26/7/2013, [*] Pepe
Escobar, Asia Times Online – The
Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Bo Xilai isolado no Politburo chinês |
HONG
KONG. A questão geopolítica-econômica do nosso tempo, maior que a vida, a mãe de
todas as questões, hoje, se pode dizer, não é a Síria, nem a espionagem da
Agência de Segurança Nacional dos EUA contra o mundo. Nada disso. A questão é a
China. Como, santo deus, o Partido Comunista da China (PCC) conseguirá conduzir
o modelo de crescimento econômico de Pequim, e como a China conseguirá
administrar a ascensão agora mais lenta.
Em
qualquer caso, antes, a China precisa livrar-se do “julgamento do século” (nada
mais, nada menos).
Bo
Xilai, ex-superstar do Politburo atualmente caído em desgraça – conhecido por
seu “modelo Chongqing” de crescimento – foi, afinal, indiciado essa semana,
acusado só por crimes relativamente menores, de ter aceito suborno de US$3,2
milhões, e ter embolsado cerca de (outros) $800 mil.
O
roteiro fascinante começa com o modo como a mídia chinesa reagiu. Três minutos
depois de a agência oficial Xinhua anunciar o indiciamento, o jornal People’s Daily já se dedicava a traçar uma meticulosa diferença entre
“assuntos pessoais de Bo Xilai” e “o sucesso do desenvolvimento econômico e
social de Chongqing”.
15
minutos adiante, Xinhua publicou um comentário essencialmente para
alertar que Bo caíra porque um “tigre” local tornara-se excessivamente poderoso;
e “a estabilidade nacional de longo termo só estará assegurada se se pode
proteger a autoridade da liderança central”.
Também
15 minutos depois, Global Times selou o acordo, explicando que figurões
corruptos, como Bo, dentro do Partido, são “um câncer” – a ser enfrentado com o
peso da lei.
O
problema é que toda essa artilharia pesadíssima não ajuda a contar, sequer, o
começo da história.
Ferrari
versus Hondas
Alto,
ativo, energético, carismático, fluente em inglês (que aprendeu ainda na escola,
antes da Revolução Cultural) e princeling a ser detonado – filho prodígio
de Bo Yibo, um dos “Oito Imortais”, o grupo de companheiros pessoais íntimos de
Mao Tse Tung liderado por Deng Xiaoping, que adiante abriria a China ao mundo –
Bo Xilai é a matéria prima de que se fazem os épicos de “ascensão e queda”.
Princeling
– como a mídia em Hong Kong o definiu no início dos anos 1980s – é cada um dos
filhos de líderes do PCC (são centenas) que sempre viveram imersos em dinheiro,
poder e privilégios sem limites. Bo – que herdou a teia de relações e contatos
de valor inestimável [orig. guanxi] tecida por seu ilustre pai – sempre
preferiu a expressão “sucessor vermelho”.
Xi Jinping |
É
absolutamente impossível compreender o que está acontecendo a Bo sem acompanhar
suas complexas interações familiares com o atual presidente chinês Xi Jinping,
com o ex-presidente Hu Jintao e com o ex-premiê Wen Jiabao. É como comparar uma
Ferrari e um trio de Honda Civics.
Bo,
o garanhão, a Ferrari, é homem da
aristocracia comunista por direito de sangue e nascimento. Hu e Wen são
trabalhadores, gente que veio do nada. A família de Wen, em Tianjin, foi
perseguida pelos Guardas Vermelhos dos princeling durante a Revolução
Cultural. Mas adiante, em 1966, quem terminou por meter na cadeia o pai de Bo
foram os Guardas Vermelhos pobres, que controlavam a universidade.
O
pai de Hu Jintao era vendedor de chá. Foi perseguido durante a Revolução
Cultural – e jamais “reabilitado”. Depois, nos anos 1980s, o pai de Bo,
devidamente reabilitado, atirou-se à mais furiosa perseguição contra Hu Yaobang
– que era então mentor de ambos, Hu e Wen.
O
xis da questão é que esse clima de guerra entre essas famílias foi o nome do
jogo ao longo de, pelo menos, uma geração.
No
final de 2007, Bo perdera a disputa interna no 17º Congresso do Partido para
tornar-se vice-premier. Chegara ao Politburo – mas foi “exilado” para Chongqing,
em Sichuan – a 1.500 km de Pequim. Chongqing era
município, mas com nível de província, desde 1997. A cidade, que não para de
crescer, já tem população de 7 milhões, mas a grande metrópole no vale do
Yangtze já alcançou os 33 milhões e continua crescendo. Chongqing foi um dos nós
centrais da política de “Rumo ao Oeste” do final dos anos 1990 – o movimento
para industrializar em ritmo vertiginoso o interior da China.
