imperialista e avança para «o socialismo do século XXI» não deveria olhar-se ao espelho dos números do corrupto, servil e ineficiente Estado da quarta república, mas antes no das crescentes necessidades sociais do povo trabalhador venezuelano, que graças ao próprio processo bolivariano são hoje muito maiores do que no ano de 1998.
De frente para o futuro, o conjunto da vida política venezuelana parece encarar-se nas eleições presidenciais de 2012. Nesta perspectiva, vai reconstituir-se ao longo deste ano o Pólo Patriótico. Esta poderia ser uma excelente oportunidade para reativar as lutas sociais e ampliar a influência do bloco bolivariano a novos sectores sociais, ou pelo contrário converter-se numa desculpa organizativa para continuar a dispersar as bases revolucionárias e aumentar o domínio da burocracia em novas esferas. O objetivo declarado parece ser a salvaguarda e renovação da liderança de Chávez, mas este não pode converter-se num fim em si mesmo, sob pena de esvaziar de conteúdo o processo bolivariano.
Este texto foi publicado em Rebelión: Entre la radicalidad del discurso y la realidad de un curso conciliador
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