12/5/2012, Toni Negri, Uninomade em aula proferida na Universidade
de Oxford, Museu Ashmolean
5/6/2012, Uninomade, Toni Negri em: “Riflessioni
amichevoli nella crisi attuale. Testo pedagógico” (italiano)
5/6/2012, Uninomade, Toni Negri em: “Reflexiones
amistosas sobre la crisis actual. Texto pedagógico” (em espanhol
traduzido por nemoniente)
Traduzido para o português pelo
pessoal da Vila
Vudu
Toni Negri |
1. Os homens
pelos quais sinto certa simpatia bateram-se, na Europa, no século 20, em torno
de três objetivos: pelo socialismo, contra o fascismo; por uma Europa unida
contra o estado-nação; pela paz, contra a guerra. Os dois primeiros objetivos
parecem estar sendo fortemente ensombrecidos na crise atual, e as lutas que se
desenvolvem em torno deles têm resultado incerto – e os resultados das lutas
travadas, estão esquecidos, ou em crise. Ainda há paz, mas tão ameaçada!
2. O socialismo
afirmou-se na Rússia em 1917. A vitória local e a expansão
ideológica do socialismo deram origem ao cerco contra a URSS pelas potências
ocidentais provocaram, primeiro, os fascismos (na Itália, na Alemanha, na
Espanha, etc.) e, depois, a Guerra Fria, para manter a URSS isolada, fora do
mundo. Nem a grande crise de 1929 conseguiu abalar essa política das elites
capitalistas e liberais. Mas aceitaram o keynesismo como política de contenção
“reformista” das lutas e da expansão política do socialismo.
Já nos finais dos anos 1930s e,
outra vez, depois dos 70s, cada vez que o “reformismo” afirmava-se e alcançava
objetivos importantes, as elites capitalistas repetiam experimentos
reacionários, às vezes escolhendo a repressão, às vezes preferindo a guerra
(seja quente seja fria). Depois da II Guerra Mundial, os governos, obrigados a
abandonar os impérios coloniais e a transferir a soberania imperial aos Estados,
passam a articular de outro modo as suas políticas internas, sempre em sentido
reacionário ou reformista: o objetivo é sempre ganhar a Guerra Fria. O ódio
antissocialista impunha-se acima de qualquer outro objetivo. Como a Igreja do
Baixo Renascimento contra as revoltas camponesas e anabatistas, assim também agiram os
estados capitalistas contra os trabalhadores e o socialismo: cedendo seu poder
ao império norte-americano, todos os estados capitalistas ao mesmo tempo.
3. Sabemos que o
socialismo soviético não perdeu sua batalha por causa dos golpes do adversário,
mas porque, desde o início, não conseguiu suscitar um movimento triunfante na
Europa; nem foi capaz de, afinal, produzir qualquer transformação social e
política continuada, na medida em que se foi expressando a potência produtiva do
próprio socialismo. Não é a primeira vez que um Hércules menino é afogado no
berço pela serpente. Depois do 1917, soviéticos e liberais europeus
compreenderam que a batalha pelo êxito do socialismo se trava na Europa. Então,
nos anos 1920s e 30s, o fascismo e as expressões mais extremadas dos diferentes
nacionalismos opuseram-se ao socialismo. Depois da IIa. Guerra Mundial, a
burguesia europeia finge içar as bandeiras da paz e da União sobre as quais até
agora sempre tripudiaram. O ideal de uma Europa unida traz, como bandeira, a
oposição à URSS. O império norte-americano exige que a Europa se unifique, em
pauta antissoviética.
Mas quando, depois de
1989, a
Europa começa a constituir-se independentemente, desenvolvendo economia potente
e modelo social autônomo, impondo sua própria moeda e apresentando-se como
concorrente e como alternativa aos EUA no mercado mundial... Então os EUA
manifestam-se contra a unidade europeia. E abre-se sobre o terreno europeu a
luta de classes: entre a classe capitalista recomposta no plano global e as
multidões europeias: luta fria, mas decisiva, suficiente para originar a
profundíssima crise econômica e social de hoje.
Esta crise, que surge da
fracassada solução encaminhada para a crise que a precedeu, em 2008-2009,
constrói-se e atira-se contra a união política da Europa.
Castigada por essa crise, a Europa
não encontra nem pode encontrar soluções ou alternativas na ordem neoliberal.
Os EUA – que veem perdida sua
hegemonia – pressionam a Europa, para não se verem, os próprios EUA envolvidos
em novos antagonismos imperiais.
4. Para além dos
estados-nação, a classe capitalista se recompôs no plano mundial, graças à
crise. E é nesse plano mundial que, explorando as novas tecnologias, a classe
capitalista pôs em funcionamento um novo processo de “acumulação primitiva”
sobre a base da transformação pós-industrial do trabalho, que se torna, cada vez
mais, “trabalho de conhecimento” [dito também, erradamente, “trabalho
cognitivo”].