Bo
chegou a Chongqing pronto para fazer acontecer. 2008 foi o ano crucial, quando o
PCC introduziu uma nova narrativa, de uma China autoconfiante que afinal
superaria “um século de humilhação” sob o poder de potências coloniais
estrangeiras. A resposta de Pequim à crise financeira provocada por Wall Street foi um pacote de quase $600
bilhões de estímulo – o maior da história – para injetar turbopotência na economia chinesa. Mas,
antes, foi preciso introduzir mais uma narrativa, para justificar que o PCC
tivesse o monopólio do poder.
Hu Jintao |
Bo
farejou uma jogada para ganhar. Capitalizou o disseminado senso de alienação na
população, o ressentimento contra a desigualdade e a nostalgia dos idos tempos
de socialismo igualitário. Ao mesmo tempo, capitalizou a seu favor a campanha
que Hu e Wen moviam contra a desigualdade, e a ambivalência de ambos quanto ao
papel do capital privado. Bo mobilizou todos esses elementos e andou firmemente
na direção da esquerda, cada vez mais à esquerda.
Canalizou
com mestria o ressentimento popular, o que levou a um “despertar das massas”. Bo
voltava a falar outra vez contra o coringa – a burguesia – serviço completo, com
produção de valores dos tempos revolucionários (com canções e citações de Mao,
que ele sempre conheceu de cor, desde que passou cinco anos numa prisão durante
a Revolução Cultural).
Foi
a campanha “Cante Vermelho”. Que Bo combinou com o envio de 200 mil funcionários
para o interior da província, no melhor estilo Mao, para “aprender com o povo”;
e com um programa econômico batizado “PIB Vermelho” – vermelho, como em
“igualdade socialista”, com orgia de moradias a preços módicos e excelentes
novas rodovias, cenário que já começava a seduzir as gigantes globais (Hewlett-Packard, Foxconn, Samsung, Ford), interessadas em fazer bases em
Chongqing... o que fez com que o PIB anual da municipalidade crescesse
espantosíssimos 16%.
O
problema é que grande parte disso tudo foi financiado com dinheiro emprestado de
outras partes da China. Em quatro anos, os bancos de Chongqing endividaram-se
muito. Mesmo assim, já estava impressa na mentalidade das massas a ideia de que
a China se mobilizava para objetivo mais alto – embora oficialmente Bo sempre
repetisse todos os mantras da “sociedade harmoniosa” pregados por Hu e Wen. A
diferença é que, ali, havia fatos reais em campo, não apenas retórica vazia.
O
tigre caiu na armadilha
Até
que o céu se abriu, e o mundo veio abaixo. Logo chegaria o dia em que os brados
vagos de Wen, falando de alguma “democracia”, colidiriam frontalmente contra o
neomaoísmo de Bo. Em 2010 e 2011 já havia guerra praticamente declarada no
Politburo entre Wen e Bo. E aqui havia outro subenredo também crucialmente
importante.
Wen Jiabao |
Bo
sempre foi muito próximo do ex-presidente Jiang Zemin. Jiang sempre protegeu Bo,
sempre muito ativamente; e estava apoiando todos os movimentos de Bo contra Wen
– inclusive os que visavam a garantir para Bo a posição mais alta na hierarquia
da segurança da China, então ocupada por outro protegido de Jiang, Zhou
Yongkang, que deixaria o cargo ao se aposentar do Comitê Central do Politburo,
no 18º Congresso do Partido.
Até
aí, Xi Jinping – outro “sucessor vermelho” e posicionado para substituir Hu
Jintao como presidente – apoiava Bo, pelo menos teoricamente; e ambos eram fiéis
a Jiang Zemin. Bo sempre foi e continuaria a ser uma Ferrari, comparado a Xi-Honda-Civic.
O
pai de Bo, ao longo de 70 anos, sempre esteve um passo à frente e acima do pai
de Xi. E, na comparação direta, Bo superava Xi em todos os quesitos: mais
bonito, mais brilhante, mais inteligente e infinitamente mais carismático que
Xi. A verdade que todos conheciam, mas da qual ninguém falava em Pequim, era que
Xi jamais conseguiria manter Bo sob seu controle, se os dois se cruzassem em
ação, no ambiente rarefeito do Comitê Central do Politburo.
