terça-feira, 26 de junho de 2012

Miró, o poeta que não aparece em “Febre do Rato”



Enviado em 26/06/2012 por Urariano Motta

“Eu fiquei bastante triste por Cláudio Assis não o ter colocado no filme Febre do Rato. Eu disse a ele que era uma injustiça”, falou Zizo, citando Miró, poeta marginal, que inspirou o filme mas não aparece na tela. (Dos jornais de 22 de junho de 2012)

Senhores e senhoras, temos a grata satisfação de falar sobre Miró. Sobre ele é quase inútil procurar informações no Google, porque entre os 47.000.000 resultados no máximo 4 se referem ao particular Miró que lhes apresento agora.

De nome de batismo João Flávio Cordeiro da Silva, o poeta Miró nasceu no Recife há 52 anos. Mas nada do seu nome artístico vem do mais conhecido, o grande, um certo criador Joan, da convivência de João Cabral de Melo Neto. Não. Esse Miró, esse nome nobre… – e já sinto no ventre a cutilada do poeta – “todo nome é nobre” – essa denominação vem de outras plagas nobres. Vem de lá dos subúrbios do Recife. João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube.

No tempo em que o maior talento de João Flávio era o futebol, os seus amigos o apelidaram de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal “o” aberta na fala nordestina.

Depois, na fase em que assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, ele achou por bem continuar assim, Miró, para melhor sorrir no íntimo com os dentes claros, diante de quem o confunde com o pintor catalão.

Em um mundo globalizado conforme a ótica WASP (White, Anglo-Saxon Protestant), Miró é um acúmulo de surpresas.

Pois imaginem as senhoras ladies e os senhores gentlemen que ele é um poeta que jamais entrou na universidade. Pelo menos, para assistir a lições como estudante universitário, nunca. E, continuem a imaginar, isso lhe faz nenhuma falta, devíamos mesmo dizer, para a sua poesia é um bem, porque lê e se educa em obediência a uma ordem que não está no currículo de uma tradição estéril.

A quem não o conhece, a sua pessoa, física, guarda uma grata e grada graça: Miró tem a pele escura, e, ladies and gentlemen, não finjam, por favor, naturalidade. Mesmo em um povo mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma estranha gradação na cor da pele da sua sensibilidade. Quanto mais claros, mais poetas. Quanto mais escuros, mais trabalhadores braçais, ou, se forem artistas, mais jogadores de futebol.

Daí que faz sentido o poeta Miró vir de Mirobaldo, o craque do Santa Cruz Futebol Clube. Pero a melhor surpresa de Miró vem da sua poesia. Acompanhem-nos, por favor, assim como já o acompanhamos em um auditório de teatro.

Todos nós aprendemos, ou fomos como bons estúpidos para isso educados, que o poema realiza a poesia nas suas linhas. Ou, se quiserem, o poema não precisa da pessoa do poeta – a certeza única e exclusiva do seu valor está no que escreve. Certo? Senhores e senhoras, ladies and gentlemen, senõres y señoras: – Errado.

Quem não viu Miró declamar os seus poemas não sabe o quanto esse conceito, preconceito, esta burrice ancestral está errada. Aquela justa observação feita por Manuel Bandeira à poesia de Ascenso Ferreira, no trecho:

“Não me lembro se antes de me avistar pela primeira vez com Ascenso Ferreira eu já tinha conhecimento dos seus versos. Como quer que fosse, eles foram para mim, na voz do poeta, uma revelação. Pois quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor” aplica-se também à poesia de Miró. Com alguns câmbios.

Mirem. Onde Ascenso Ferreira realizava no recitar um uso extraordinário da voz, da modulação ao acento, do corte da sílaba à ênfase, como dizê-lo?, uma utilização da voz como um ator de rádio, (“Ascenso tinha a voz de Deus”, na lembrança do escritor Talis Andrade), Miró usa a imagem, física, melhor dizendo, ele usa o próprio corpo, ele faz evoluções pelo auditório, como um cantor de RaP (Rhythm and Poetry), quase diríamos. Mas sem microfone.

E não só.

Ele acrescenta caretas, esbugalha os olhos, fecha-os, e aponta os seus versos com um dedo contra a assistência. Como um Tio Sam invertido, que em vez de conclamar um alistamento, nos enfiasse a realidade cara a dentro:

- Tomem poesia, seus filhos da puta!

