9/6/2012
– Universidade
Nômade
Enviado
pelo pessoal da Vila
Vudu
Entreouvido
na Vila Vudu:
“O
mano espiou desconfiado pra ele porém Macunaíma disfarçou
bem:
–
Olhe, tem paca tatu cotia... Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatu,
cotia não. Jiguê emprenhava pelas oiças mesmo, foi logo pegando na espingarda e
falou:
–
Então vou porém mano jura primeiro que não brinca com minha
obrigação.”
[Mario
de Andrade, Macunaíma [1928], XIII: “A
piolhenta do Jiguê”
Distribuímos
o manifesto que aí vai, não porque concordemos com o que aí está escrito. De
fato, concordamos apenas com uma ou duas coisas ou meias-coisas das que aí vão
manifestas. E absolutamente não nos identificamos com o que aí se manifesta.
Mas, macunaímicos, a gente aqui aprende muito, só de brincar coa obrigação
dozôtro.
No
geral, a gente aqui não gosta de manifestos. Manifestos são declarações
identitárias de identidades.
Ninguém
precisa de adesão identitária a identidades. “Manifesto Nômade” é, de fato,
contradição em termos: se ‘manifesta-se’ em manifesto é porque se identificou,
quer ser da turma ou quer arregimentar gente; mas, se se identificou, parou; se
parou, não é nômade, é identitário, fixo, paradão.
“Tatu
ou não tatu”, tampouco dá muito certo. Ah, o abiiiiiismo das palavras! Melhor
seria “tá tu e tu num tá”.
NADA,
nesse mundão, é mais difícil do que parodiar Oswald de Andrade. Porque Oswald é
brilhante e raso como pires com água: se se sacode muito, joga-se fora a água e
babaus o brilho. Oswald falava do ser à moda udenista-comunista erudito-fuleira
– mais ou menos o que Machado de Assis também fez, com menos comunismo e com
mais solidariedade com os pretos e pobres, e com mais gênio. Oswald não falava
de cavar mais, ou menos, nem para dentro nem para fora, que não era hômi de
cavá, era flanêur.
E nômade, claro.
Nesse
manifesto há um empenho de seduzir adeptos, que nos faz fugir dele. Se nos
querem alinhados, não podemos segui-los [risos, risos e saudades do
Arnaldo!]
Divulgamos
esse manifesto com o mesmo ânimo e pelas mesmas razões com o qual e pelas quais
divulgamos o discurso do presidente Assad, ou do presidente Gaddafi ou do
guru-máster da Al-Qaeda, ou do Ahmadinejad e tudo que os Anonymous escrevam: porque os nômades “Tatu or
not tatu” – como a Al-Qaeda, o Assad, o
Gaddafi ou os Anonymous e uns poucos,
outros, raríssimos, – NÃO SÃO TÃO PERFEITAMENTE TOLOS nem são TÃO PERFEITAMENTE
REACIONÁRIOS como há quem suponha e diga e repita MUUUUUUUITO, que eles seriam.
E há saberes revolucionários que só esses aí (e mais alguns, raríssimos) têm,
mesmo, à vera, e que a gente aqui, na Vila Vudu, ainda precisa
aprender.
Mas,
sim, sim, tá na cara: quem “deseja tudo” é a burguesia. Os pobres queremos
comida, casa, paz. Os pobres nunca queremos “tudo”. Sabe-se lá, sim, se não
estamos é muuuuito errados, nisso. Sabe-se lá. Mas “tudo”, os pobres sabemos não
desejar.
É
o tal negócio: a natureza é linda, o rio é lindo, a barragem é feia. Mas a
barragem FICA. E os eco-éticos que continuem a linda luta deles. OK. Mas a
barragem FICA.
Então,
aí vai. É ler e, como faz o Macunaíma, despachado o marido Jiguê, mergulhar nas
delícias piolhentas da mulher dele.
A
palavra revolução voltou a circular. Nas ruas, nas praças, na internet, e até
mesmo nas páginas de jornal, que a olha com olhos temerosos. Mas,
principalmente, em nossos espíritos e corpos. Da mesma maneira, a palavra
capitalismo saiu de sua invisibilidade: já não nos domina como dominava.
Assistimos ao final de um ciclo – o ciclo neoliberal implementado a partir dos
anos 80, mas cujo ápice se deu com a queda do muro de Berlim e o consenso global
em torno da expansão planetária do mercado.
Muitos
dentre nós (principalmente os jovens) experimentam seu primeiro deslocamento
massivo das placas tectônicas da história.
