12/7/2013, [*] M K
Bhadrakumar, Asia Times
Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Esfinge no Egito sinaliza para a Síria (desenho de Said Sadeghi) |
Cada
vez mais parece que a solução do enigma egípcio nos levará todos à Síria. A grande questão é até que ponto o golpe militar no
Egito resets a geopolítica do Oriente Médio; ou se, ao contrário, o
próprio golpe configura o começo de uma mudança tectônica em toda a região, que
só se deixará ver mais claramente ao longo do tempo.
Bashar al-Assad |
A
rápida sequência de eventos dessa semana indica que é alta a probabilidade de
que se verifique essa segunda hipótese. A semana passada foi extraordinária, de
fato, até para os padrões do Oriente Médio.
Houve
expressão forte de apoio pelos EUA e seus aliados no Golfo Persa, aos militares
egípcios, apoio que, por sua vez, está garantindo o substrato político para um
ataque brutal, pela Junta, contra a Fraternidade Muçulmana – o que tem
implicações para toda a “Primavera Árabe”.
Alguma
abertura dos russos para a Junta seria surpresa nesse momento, mas faria
integral sentido, se se considera a estratégia russa para a Síria e o ceticismo
com que os russos encaram a “Primavera Árabe”.
O
isolamento de Qatar, Turquia e Irã no tabuleiro
de xadrez regional acentuou-se na última semana: a Junta no Cairo zombou da
pretensão desses países, autoapresentados como árbitros ou formadores de opinião
em assuntos internos do Egito. E sabe-se que esses três países também estão
profundamente envolvidos na situação síria.
Hassan Rouhani |
Simultaneamente,
a abertura de Israel, que se dispõe a aceitar russos nas tropas de paz nas
colinas do Golan, não teria sido divulgada essa
semana se os EUA não tivessem concordado – e até aprovado. – E o cronograma das
mudanças de liderança no Partido Ba'ath Sírio e na Coalizão Nacional Síria pode
ter sido mais que coincidência.
Há
um contexto para tudo isso, que parece esquecido na cacofonia do golpe no Egito
– a avassaladora vitória de Hassan Rouhani na
eleição presidencial iraniana e a promessa de um aquecimento na relação
sauditas-Irã.
Um
evento seminal
Se
há evento seminal a identificar nesse fluxo torrencial de eventos na política
regional, é a visita do secretário de Estado, John Kerry, à Arábia Saudita dia
25 de junho, embutida num tour regional pelo Oriente Médio e iniciativa
diplomática sobre a Síria.
Rei Abdullah |
À
guisa de balanço, é aparente agora que o golpe em câmera-lenta no Egito
já ia avançado naquele momento no final de junho, e que os EUA já estavam em
processo avançado de conversações com as lideranças militares egípcias sobre uma
transição política no Egito. Não há dúvidas de
que as conversas de Kerry com os sauditas em nenhum caso ignorariam as
tempestades que se formavam sobre o Egito.
O
que se viu, de qualquer modo, foi que o rei Abdullah da Arábia Saudita viria a
ser o primeiro líder mundial a felicitar a
derrubada do governo da Fraternidade Muçulmana, dia 2 de julho – horas depois de
o golpe ter começado, como se Riad já soubesse o que viria.
Outra
vez, a alacridade com que Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos anunciaram
simultaneamente na 4ª-feira um pacote de ajuda de US$8 bilhões para o Egito sugere que tudo já estivesse
preparado, acertado com os EUA.
Mohamed Jihad al-Laham |
Washington
vazou para a mídia imediatamente depois que o país também manteria o plano de
fornecer jatos F-16 de combate aos militares egípcios, o que significa que,
apesar do que diga ou “declare”, o governo Obama não cogita de suspender a ajuda
militar aos exércitos egípcios.
Curiosamente,
outro líder regional que imediatamente comemorou – como o rei Abdullah – a
derrubada da Fraternidade no Egito foi o presidente Bashar al-Assad da Síria.
Esse,
tampouco, foi ato isolado. Na 2ª-feira, Assad
anunciara a substituição de toda a liderança do Partido Ba’ath: todos os 16
membros que comandavam o partido desde 2005 deram lugar a sangue novo. Uma nova
geração de políticos, entre os quais ex-diplomatas, ocupam agora aqueles postos.