A plateia, divertida, sorri, gargalha, diante de versos que não chegam a ser bem cômicos. Como aqui:

“Tinha lido num livro de autoajuda, de um
desses psicólogos
De araque, que aparecem nesses
programas matinais que dão
Receitas pra tudo, inclusive de bolo,
Que na hora que a vida vira uma merda
O melhor é sair da fossa”.
Ou nestes versos
“Acho que foi a primeira vez que conheci a dor
Um domingo de 1971
Naquele tempo o domingo era o dia mais
feliz,
Minha mãe fazia um macarrão com carne de
lata e Q-suco
Ficávamos brincando de mostrar a língua
vermelha
Pra provar que éramos felizes….
Norma era tão linda com seus cabelos
negros,
Que me deu um branco aos 11 anos
Quando me pediu um biscoito maizena e um
gole de fratele vita ….
Domingo era o dia mais feliz
Antes de Norma beijar um outro na boca”.

A plateia, o distinto público, vai ao delírio. De rir, de gargalhar. Miró fala de um mundo abaixo do nível social do auditório.

O primeiro elemento cômico é que a miséria é cômica. A maior comicidade é a desgraça que não sentimos na própria pele. A dor que não é a nossa, a dor pela qual não temos empatia, ah, ladies and gentlemen, como é cômica.

Não iremos consultar nada agora, mas em algum lugar deve estar observado que o riso é manifestação pela desgraça alheia. O riso atesta a nossa superioridade ante o ridículo que não nos alcança.

Quem jamais bebeu “sucos” em pacotinhos de pó, de “morango”, de “uva”, com açúcar e gelo, como bebem os que não podem comprar frutas em um país tropical, acha isso irresistivelmente cômico.

Quem jamais saboreou carne enlatada no país de maior rebanho bovino do mundo, quem jamais pôde sentir o sabor, o gosto e a maravilha da carne Swift, da carne da Wilson, com macarrão rubro de colorau aos domingos, porra, que piada genial é esse macarrão se transformar no dia da felicidade.

E aquela prova de amor, da cumplicidade que tem o amor, quando a musa pede refrigerante, guaraná da Frattelli Vita, com o biscoito miserável de maisena. Caralho, esse cara é do peru! E Norma beija um outro, mirem o detalhe, na boca! na boca! Menos, por favor, você é demais, cara!

O poeta gira em torno da assistência.

A sua arma, a sua graça e cômico é a verdade.

Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si.

Mais do que escrever por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o inobservável.

“Já perceberam como tem pontas de
cigarro em pontos de ônibus?
Tem uma tese de um amigo que diz:
Que as empresas de ônibus são
responsáveis por 5% dos cânceres de
pulmão.
Curioso perguntei, como assim?
É que os ônibus demoram”.
Ou mesmo, vejam que engraçado:
“O amor passou na tarde
Com a mão direita sobre o ombro de um
filho com síndrome de Down  …
Aldeota, um jumento espera inquieto a
volta do seu dono que foi tomar uma
sopinha com pão, com o dinheiro das
migalhas que catou.
E eu fiquei tão emocionado,
Que não consegui escrever mais nada”.

A recepção da plateia a essas coisas é vê-las apenas como o lado sujo, trash, de uma estética suja e trash, de um maluco que escreve e não tem nenhuma vergonha de escrever sobre essa miséria como um bárbaro sem educação. (Nós, os cultos. Nós, os que, se algum dia fomos dessa desgraça, bem que a superamos. Nós, os de outro mundo. Nós, os limpos, cleans e educados).

O poeta gira, e deixa a aparência, como um bom gira, de fazer também uma rotação. Então ele declama, recita, pula, contorce-se, cospe e pragueja uns versos que a expectativa do distinto e cultíssimo público não percebe.

O clima em torno da sua performance não permite a degustação, a permanência que tem a beleza, a que sempre por necessidade voltamos.

Então ele fala, enquanto o público espera dar mais uma risada, então ele faz uma prece, um poema que somente hoje pela manhã pude sentir, ao ler e mastigar e ruminar como as cabras mastigam e ruminam uma erva muito amarga.

Este poema não precisa do poeta. Da sua pessoa. Basta uma sensibilidade.

“Deus, Tu que agora carregas um homem,
Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns
sacos de cimento
De cada lado um sol insuportável …
Deus,
Choves agora no meu coração
Para que eu não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas
E fazer justiça com as próprias mãos.”

Esses versos preencheram toda esta manhã de hoje.

Dormiram e não saíram do peito todo este dia. Talvez porque nos tenham recordado de outro João, de Os corações futuristas, que pleno de álcool em 1973 também se sentiu impotente e louco por justiça.

Deus, choves agora no meu coração
Para que eu não pense em comprar um
guarda-chuvas de balas

Senhoras e senhores, assim é Miró, o poeta que não apareceu no filme Febre do Rato.

Olhem:


O livro de Urariano Motta publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (e-book) por R$10,00. Para comprar, clique aqui ou aqui.

Urariano Motta* é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). 

Um comentário:

  1. Miró, o Balaio de Gato e o Poesia Descalça deseja a você uma longa vida.

    Miró, poetizando para o mundo!!!!

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