19/7/2013, Conflicts Forum Weekly
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Efraim Halevy |
Vai-se tornando cada vez mais
claro que os objetivos dos líderes do Golfo e do general Sisi – nas palavras do
ex-diretor do Mossad israelense, Ephraim Halevy – são impor derrota pública e definitiva à
Fraternidade Muçulmana. Não surpreende ninguém que Israel se tenha tornado
colaboradora entusiasmada do mesmo projeto, diretamente ligada ao general Sisi,
com o qual Israel manteve relações muito próximas, porque sempre foi o principal
homem de Israel no exército egípcio, com o qual Israel co-comandava o
Sinai.
Como corolário do desmonte da Fraternidade Muçulmana, o Hamás também vem sendo demonizado para a opinião pública egípcia (pelo exército): está sendo apresentado como “a mão terrorista” ocultada na desordem no Sinai. (No Al Monitor de 4/7/2013 em: “Hamas Isolated After Coup in Egypt” lê-se relato de furiosos protestos públicos instigados contra Meshaal e Haniya, quando visitaram o Cairo pouco depois do golpe).
Como corolário do desmonte da Fraternidade Muçulmana, o Hamás também vem sendo demonizado para a opinião pública egípcia (pelo exército): está sendo apresentado como “a mão terrorista” ocultada na desordem no Sinai. (No Al Monitor de 4/7/2013 em: “Hamas Isolated After Coup in Egypt” lê-se relato de furiosos protestos públicos instigados contra Meshaal e Haniya, quando visitaram o Cairo pouco depois do golpe).
Khaled Meshal (Hamas) |
Não se fala aqui portanto de
qualquer projeto para “castigar” e depois trazer de volta à participação
política alguma nova Fraternidade Muçulmana, contrita, para integrar alguma nova
coalizão de governo no Cairo (como a imprensa-empresa tem sugerido). Trata-se,
isso sim, da narrativa que está emergindo, construída pelos apoiadores do golpe
do general Sisi no Golfo, e que visa a apresentar a Fraternidade e o Hamás como
terroristas associados
à al-Qaeda, para assim erradicar a
Fraternidade completamente e definitivamente
do mundo político, para – outra vez segundo palavras
do próprio golpe – restaurar o Islã “moderado” na região.
Em
resumo: o exército e alguns líderes do Golfo retomam a missão fracassada de
Bush, de remontar a política do Oriente Médio e do Islã à própria imagem
deles.
E o que
planeja esse Islã “moderado” que aspira a substituir o Islã da
Fraternidade?
O
principal conteúdo de raiz que os líderes do Golfo tentam associar aos
“moderados” não é o que a maioria dos ocidentais associam à palavra “moderado”.
“Moderados”,
aí, tem a ver com a era nasserista, quando o rei saudita começou a cooptar os
Irmãos que estavam sendo perseguidos por Nasser no Egito e buscavam refúgio no
Golfo, para integrá-los em dois grandes projetos da Casa de Saud. Interessava à
Casa de Saud incorporar (1) os
recursos intelectuais da Fraternidade Muçulmana, para dar ao wahhabismo a
respeitabilidade acadêmica que até ali não tinha; e (2) fazer da doutrina que ganhava nova
respeitabilidade (o salafismo) a “voz” única e legítima do Islã sunita (esse foi
o principal objetivo da criação da Liga Mundial Muçulmana [orig. Muslim World
League], em 1962).
Rei Abdullah (Arábia Saudita) |
O
rei saudita queria o fim da multiplicidade de “vozes” no Islã; queria confinar o
Islã numa única expressão. Para isso – e nessa direção (especialmente mediante a
Liga) – o reino passou a aplicar seus vastos lucros com o petróleo. Assim,
inadvertidamente e paradoxalmente, os sauditas garantiram o dinheiro que
permitiu à Fraternidade construir sua rede de células por toda a região do
Golfo, sob a máscara de estar promovendo os projetos sauditas – a mesma rede
que, hoje aparece aos olhos dos governantes do Golfo como ameaça direta contra
eles próprios.
Os
Irmãos, de fato, desenharam para a Casa de Saud o “modelo” das primeiras
comunidades muçulmanas, como padrão para o atual Islã sunita. Mas, na sequência,
a Fraternidade Muçulmana acrescentou ao “modelo” seu traço estratégico
essencial, que o modificou radicalmente: deram a “soberania” política ao
povo – não mais à “autoridade tradicional”; ao povo, não ao rei, como
planejavam os sauditas. Os sauditas jamais perdoaram a Fraternidade Muçulmana
por essa “traição”.
Assim sendo, em vários sentidos, o
“Islã moderado”, que os líderes do Golfo dizem patrocinar,
é um Islã
supostamente apolítico, dócil, que se rende a reis e monarcas (não o Islã que
reivindica a legitimidade que lhe venha do povo).
Em
outras palavras: o Golfo quer implantar seu modelo de salafismo, dentro do qual
o wahhabismo é uma das orientações, que prega obediência à autoridade
tradicional e esteriliza, em vários sentidos, as comunidades muçulmanas.
Esse
modelo de Islã resultou, no Golfo, intimamente casado com as práticas do
neoliberalismo econômico.
Olivier Roy |
Novamente se ouve (inclusive de
alguns especialistas, como Olivier Roy, em vários momentos ao longo dos últimos
20 anos) que agora esse “golpe devastador” contra a Fraternidade Muçulmana marca
o fim do caminho do Islã político. A mesma ideia tem sido repetida por liberais e neoconservadores na região e no Ocidente.
Embora
seja verdade, depois do golpe no Egito, que a Fraternidade Muçulmana não poderá
continuar como até aqui, prometendo ao povo que chegará ao poder com
legitimidade pela via da paciência, também é erro grave subestimar as raízes
profundas desse movimento popular gigante.