Entre eles, o presidente do Parlamento, Mohamed Jihad al-Laham e o primeiro-ministro,
Wael al-Halqi.
Wael al-Halqi |
Numa
entrevista ao jornal do Partido Ba’ath, Assad
procurou explicar que aqueles nomes foram removidos do alto comando porque
cometeram erros. “Quando o líder não resolve uma série de erros, tem de prestar
contas do que faz” – disse Assad, sem outras explicações. Assad, é claro,
permanece como secretário-geral do partido – provavelmente o único que não
comete erros.
Na
mesma entrevista ao jornal do Partido Ba’ath,
Assad também renovou as críticas à Fraternidade Muçulmana, dizendo que “tira
vantagem da religião e a usa como máscara (...) e pensa que, se você não
concorda politicamente com o que façam, implicaria que você não defende Deus”.
Assad
obra para passar ao povo a mensagem de que é sensível aos sofrimentos e aos
problemas sociais como inflação e a segurança pública cada vez mais precária.
Mas permanece o fato de que está apertando o controle sobre o partido governante
num momento em que a situação política na Síria passa por mudanças, por causa do
impasse militar, e todos os protagonistas – a Síria, como as potências externas
– antecipam a inevitabilidade de um diálogo político nos próximos vários meses.
Ahmad Jarba |
Deve-se
também notar que o expurgo no Partido Ba’ath
coincide com uma mudança na liderança da Coalizão Nacional Síria (CNS), da
oposição. O novo presidente dessa CNS, Ahmad Jarba, foi nomeado por Arábia
Saudita-EUA e tem a reputação de ser líder tribal “com cabeça secular”.
Depois
da eleição de Jarba, Ghassan Hitto – o
primeiro-ministro e empresário norte-americano, que tinha o apoio de Qatar,
Turquia e dos EUA quando foi empossado em março passado – apresentou sua
renúncia.
Em
essência, as mudanças no CNS significam – como no Egito – um aumento da
influência dos sauditas e o eclipse do eixo Qatar-Turquia. A força da Fraternidade Muçulmana dentro do CNS
também foi reduzida. Evidentemente, os EUA estão apoiando o crescimento da
influência saudita dentro do CNS – como se vê também no Egito.
O
islamismo derrotado
Qual
é o plano de jogo de EUA-sauditas? Nos termos da
mensagem de Ramadan do rei e do príncipe herdeiro sauditas na 4ª-feira, a Arábia
Saudita “não permitirá que a religião seja explorada por extremistas, para que
sirva a seus interesses pessoais, e por quem fira a reputação do Islã.” A
mensagem dizia que a Arábia Saudita continuará “com a ajuda de Deus, a ser a
defensora do Islã (...) e manteremos nossa abordagem moderada, centrista.”
Evidentemente,
são farpas lançadas contra a Fraternidade Muçulmana, no contexto predominante
tanto no Egito quanto na Síria, e contra os seus principais apoiadores na
região, a saber, Qatar e Turquia.
Por
outro lado, Assad deve ter considerado bastante
agradável a mensagem de Ramadã do rei saudita, porque fatalmente partilha a
mesma perspectiva dos sauditas (que é, também, a mesma de EUA e Rússia), de que
o espectro dos islamistas radicais a assombrar o destino de seu país é, hoje, a
questão de fundo.
Sergey Lavrov |
Sem
dúvida, essas correntes cruzadas na política regional já apareceram no radar em
Moscou, e devem ter empurrado o Kremlin a não
perder tempo com construir aberturas para a Junta egípcia. Na 5ª-feira, Sergey
Lavrov, ministro de Relações Exteriores da Rússia, disse
que
Esperamos
que todas as iniciativas [da Junta] que visem a lançar o diálogo nacional, a
estabilizar a situação e a realizar eleições livres sejam
bem-sucedidas.
Lavrov
falou como se não soubesse que falava no mesmo momento em que os militares
egípcios atacavam furiosamente a Fraternidade Muçulmana. Até propôs que os
negócios prosseguiriam normalmente entre Rússia e Egito e, além do mais, que as
prioridades da Rússia concentram-se no impacto que os desenvolvimento no Egito
tenham sobre a estabilidade regional e a política do mundo islâmico. Lavrov
disse que:
Quanto
aos projetos de cooperação [com o Egito], esses projetos visam a desenvolver a
cooperação entre os países e povos. Sua implementação beneficiará os dois povos
e os dois países.
