domingo, 27 de fevereiro de 2011

O ocidente não soube buscar a democracia árabe onde ela sobreviveu


25/2/2011, McCormick (do Cairo) e Geoff Curfman (de Londres), Policymic
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


É possível que analistas ocidentais tenham ficado mais chocados com a resposta de Saif al-Islam Qaddafi à violência que tomou conta da Líbia essa semana, do que, diretamente, com a violência? Seja como for, a crise de culpas e desculpas começou, de fato, depois que o jovem Gadaffi foi à televisão líbia e anunciou que o regime de seu pai combateria a oposição “até a última bala”.

“O homem que fez aquele discurso não é o Saif que cheguei a conhecer bem ao longo de vários anos” – disse David Held, orientador da tese de Saif al-Islam na London School of Economics (LSE). “Conheci um homem cada vez mais liberal em seus valores, comprometido com reformas e transparência no governo.”[1]

A London School of Economics, por sua vez, passou os últimos vários dias tentando separar-se do suposto reformador modernizador da Líbia, que presenteou a instituição, logo depois da formatura, com uma doação de 1,5 milhão de libras. “Nas difíceis circunstâncias atuais, a LSE decidiu suspender todo aquele programa” – disse a instituição, sobre o programa financiado com a doação de Gaddafi.

Como poderiam ter adivinhado?! Refinado, eloqüente, aparentemente liberal, Saif al-Islam foi, em vários sentidos, a encarnação das esperanças ocidentais para a democratização do mundo árabe.

É autor de dois livros sobre a sociedade civil (agora sob risco de desaparecerem no triturador de papel da Oxford University Press), e sua organização Fundação Gadaffi Internacional de Caridade e Desenvolvimento tinha o compromisso – pelo menos até bem recentemente – de promover os direitos humanos e a liberdade de imprensa. Além disso, o jovem Gaddafi várias vezes clamou por uma Constituição, clamores que só foram superados, em prestígio, quando começou a trabalhar para deslocar a Líbia, do rol dos “rogue States”, para os braços da comunidade internacional. Como o embaixador otomano Sadik Rifat Pasha, que voltou de Viena em 1837 pregando reformas que incluíam “direitos de liberdade”, Saif al-Islam seria a prova viva de que a simples exposição a ideias ocidentais e à educação ocidental dos ‘líderes’, bastaria para promover reformas políticas completas.

A cumplicidade de Gaddafi Filho na violência que desaba hoje sobre o povo líbio expõe a óbvia fragilidade dessas ideias. E, de fato, outro “reformador ocidentalizante” Gamal Mubarak – também mostrou sua verdadeira face na Revolução Egípcia. Cada dia mais, a ideia de que o ocidente poderia promover a democracia no Oriente Médio, na África, na América do Sul, apenas com ensinar “On Liberty” às elites milionárias locais aparece como de fato é: tolice, nonsense.

Se a torrente que agora avança pelo Oriente Médio já ensinou alguma coisa, é que as pessoas comuns desejam democracia – tema que, acreditem ou não, já foi discutido em círculos acadêmicos – e que massas qualificadas e desempregadas podem criar força poderosa a favor de reformas. Talvez o aspecto mais surpreendente dos protestos que derrubaram as ditaduras do Egito e da Tunísia, e agora avançam para derrubar também os regimes da Líbia, Bahrain, Iêmen e Jordânia, é a escala gigantesca das manifestações. A Revolução Francesa foi feita por apenas 2% da população. As revoluções árabes de 2011 trouxeram número imenso de pessoas para as ruas, um corte transversal na população e na sociedade.

No Egito, estimativas do número de participantes nas manifestações de rua são de 10-20% dos 80 milhões de habitantes do país. Estimativa do jornal israelense Haaretz calcula que havia, só na praça Tahrir, cerca de 1 milhão de pessoas, um dia antes da queda de Mubarak. No Bahrain, Sarah Topol, de Slate.com estima que 100 mil, dos 500 mil habitantes do país saíram às ruas. São números sem precedentes, que mostram mudança como jamais se viu no pensamento regional.

Refletindo um pouco sobre os protestos no Egito há apenas poucas semanas, vê-se uma interessante capacidade de organização, nos grupos que iniciaram, orientaram e mantiveram a revolução. Longe de ser reação compulsiva aos eventos na Tunísia, os protestos da praça Tahrir no Egito foram resultado de planejamento complexo por, dentre outros, o grupo “6 de abril” , criado em resposta à prisão de grevistas pacíficos em El-Mahalla El-Kubra.

Membros desse grupo mantiveram contato ao longo de vários anos com o grupo “Otpor”, de jovens sérvios, que ajudou a iniciar uma revolução pacífica e bem sucedida em 2000, contra Slobodan Milosevic. Embora tenham optado por conduzir as coisas a seu modo, os membros do movimento “6 de abril” aproveitaram várias dos instrumentos e conceitos estratégicos dos companheiros sérvios.

Além de outras manobras táticas inteligentes, o grupo priorizou a derrubada de Mubarak, antes de qualquer democratização; tivessem feito o contrário, deixariam abertas as portas para que o regime respondesse com reformas políticas que tradicionalmente são conservadoras, ou absolutamente vazias. Essa capacidade de organizar-se na rua, mais a participação dos movimentos militantes para identificar possíveis candidatos para as futuras eleições, mostra bem que os movimentos querem, mesmo, reestruturar o governo egípcio, não apenas alguma qualquer ‘democratização’ sempre tão ampla quanto vaga.

O ocidente, que investiu suas esperanças em déspotas só pressupostos iluminados, como Saif al-Islam ou Gamal Mubarak, que seriam os encarregados de conduzir as reformas em seus respectivos países, parece quase cego, se se consideram os acontecimentos correntes no Oriente Médio e norte da África. Um movimento democrático organizou-se no próprio mundo árabe, com pequena contribuição das platitudes ditas teóricas de ocidentais carregados de MBAs e de PhDs – e, com certeza, sem qualquer necessidade dela.


É verdade que a Líbia ainda enfrentará um duro período de lutas internas. E que o Egito – há muito tempo controlado pelos militares – ainda está longe de qualquer tranqüilidade democrática, mas ninguém mais poderá ignorar, como até agora, demandas simples de participação democrática e vida digna, que soam também naqueles países.

Enfeitiçados por cosmopolitanismo, secularismo que mal disfarça a islamofobia, ternos elegantes e abotoaduras de ouro, analistas ocidentais não souberam identificar – até que os viram nas ruas – os agentes mais ativos e bem sucedidos do avanço da democracia no mundo árabe e no mundo muçulmano.

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor Filho)


    Prefiro dizer, não quis buscar. Aliás, essa coisa de democracia, no Ocidente mesmo, anda bastante fajuta, sobre pervertida.

    Abraços do
    ArnaC

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