Portanto, essa acumulação
produz-se a partir da privatização e da organização produtiva do General Intellect [inteligência geral].
Entendo por General Intellect
[inteligência geral] o conjunto da força de trabalho de/para o conhecimento, que
substituiu, na geração de mais-valia, a classe operária industrial; e que é hoje
explorada em todo o terreno social.
O próprio capitalismo modifica-se
de modo fundamental: agora, são as finanças que recompõem, no plano mundial, o
mando do capital. A banca e as finanças dominam hoje, acima de empresários e
inovadores, nas indústrias: a renda substitui o lucro. Os processos produtivos
são assim transformados. Sobre a produção fordista, na fábrica, sobrepõe-se a
organização pós-fordista da exploração de toda a sociedade e a captação,
mediante mecanismos financeiros, da mais-valia (socialmente produzida).
Com essa profunda transformação da
acumulação capitalista, forma-se também uma nova prática política: a governança
neoliberal.
Com essa prática, as elites
capitalistas pretendem, por um lado, destruir o Estado de Bem-estar da classe
operária industrial, que veem como corpo estranho, como o vestígio de um soviete
dentro de sua própria casa de elite capitalista; e, por outro lado, o capital
tenta organizar a exploração da sociedade inteira, submetendo ao seu domínio
toda a vida das pessoas; o capital, agora, como “biopoder”, quer dominar todo o
movimento biopolítico.
Assim, mediante sucessivas crises
fiscais, são destruídas as relações de força entre as classes sociais que ainda
caracterizavam a sociedade fordista; atacando-se qualquer relativo progresso
econômico e as estruturas constitucionais que, dentro de cada Estado-nação,
haviam garantido, depois da IIa. Guerra Mundial, a paz social e certo
“reformaísmo” político.
Nessas condições de crise, a
unidade europeia – cujo ideal e cujas primeiras realizações haviam gerado
bem-estar e certo equilíbrio continental – não só está sendo violentamente
atacada como, também, está completamente sobredeterminada por uma vontade de
poder capitalista reorganizada no plano global, que já não apoia as resistências
que ainda se organizam nos antigos estados soberanos.
5. É oportuno
reconhecer que não há resistência possível senão no plano global, mundial.
E,precisamente nesse ponto, a paz está sob grave ameaça.
O interesse capitalista tenta
impedir o fluxo de iniciativas subversivas para, seja como for, conseguir
ampliar seus grandes espaços geográficos continentais. O interesse dos
oprimidos, portanto, é organizar resistências e antagonismos também no plano
global.
A inesperada derrota dos EUA na
América Latina revelou-se importante, mas não decisiva. Na Ásia e no Extremo
Oriente, as tensões sociais e políticas parecem por hora contidas – nos vastos
atrasos de desenvolvimento e nos desequilíbrios econômicos. A África ainda está
nos primeiros movimentos de uma nova grande luta que se iniciará a qualquer
momento, não se sabe quando, na qual se disputará a exploração da riqueza das
terras da África.
Por sua vez, na grande zona em
crise – que vai do Atlântico aos países árabes, atravessando o Mediterrâneo – é,
exatamente, onde a paz corre maior perigo. Aí, a especificidade da cultura e do
desenvolvimento europeus entrou em crise, muito provavelmente, terminal. A
sucessão de esforços e as derrotas militares nas guerras globais; a extensão
inútil dos chamamentos à Cruzada que tanto se ouviram nos anos 90s e depois
deles mostraram, simplesmente, a miséria e a impotências das políticas
implantadas pela classe política capitalista euro-norte-americana.
Só uma radical transformação das
elites, só a generalização e a adesão ao projeto de unidade europeia das
multidões permitiria modificar esta situação, e dar, talvez, às classes
trabalhadoras europeias a possibilidade de renovar um projeto socialista potente
– na Europa, onde o socialismo nasceu. Até agora, não teve sucesso: o capital
tem conseguido sufocar todos os movimentos.
Mas, nesses últimos anos, as novas
gerações começaram a mover-se, a lutar contra as novas formas de miséria, de
precariedade, de pobreza a que foram submetidas. Indignadas, as novas gerações
levantam-se, praticando novas figuras de insubordinação e de luta. Desta vez, o
jovem Hércules pode matar a serpente.
6. Relançando o
projeto europeu pela esquerda, insistimos no fato de que, para manter a paz, é
necessário outra vez criar e assegurar o bem-estar. Nos perguntamos se o capital
ainda pode fazer isto. A resposta é necessariamente negativa. Efetivamente, o
empreendedor foi substituído, nos tempos recentes, pelo capitalista financeiro;
o lucro foi substituído pela renda; o banco substituiu a fábrica: multiplicam-se
as funções e comportamentos parasitários.