Mas
nossa era não é apenas crepuscular.
Ao
fim de um ciclo abrem-se amplas oportunidades, e cabe a nós transformar a crise
da representação e do capitalismo cognitivo em novas formas de democracia
absoluta. Para além das esferas formais, dos Estados e nacionalidades. Para além
do capitalismo financeiro e flexível. Lá onde brilha nossa singularidade comum:
a mulher, o negro, o índio, o amarelo, o pobre, o explorado, o precário, o
haitiano, o boliviano, o imigrante, o favelado, o trabalhador intelectual e
manual. Não se trata de um recitar de excluídos, mas de uma nova inclusão
híbrida. A terra, enfim, nossa. Nós que somos produzidos por esta chuva, esta
precipitação de encontros de singularidades em que nos fazemos divinos nesta
terra.
É
pelo que clama a multidão na Grécia, na Espanha e os occupy espalhados
pelos Estados Unidos; é pelo que clamam as radicalidades presentes na primavera
árabe, esta multidão situada para além da racionalidade ... contiocidental. É o mesmo
arco que une a primavera árabe, as lutas dos estudantes no Chile e as lutas pela
radicalização da democracia no Brasil. Nossas diferenças é o que nos torna
fortes.
A
luta pela mestiçagem racial, simbólica, cultural e financeira passa pela
materialidade do cotidiano, pela afirmação de uma longa marcha que junte nossa
potência de êxodo e nossa potência constituinte. Acontecimento é o nome que nos
anima para o êxodo perpétuo das formas de exploração. Êxodo para dentro da
terra. Fidelidade à terra. Tatu or
not tatu.
É
preciso ouvir em nós aquele desejo que vai para além da vida e da sua
conservação: para além do grande terror de uma vida de merda que nos impõe o
estado de precariedade e desfiliação extrema. É preciso re-insuflar o grito que
nos foi roubado à noite, resistir aos clichês que somos e que querem fazer de
nós: para além de nossas linhas de subjetivação suspensas entre o luxo excedente
do 1% ou do lixo supérfluo dos 99%.
É
preciso não precisar de mais nada, a não ser de nossa coragem, nosso intelecto e
nossos corpos, que hoje se espraiam nas redes de conhecimentos comuns apontando
para nossa autonomia. Somos maiores do que pensamos e desejamos tudo.
Não
estamos sozinhos!
É
preciso resistir na alegria, algo que o poder dominador da melancolia é incapaz
de roubar. Quando o sujeito deixa de ser mero consumidor-passivo para produzir
ecologias. Um corpo de vozes fala através de nós, porque a crise não é apenas do
capital, mas sim do viver. Uma profunda crise antropológica. Manifesta-se no
esvaziamento de corpos constrangidos, envergonhados, refletidos na tela da TV,
sem se expandir para ganhar as ruas. Nossos corpos paralisam, sentem medo,
paranóia: o outro vira o grande inimigo. Não criam novos modos de vida.
Permanecem em um estado de vidaMenosvida: trabalho, casa, trem,
ônibus, trabalho, casa.
A
vida individual é uma abstração. Uma vida sem compartilhamento afetivo, onde a
geração do comum se torna impossível. É preciso criar desvios para uma vidaMaisvida: sobrevida, supervida, overvida. Pausa para sentir parte do
acontecimento, que é a vida. Somos singularidades cooperativas. Pertencemos a
uma esfera que nos atravessa e nos constrói a todo o momento.
O
capitalismo cognitivo e financeiro instaura um perpétuo estado de exceção que
busca continuamente reintegrar e modular a normalidade e a diferença: lei e
desordem coincidem dentro de uma mesma conservação das desigualdades que produz
e reproduz as identidades do poder: o “Precário” sem direitos, o Imigrante
“ilegal”, o “Velho” abandonado, o “Operário” obediente, a “Mulher” subjugada, a
“Esposa” dócil, o “Negro” criminalizado e, enfim, o “Depressivo” a ser
medicalizado. As vidas dos pobres e dos excluídos passam a ser mobilizadas
enquanto tais. Ao mesmo tempo em que precisam gerar valor econômico, mantêm-se
politicamente impotentes.
O
pobre e o louco. O pobre – figura agora híbrida e modulada de inclusão e
exclusão da cadeia do capital - persiste no cru da vida, até usando seu próprio
corpo como moeda. E o louco, essa figura que vive fora da história, “escolhe” a
exclusão. Esse sujeito que se recusa a produzir, vive sem lugar. Onde a questão
de exclusão e inclusão é diluída no delírio. Ninguém delira sozinho, delira-se o
mundo. Esses dois personagens vivem e sobrevivem à margem, mas a margem
transbordou e virou centro.