Todas
as tensões acumularam-se e alcançaram o pico em março de 2012, no Congresso
Nacional do Povo. Começou com Wen referindo-se aos “erros da Revolução Cultural
e do feudalismo” que ainda se repetiam; e pintando Bo como homem do passado, que
queria impedir que se fizessem as necessárias reformas econômicas na China, a
abertura para o mundo e a plena modernização. Wen sugeriu muito claramente que
Bo teria de sair, para que fosse possível enterrar o passado maoísta. Com Bo,
disse Wen, “uma tragédia histórica como a Revolução Cultural sempre poderá
voltar a acontecer”. O vencedor (póstumo) teria de ser Hu Yaobang – não por
acaso mentor de Wen e amigo muito íntimo do pai de Xi.
Tudo
isso é jogo duro, muito duro. Dia seguinte, Bo foi demitido, sem cerimônias, do
posto de líder do Partido em Chongqing. E, como se não bastasse, até um
assassinato foi acrescentado ao roteiro – parte de uma cascata de erros e crimes
que já começava a correr solta desde que o chefe-de-polícia de Bo, Wang Lijun,
se refugiara e pedira asilo político ao consulado dos EUA em Chengdu, no início
daquele ano.
Gu Kailai |
Gu
Kailai, esposa de Bo e advogada, apareceu como personagem central na trama de
negociatas de um advogado inglês (Neil Heywood) que teria sido envenenado pela
esposa de um dos grandes do Politburo. E abriram-se as portas do inferno. Em
pouco tempo, já se divulgava que Bo teria grampeado os telefones de Hu Jintao;
que os filhos de Gu Kilai teriam patrimônio no valor de cerca de $130 milhões;
que os filhos do futuro presidente Xi Jinping teriam patrimônio familiar no
valor de mais de $1 bilhão; e que a família de Wen, grande cruzado pró
“democracia”, era proprietário de bens que ultrapassavam o total de $2,7
bilhões. O mundo conheceu uma imagem do Politburo como vasta e amplíssima
cleptocracia.
Bo
foi suspenso do Politburo e do Comitê Central por violações “sérias” da
“disciplina” do Partido. Todos pararam de falar sobre o “modelo chinês”. Bo
passou meses sob a custódia da sinistra Comissão Central para Inspeção
Disciplinar – que, traduzida, significa prisão incomunicável e tortura
hardcore (nada que Bo não conhecesse, depois de seus cinco anos de prisão
durante a Revolução Cultural). Entrementes, o PCC debatia o que fazer dele.
Agora,
já se sabe. Mas ainda não se sabe que tipo de “julgamento do século” será esse.
O “julgamento do século 20” chinês – estrelado pela “Gangue dos
Quatro” – foi integralmente televisionado. Imaginem a imagem de Bo em todas as
televisões do país, sete dias por semana, 24 horas por dia, em todos os formatos
imagináveis. Não acontecerá. O mais provável é que vejamos um tribunal
meticulosamente coreografado – e muito rápido – como no julgamento de Gu Kailai.
Ainda assim, o roteiro pode revelar-se uma caixinha de surpresas, no caso de Bo
decidir que de nada lhe serviria arrastar prisioneiros, desviar-se do roteiro microgerenciado imposto pelo PCC e puser
a boca no trombone.
Beidaihe Beach Resort (China) |
Tudo
leva a crer que nas próximas férias de verão em Beidaihe, os pesos-pesados do
PCC finalmente decidirão sobre o destino de Bo. Toda essa fascinante saga pode
ser vista como luta mortal de escorpiões numa caixa (ou guerra interna no
Politburo chinês, que só terá um vencedor definitivo – Xi; dois vencedores
relativos – Hu e Wen; e um definitivo perdedor – Bo). É a cada dia mais e mais
estranho que Jiang Zemin tenha imperialmente rompido o próprio silêncio, como
fez essa semana, para divulgar seu veredito, estilo última palavra: anunciou
publicamente que apoia Xi.
E
assim o fracionado Politburo, depois de um rápido julgamento, poderá finalmente
voltar a ser “harmonioso” – a postos para enfrentar a questão tectônica de “dar
uma ajeitada” no modelo chinês.
Mas
nem assim farão sumir o espectro de Bo. Bo virou a política chinesa de cabeça
para baixo, ao revelar muitas de suas práticas extremamente sombrias. Nenhum
cineasta chinês será jamais autorizado a tocar em material tão sensível. Mas...
quem sabe alguém se interessa, em Hollywood? Que tal? Sugiro Chow Yun-Fat, no
papel de Bo: Tigre caído, Dragão cruel. Quem se candidata?
__________________________
[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista brasileiro,
vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês.
Mantém coluna (“The Roving Eye”) no Asia Times Online; é também analista
e correspondente das redes The Real News
Network TV e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser
lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu, no
blog redecastorphoto .
Livros
Livros
-
Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007
-
Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007
-
Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009
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