Mas,
ainda que os Irmãos tenham sofrido grande revés, é absolutamente descabida a
euforia que se vê entre líderes do Golfo e em Israel. O islamismo xiita é
vibrante e sente-se cada dia mais confiante. Mas os principais beneficiários do
vácuo que se criou com a “decapitação” da Fraternidade no Egito serão os
salafistas.
Os
salafistas hoje já nada têm de apolíticos – ou de submissos respeitadores da
“autoridade tradicional”. Essa é a corrente – o salafismo radical, jihadista
– que está crescendo exponencialmente em todo o Cáucaso , na Ásia
Central, no Oriente Médio e na África. Basta olhar para Síria, Líbano, Iraque e
norte da África, para constatar.
Ben Caspit |
Claro que muitos israelenses e
outros, anseiam pela volta de um “adulto responsável”, acreditando que os
mubaraks e autocratas na região fossem os pilares sobre os quais repousavam a
segurança e a estabilidade da região (e de Israel).(No Al Monitor de 7/7/2013 lê-se o
comentarista israelense Ben Caspit sonhando com a volta de algum “Mubarack” em:
“When
coups advance democracy”).
Mas
esse, precisamente, é o paradoxo da atual posição do ocidente.
Na
tentativa de melhorar a segurança de Israel, o ocidente descobre-se cada dia
mais firmemente aliado, direta e indiretamente, com correntes islamistas muito
mais violentas, em luta contra movimentos islamistas (e estados seculares) que
são fantoches controlados por Israel e líderes do Golfo. O mais espantoso é que,
nos corredores do poder na Europa, absolutamente não se veem análises críticas
das vastas consequências das ações do ocidente – como a que se viu recentemente
no Egito.
Em
resumo: todo o “projeto” do Golfo visa a devolver a região à “autoridade
tradicional” e a esmagar a noção de “soberania popular” – o que se tenta obter
expurgando do próprio Islã a ideia de “soberania popular”. Trata-se, aí, de
salvar as ditaduras.
A
questão é se tal anacronismo ainda seria sustentável hoje, numa região que passa
por mudanças tectônicas. Isso teremos de esperar, para ver. Há muito ainda por
acontecer, e muito depende do que aconteça.
O
golpe militar no Egito conseguirá remodelar a região, como apostam os sauditas?
Ou o golpe, ele próprio e por si mesmo, será o detonador de mudanças que
lançarão a região em direção completamente diversa da esperada pelos
patrocinadores protagonistas?
O
que já se vê, bem claro, é que o Golfo envolveu-se de tal modo na prospectiva de
aplicar avassaladora derrota à Fraternidade Muçulmana, que prestou pouca atenção
à substância de tudo isso.
Sheikh de al-Azhar |
Sim,
é verdade que a Fraternidade Muçulmana foi decapitada (o Gabinete de Orientação
[orig. Guidance Office] e Shura foram desmontados; e continuam as
prisões e detenções políticas por todo o Golfo). Mas, de fato, o Islã
político sunita foi, na prática, também decapitado (Erdogan foi
desacreditado; o Sheikh de al-Azhar está em retirada; e Qaradawi segura-se hoje,
precariamente, em Doha).
Quem
são os líderes, agora, do Islã sunita? As
identidades sunitas estão em desintegração. É verdade que o golpe do general
Sisi expôs o vazio
essencial da Fraternidade Muçulmana: só organização, sem visão alguma.
Mas a posição do exército seria melhor? Recebeu apoio financeiro de
patrocinadores (embora grande parte na forma de empréstimos ou dinheiro
depositado no Banco Central do Egito) para manter o trem em movimento, mas, para
reformas reais, é preciso muito mais.
Reformas
reais exigem alguma massa-crítica de consenso popular – e consenso é
precisamente o que não se vê no Egito. O exército criou um vácuo político de
interesses fragmentados e dispersos. A esquerda secular/liberal está “em alta” e
sem nenhuma vontade de ceder nem uma vírgula; e os salafistas terão de ser
acalmados, para que seja possível pagar o dinheiro que o exército deve à Arábia
Saudita. Essa é combinação absolutamente inoperável.
E quem serão os novos líderes da
corrente islamista da Fraternidade Egípcia, atualmente acéfala; que homens
serão? Por que se deveria pressupor que serão mais “moderados”? E agora que
Mursi já não existe, a oposição egípcia, que só era unida em torno do ódio ao
presidente, já começa a expor
publicamente suas profundas
divisões.
O
mais provável é que o exército seja empurrado para trás, forçado a confiar em
membros do “estado profundo” para construir algum governo – o que não agradará a
ninguém. Deve-se prever que a insatisfação dos salafistas no Egito espalhe-se de
volta também para o wahhabismo do Golfo.
Tony Blair |
A resposta de EUA e Europa ao
golpe do general Sisi – que prevaricou contra a legislação internacional –
também criou novas tensões. Embora o enviado do Quarteto, Tony Blair, em tour
pelos estúdios de TV em apoio ao golpe do exército, tenha
provocado críticas desdenhosas na Europa, ele ainda é visto como representante
de uma modalidade do pensamento conservador norte-americano.
Assim, o novo
credo intervencionista de Blair, sugerindo
que alguma falta de ‘'eficácia'’ no governo, combinada com a manifestação de
considerável rejeição popular, validaria o golpe do exército, com certeza
provocou calafrios no partido AKP de Erdogan. Erdogan, segundo o noticiário,
convocou imediatamente uma reunião do gabinete ‘'de crise'’, para avaliar se os
recentes protestos na Turquia teriam sido inspirados precisamente para abrir
caminho a uma intervenção do exército também contra os apoiadores turcos da
Fraternidade Muçulmana.
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