As crises sucedem-se, porque já
não há qualquer medida de valorização. E porque, como consequência disso, a
especulação é a única forma restante de acumulação. Mas se o capitalista é hoje
alheio à organização da sociedade, se perdeu a dignidade que lhe permitia
organizar o trabalho, antecipar o capital constante e tornar os mercados
inteligentes e criativos, sob seu comando... como poderá o capitalista criar e
assegurar bem-estar e progresso?
Parece-nos que essa síntese de
bem-estar e progresso só pode ser hoje construída pela “nova” força de trabalho,
por aquela força de trabalho que, porque é força de conhecimento [“capitalismo
cognitivo”], pode tomar autonomamente em suas mãos a própria produção. É a força
de trabalho que opera mediante as linguagens, os conhecimentos, os afetos – que
produz ao distribuir em comum o saber - agregando elementos singulares de
comunicação. Assim a nova força de trabalho produz o excedente, a riqueza, que
se chamava “mais-valia”.
Mas perguntemo-nos se esse
produzir-junto (conhecimentos, códigos, informações, afetos) não será mais bem
designado se o chamarmos pelo nome “o comum”? Se se fala do “comum”, não se fala
só da riqueza já disponível na natureza (como o ar, a água, os frutos da terra e
todos os demais dons da própria natureza); falamos, isso sim, especialmente, das
novas formas de produção de riqueza, da atual composição social e política das
forças imateriais do trabalho e da potência vinda da subjetividade. E é contra
essa potência que, hoje, o capital aplica seu instinto vampírico: contra as
potências do comum, sem as quais, na nossa época, a riqueza não é possível.
7. O que
significaria hoje construir um soviete, quer dizer, levar a luta, a força
subversiva, a multidão, o “comum” para dentro e contra a nova realidade das
novas organizações totalitárias do dinheiro e das finanças?
Para responder essa pergunta, é
preciso ter presente que o capital não é um Moloch; o capital é uma “relação de
força” entre quem comanda e quem resiste, entre quem explora e quem produz. A
multidão não é simplesmente explorada: ela propõe no plano social a sua
autonomia e a sua resistência. Sobre essa relação, determina-se a crise, quer
dizer, o debilitamento e/ou a ruptura da relação capitalista.
A crise atual deve-se à
necessidade capitalista de impedir que a pressão sobre a renda rompa as relações
de domínio, para manter a ordem, primeiro multiplicando sem limites a quantidade
de dinheiro a gastar com o único propósito de manter contentes os proletários do
conhecimento, depois (quando a situação piorar e a concorrência já seja
insuportável) exigindo a restituição do que tenham conseguido, exigindo “o
pagamento da dívida” – sob a ameaça da miséria e da vergonha.
Vê-se assim que a financeirização
não é um desvio improdutivo e parasitário de cotas cada vez maiores de
mais-valia e poupança coletiva; ela é a própria forma da acumulação, quer dizer,
da exploração operada pelo capital no interior dos novos processos de produção
de conhecimento e de modalidades sociais do valor. Sobre esse terreno os custos
da reprodução da força de trabalho, o trabalho necessário (quer dizer, de sua
instrução, de suas formas de vida, da nova organização social) e, também, as
lutas operárias, fizeram fracassar a acumulação de capital e, portanto, levaram
à ruptura da relação de exploração no plano social.
Isso aconteceu, porque as
condições de valorização do trabalho sobre a base do conhecimento e da
biopolítica são hoje, como dissemos, “comuns”; enquanto a acumulação é, não só
“privada”, mas, também baseada em tecnologias e políticas de administração que,
ao não conseguir destruir a “potência comum” da produção, a escravizam – fazendo
pouco caso de seus direitos e de seu poder. Como sair de uma crise desse tipo?
Só se sai de crises desse tipo
mediante uma revolução social. Qualquer New Deal que se proponha terá de
construir novos direitos de “propriedade social” dos “bens comuns”. Esse direito
evidentemente se contrapõe ao direito da propriedade privada e às suas garantias
públicas.
Em outras palavras, se até hoje o
acesso a um “bem comum” tomou a forma da “débito privado”, de hoje em diante é
legítimo reivindicar o mesmo direito, em forma de “renda social” – do “comum”. A
única via para sair da crise é reconhecer esses direitos comuns.
Para reconstruir – mediante o
trabalho de toda a sociedade – o progresso e, portanto, a esperança de paz. A
revolução na Europa é o passo necessário para afirmar a hegemonia do comum e
construir a unidade do país mais diverso, mais belo e mais inteligente que a
história humana conheceu.
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