Nós
[a Rússia] queremos que a estabilidade seja garantida no Egito e em toda a
região, porque a instabilidade cria sérios riscos para as relações
internacionais. O Egito é o país chave da região. O desenrolar dos eventos na
região e em todo o mundo islâmico dependerá da situação no
Egito.
Assim
é e assim se faz realpolitik da melhor qualidade. Dito em termos mais
simples: sem se expor ao risco de ser acusado de interferir em assuntos internos
do Egito, Lavrov fez saber aos novos líderes no Cairo e em inúmeros estados
regionais – Arábia Saudita, Irã, Qatar, Turquia e Israel, em particular – e à
“comunidade internacional” como tal, que a Rússia não está absolutamente
desagradada com o rumo dos eventos no Egito e com as prováveis repercussões para
a segurança e a estabilidade regionais.
Pode-se
supor que Moscou, que jamais ocultou completamente a desconfiança profunda que
sempre lhe inspirou a Fraternidade Muçulmana, pode estar sentindo que os ventos
da mudança talvez favoreçam seus próprios interesses, em harmonia com o que
sempre disseram sobre a “Primavera Árabe”.
Serguey Lavrov e Tzipi Livni |
Enquanto
isso, o
Asarq Al-Awsat, jornal do establishment saudita, noticiava, na 4ª-feira, que houve uma reunião
entre Lavrov e Tzipi Livni, ministra da Justiça de Israel, no decorrer da qual
Livni sugeriu que Israel poderá admitir a presença de soldados russos nas forças
de paz da ONU, nas colinas de Golan, sob a condição de que Moscou suspenda a
transferência de mísseis antiaéreos S-300 para a Síria.
Mês
passado, o presidente Vladimir Putin declarou
que a Rússia está pronta para substituir os 380 soldados austríacos, do
contingente de 1.100 soldados da ONU, em Golan.
Vladimir Putin |
Nem
Moscou, nem Telavive desmentiram a matéria do jornal saudita. A serem
verdadeiros o encontro e a notícia, como parecem ser, o movimento não está
sincronizado com demais movimentos comentados acima, mas revela um excitante
novo padrão nos alinhamentos regionais, que envolve Israel e Síria, com EUA e
Rússia como acionistas – o que até agora era impensável.
Bem
claramente, os eventos no Egito vão cada vez mais fortemente empurrando EUA,
Arábia Saudita, Israel e Rússia, todos, para a mesma página. Todos esses quatro principais atores protagonistas
estão querendo apostar suas fichas naquele controverso golpe egípcio, sob a
hipótese de que possa eventualmente estabilizar a situação naquele país e, até,
fortalecer algum governo democrático.
Todos
esses protagonistas concordariam com a conclusão de que o Islã político acabou
por revelar-se como o principal beneficiário, não bem-vindo, da “Primavera
Árabe”. De fato, por analogia com o Egito, como
se lê nas entrelinhas da mensagem de Ramadã do rei saudita, os movimentos
islamistas na região como um todo devem começar a esperar graves problemas;
entre aqueles movimentos, estão, sim, também os “rebeldes” sírios.
Zalman Shoval |
Como
escreveu um ex-embaixador de Israel nos EUA, Zalman Shoval, em artigo intitulado “New
Dawn on the Nile” [Nova alvorada no Nilo], no Jerusalem Post:
Tudo
considerado, a possível derrota do islamismo como grande força política, pelo
menos em algumas partes do mundo árabe, pode levar nossos vizinhos [de Israel] a
uma atitude mais secular, mais terra-a-terra e menos dogmática e
intolerante.
Feitas
todas as contas, a luta que o Egito ainda enfrentará e as voltas que a situação
síria dará nos próximos meses não apenas são muito assemelhadas como, também,
parecem estar interconectadas.
________________
[*] MK
Bhadrakumar
foi diplomata de
carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética,
Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e
Turquia. É especialista em questões do
Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e
segurança para várias publicações, dentre as quais The
Hindu, Asia Online e Indian
Punchline. É o filho mais velho
de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de
Kerala.
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