O
capital passa a procurar valor na subjetividade e nas formas de vida das margens
e a potência dos sem-dar-lucro passa a compor o sintoma do capital: a crise da
lei do valor, o capitalismo cognitivo como crise do capitalismo.
A
crise dos contratos subprimes em 2007, alastrando-se para a crise da
dívida soberana europeia, já não deixa dúvidas: a forma atual de governabilidade
é a crise perpétua, repassada como sacrifício para os elos fragilizados do arco
social.
Austeridade,
cortes, desmonte do welfare, xenofobia, racismo. Por detrás dos ternos
cinza dos tecnocratas pós-ideológicos ressurgem as velhas bandeiras do biopoder:
o dinheiro volta a ter rosto, cor, e não lhe faltam ideias sobre como governar:
“que o Mercado seja louvado”, “In God we
trust”.
O
discurso neutro da racionalidade econômica é obrigado a mostrar-se em praça
pública, convocando o mundo a dobrar-se ao novo consenso, sem mais respeitar
sequer a formalidade da democracia parlamentar. Eis o homo œconomicus:
sacrifício, nação, trabalho, capital! É contra este estado de sítio que as redes
e a ruas se insurgem. Nas mobilizações autoconvocadas em redes, nas praças das
acampadas, a exceção aparece como criatividade do comum, o comum das
singularidades que cooperam entre si.
No
Brasil são muitos os que ainda se sentem protegidos diante da crise global. O
consenso (neo) desenvolvimentista produzido em torno do crescimento econômico e
da construção de uma nova classe média consumidora cria barreiras artificiais
que distorcem nossa visão da topologia da crise: a crise do capitalismo mundial
é, imediatamente, crise do capitalismo brasileiro.
Não
nos interessa que o Brasil ensine ao mundo, junto à China, uma nova velha forma
de capitalismo autoritário baseado no acordo entre Estados e grandes
corporações!
O
governo Lula, a partir das cotas, do Prouni, da política cultural (cultura viva,
pontos de cultura) e da distribuição de renda (programas sociais, bolsa família,
valorização do salário mínimo) pôde apontar, em sua polivalência característica,
para algo que muitos no mundo, hoje, reivindicam: uma nova esquerda, para além
dos partidos e Estados (sem excluí-los).
Uma
esquerda que se inflame dos movimentos constituintes que nascem do solo das
lutas, e reverta o Estado e o mercado em nomes do comum.
Uma
esquerda que só pode acontecer “nessa de todos nós latino-amarga América”.
Mais
do que simples medidas governamentais, nestas políticas intersticiais, algo de
um acontecimento histórico teve um mínimo de vazão: aqueles que viveram e
morreram por transformações, os espectros das revoluções passadas e futuras,
convergiram na construção incipiente de nossa emancipação educacional, racial,
cultural e econômica.
Uma
nova memória e um novo futuro constituíram-se num presente que resistira ao
assassinato simbólico da história perpetrado pelo neoliberalismo.
A
popularidade dos governos Lula tinha como lastro esses interstícios onde a
política se tornava uma poética.
Já
hoje, nas taxas de aprovação do governo Dilma, podemos facilmente reconhecer
também as cores deslavadas de um consenso prosaico. O “país rico” agora
pacifica-se no mantra desenvolvimentista, retrocedendo em muitas das políticas
que tinham vazado. Voltam as velhas injunções progressistas: crescimento
econômico para redistribuir! Estado forte!
As
nuvens ideológicas trazem as águas carregadas do gerencialismo e do
funcionalismo tecnocrático: menos política, mais eficiência! Desta maneira,
removem-se e expropriam-se os pobres: seja em nome de um Brasil Maior e se seu
interesse “público” (Belo Monte, Jirau, Vila Autódromo), seja em nome de um
Mercado cada vez Maior e de seu interesse “privado” (Pinheirinho, TKCSA, Porto
do Açu).
Juntando-se
entusiasticamente às equações do mercado, os tratores do progresso varrem a
sujeira na construção de um novo “País Rico (e) sem pobreza”. Os pobres e as
florestas, as formas de vida que resistem e persistem, se tornam sujeira.
A
catástrofe ambiental (das florestas e das metrópoles) e cultural (dos índios e
dos pobres) é assim pacificada sob o nome do progresso. Dominação do homem e da
natureza conjugam-se num pacto fáustico presidido por nenhum Mefistófeles, por
nenhuma crise de consciência: já somos o país do futuro!
