Publicado em 12/6/2012 por
Urariano Motta *
Pois assim como a noite vinda
depois do dia, que não mais pode ser da natureza do dia, mas no seu escuro, nas
suas estrelas, tem um encanto, que por ser diverso daquele do dia não deixa de
ser um encanto.
Assim como nas sucessões físicas,
temporais, de toda a natureza, da flor que fenece e cai e se ergue em outra a
partir dos grãos derramados, até a onda do mar que se espraia e se desfaz e se
refaz dos seus restos em nova onda, assim também o amor dos primeiros anos, que
resistiu à inconstância da paixão, se faz sentimento curtido, de marcas e rugas
que entranham o sol, organizando-se em nova pele. Ainda que sem a
elasticidade e frescor dos primeiros anos, vem o sabor íntimo do vinho de que se
aprendeu a gostar, uma cumplicidade de lições apreendidas no toque sem palavras,
que o rebento dos primeiros fogos não alcançava.
Pois não é próprio do fogo o
consumo e o autoconsumo, voraz no incêndio e lento depois até as brasas que por
fim esfriam? Pois sendo natural do fogo a destruição inexorável, linear e de
sentido único, do começo para o fim, do começo para o fim, e sempre, é no
entanto mais próprio da coisa humana o guardar semelhança com os fenômenos
naturais, mas sem se deixar reduzir ao que não tem o salto e a qualidade da
natureza da gente.
Se os primeiros anos de amor são
um fogo sem medida, e ao dizer isso guardamos apenas uma cômoda aproximação,
pois não são exatamente um fogo a loucura e a impulsividade e o não ter limites
os atos e ações daqueles anos, menos própria será a comparação do amor que
amadurece ao fogo que lentamente se apaga. Pois se esse amor guarda
correspondência com o próprio amadurecimento da gente, e portanto faz sua casa
nas rugas do nosso rosto, e por rugas lembramos sempre os efeitos do sol ao
longo do tempo na matéria couro de nosso semblante, isto não quer dizer, a
continuar nesse processo, que o amor que amadurece, por lembrar sol e destruição
do frescor, venha a ser um inventário de perdas.
Pois ainda que assim fosse, a esta
altura já aprendemos que as perdas na vida não são um número frio, acabado e
fechado, afetado de um sinal negativo. Diríamos, num primeiro impulso, que elas
se reservam em experiência. Dizendo menos mal, diríamos que as perdas na vida
organizam um novo ser, aquele ser que sabe porque aprendeu que a vitória não é
bem um metódico e unidirecional fazer a coisa certa.
Que a vitória é um fazer inúmeras
coisas erradas, que ao receberem uma reflexão e um julgamento iluminam o fazer a
coisa menos errada. Que a vitória sobre as trevas é como um labirinto que oculta
um caminho secreto e inteligível até a maravilhosa saída. Mas ainda aí, nessa
tradução de perdas, o amor amadurecido ainda não é alcançado. Pois para ele,
para esse amor que sofreu mudanças ao longo dos anos, o que há e o que houve não
são nem foram exatamente perdas. Por exemplo, é exatamente uma perda o não levar
a amada para a cama com a mesma frequência dos primeiros tempos? Um cínico,
míope, como todos os cínicos, diria que sim.
Que uma coisa é fazer sexo, e aqui
mais se mostra a miopia ao fazer equivalentes o amor e o sexo, pois uma coisa
seria fazer sexo três vezes por dia nos 30 dias de um mês, todos os meses, e
outra bem diferente é fazer sexo quando Deus, a conveniência, a oportunidade e
as forças forem servidas. Já nessa resposta o cínico não vê a etapa superior que
é o prazer que conhece sobre a fome onívora. Enquanto o primeiro evita caminhos
precários, já trilhados, a segunda vai às cegas até atingir uma provisória
satisfação sempre insatisfeita.
É claro que o amor que amadurece
não nos deixa menos carnais, mais virtuosos ou santos. Ele, de um ponto de vista
mais pragmático, nos deixa mais perceptivos da bagagem que ao longo da jornada
acumulamos.
De um ponto de vista menos
prático, menos visivelmente prático, queremos dizer, esse amor é a transformação
daquele sentimento juvenil que só desejava a própria satisfação.
Que em vez de abrigar buscava
urgente abrigo.
Em lugar da busca de formas
perfeitas, e sabe-se lá o que a carência idealizava como perfeitas, coxas,
busto, ventre, rosto, perfume e fetiches ativos e exuberantes, esse amor maduro
põe a compreensão de que a estação das formas fôrmas não se guarda nua em
mármore.
Que aquela pedra é forma oca de
experiência. Mas que nem por isso esse amor transformado é um sentimento
outonal, do ocaso.
Ele não é como o sentimento de
alguém que vê a chuva batendo na janela, e aconchegado no calor da sala se diz,
“para a rua não poderei mais sair”.
Ele é apenas, talvez, uma doce
intimidade conquistada. Sujeito a trovoadas, tempestades, pois a vida não é de
paz, dentro e fora do sentimento. Mas sem aquelas soluções terminativas,
definitivas, dos arroubos sectários dos primeiros anos, “ou isto ou
aquilo”.
Esse amor maduro diz melhor, fala
melhor às sístoles e diástoles do coração amadurecido.
Dele fala melhor o que não é
conceito, ao que é essencial encarnado no destino mesmo da gente.
E o essencial é que as rugas, as
gorduras, os ossos frágeis do objeto que se ama se revelam uma fortaleza.
O amor que amadurece ama a pessoa
exatamente nesse tempo de decadência física, e por essas, e por causa mesmo
dessas formas.
As fragilidades físicas se tornam
uma qualidade, pois remetem a uma história comum. Esse amor apenas deseja dizer,
“saiba que aprendi muito a amar as suas rugas”.
O que quer dizer, ele, esse novo
amor, não quer vê-la sozinha, ele a quer a seu lado nos próximos, nos poucos e
infelizmente poucos anos que lhes restam. Como flores na praia açoitadas pelo
vento, até que venham as ondas e tudo cubram.
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