Na
política de crescer exponencialmente, só se pensa em eletricidade e esqueceu-se
a democracia (os Soviets: Conselhos).
Assim, governa-se segundo a férrea lógica – única e autoritária – da
racionalidade capitalista. Ataca-se enfim a renda vergonhosa dos “banquiplenos”, mas a baixa dos juros vai
para engordar os produtores de carros, essas máquinas sagradas de produção de
individualismo, em nome da moral do trabalho.
Dessa
maneira, progredir significa, na realidade, regredir: regressão política como
acontece na gestão autoritária das revoltas dos operários das barragens;
regressão econômica e biológica, como acontece com uma expansão das fronteiras
agrícolas que serra a duração das relações entre cultura e natureza; regressão
da vida urbana, com a remoção de milhares de pobres para abrir o caminho dos
megaeventos; regressão da política da cultura viva, em favorecimento das velhas
oligarquias e das novas indústrias culturais.
O
progresso que nos interessa não contém nenhuma hierarquia de valor, ele é
concreta transformação qualitativa, “culturmorfologia”.
Este
é o imaginário moderno em que a dicotomia prevalece: corpo e alma, natureza e
cultura, nós e os outros; cada macaco no seu galho! Estes conceitos resultam em
uma visão do mundo que distancia o homem da ecologia e de si mesmo. O que está
em questão é a maneira de viver no planeta daqui em diante. É preciso encontrar
caminhos para reconciliar estes mundos. Perceber outras configurações
relacionais mais móveis, ativar sensibilidades. Fazer dessa revolução um grande
caldeirão de desejos que crie formas de cooperação e modos de intercâmbio,
recombine e componha novas práticas e perspectivas: mundos. Uma mestiçagem
generalizada: nossa cultura é nossa economia e nosso ambiente é nossa cultura:
três ecologias!
As
lutas da primavera Árabe, do 15M Espanhol, do Occupy Wall Street e do #ocupabrasil
gritam por transformação, aonde a base comum que somos nos lança para além do
estado de exceção econômico: uma dívida infinita que busca manipular nossos
corações e manter-nos acorrentados aos medos. Uma dívida infinita que instaura a
perpétua transferência de renda dos 99% dos devedores ao 1% dos credores. Não
deixemos que tomem por nós a decisão sobre o que queremos!
A
rede Universidade Nômade se formou há mais de dez anos, entre as mobilizações de
Seattle e Gênova, os Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre e a insurreição
Argentina de 2001 contra o neoliberalismo. Foram dois momentos constituintes: o
manifesto inicial que chamava pela nomadização das relações de poder/saber,
com base nas lutas dos pré-vestibulares comunitários para negros e pobres (em
prol da política de cotas raciais e da democratização do acesso ao ensino
superior); e o manifesto de 2005 pela radicalização democrática.
Hoje,
a Universidade Nômade acontece novamente: seu Kairòs (o aqui e agora) é aquele
do capitalismo global como crise.
Na
época da mobilização de toda a vida dentro da acumulação capitalista, o
capitalismo se apresenta como crise e a crise como expropriação do comum,
destruição do comum da terra.
Governa-se
a vida: a catástrofe financeira e ambiental é o fato de um controle que precisa
separar a vida de si mesma e opõe a barragem aos índios e ribeirinhos de Belo
Monte, as obras aos operários, os megaeventos aos favelados e aos pobres em
geral, a dívida aos direitos, a cultura à natureza. Não há nenhum determinismo,
nenhuma crise terminal.
O
capital não tem limites, a não ser aqueles que as lutas sabem e podem construir.
A
rede Universidade Nômade é um espaço de pesquisa e militância, para pensar as
brechas e os interstícios onde se articulam as lutas que determinam esses
limites do capital e se abrem ao possível: pelo reconhecimento das dimensões
produtivas da vida através da renda universal, pela radicalização democrática
através da produção de novas instituições do comum, para além da dialética entre
público e privado, pelo ressurgimento da natureza como produção da diferença,
como luta e biopolítica de fabricação de corpos pós-econômicos.
Corpos
atravessados pela antropofagia dos modernistas, pelas cosmologias ameríndias,
pelos êxodos quilombolas, pelas lutas dos sem teto, sem terra, precários,
índios, negros, mulheres e hackers:
por aqueles que esboçam outras formas de viver, mais potentes, mais vivas.
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