22/2/2013, Pepe Escobar,
Asia Times Online – The Roving
Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Pepe Escobar - Russia Today TV |
O
zunzum em Los Angeles é que Argo ganhará o Óscar, esse ano, de Melhor
Filme.
O
suspense da CIA dirigido por Ben Affleck já levou o Globo de Ouro de Melhor
Filme e os prêmios da Associação de Diretores da América, da Associação de
Atores de Cinema e o da Associação de Produtores de Cinema. Só em Hollywood
alguém ganha o prêmio de Melhor Filme, sem que o sujeito que fez o filme e
organizou tudo para que fizesse sentido sequer seja indicado ao prêmio de Melhor
Diretor (o qual quase com certeza irá para o Zeus de Hollywood, Steven
Spielberg, por seu Lincoln, épico da Guerra Civil).
Estamos
falando de política e cinema? Sim, sem dúvida alguma. É impossível compreender
Washington sem consumir algum tempo em Hollywood. Foi o que fiz – do final dos
anos 1980, aos primeiros anos 1990s. Nunca sequer me aproximei da Associação da
Imprensa Estrangeira em Hollywood [orig. Hollywood Foreign Press Association
(HFPA)]: um bando de babacas que orbitam em torno do sistema das grandes
“estrelas” e cuja única meta na vida é almoçar e jantar de graça, antes de votar
no concurso do Globo de Ouro.
Mesmo
assim não perdi um coquetel, nenhum lançamento de filme nos estúdios, nenhuma
festa e conheci uma galáxia inteira de estrelas, grandes e mínimas, vi como se
acertam os negócios, e participei da peregrinação anual Hollywood-Cannes (para o
festival de cinema). Cheguei até a segurar um Óscar na minha própria mão, uma
vez, em 1993, emprestado por Emma Thompson, na sala de imprensa, quando se
preparava para chamar ao palco seu (então) marido “Kenneth” [Branagh]. O Óscar
não é pesado. Nem é lá muito bonito. Mas, sim, é o Santo Graal, como ser
recebido na Casa Branca. Se você entender como funciona a indústria em
Hollywood, você entende a política de Washington, pode-se dizer, de A a Z.
Falemos
então sobre os principais concorrentes políticos do ano: Lincoln, de
Spielberg; Argo, de Affleck; e Zero Dark Thirty (ZD30)
[port. A hora mais escura], de Kathryn Bigelow.
ET
voltar casa...
No
ethos de Hollywood, nada é político; tudo tem de ser submetido e
subordinar-se aos intoxicantes miasmas do mito do bipartidarismo
hipernacionalista. Para Hollywood, guerras e história têm sempre de
subordinar-se à ideologia (isso explica por que Apocalypse Now, de
Coppola – em que se vê o strip-tease da ideologia – “é” a verdadeira
guerra do Vietnã).
Não
surpreende que Argo esteja sendo definido em Hollywood conforme o clichê
ingênuo, como a “uma crônica liberalmente hollywoodizada”, quando, de fato, não
passa de pesada propaganda & promoção da CIA, história de um agente que
aparece com um esquema para tirar do Irã alguns diplomatas cercados dentro da
embaixada dos EUA durante a crise dos reféns de 1979 no Irã. O plano consiste em
fazê-los passarem por – e o que mais seria?! – uma equipe de filmagem saída de
Hollywood.
Affleck
é visto em Hollywood como um “liberal”, como George “Sudão Livre” Clooney. Longe
vão seus dias de garoto propaganda de Nespresso. Cloney – da realeza
Hollywoodiana – é um dos co-produtores de Argo, sócio de Affleck e Grant
Heslov.
Se
se justapõem os dois filmes, Argo é a história de um resgate e A hora
mais escura é a crônica de proeza bem-sucedida com desfecho conhecido
(aliás, como Lincoln). Argo e A hora mais escura coincidem
é na evidência de que ambos os filmes são odes à CIA. Portanto, inevitavelmente,
os iranianos mostrados pelo “liberal” Affleck não passam de bando de fanático
histéricos, tanto quanto os árabes e paquistaneses mostrados por Bigelow e têm
de ser, ou torturados, ou apresentados como permanente incômodo na periferia dos
eventos “que contam”.
Argo
defende
sua aspiração à credibilidade histórica com uma sequência inicial de cinco
minutos, coreografada como história em quadrinhos, que ali está para dar
“informação” mínima, para que o público “conheça” todas as complexas forças que
estavam em ação na revolução iraniana. Dali em diante, a CIA assume as rédeas da
história. Esqueçam o contexto – e nem pense em ver ali sequer um personagem
iraniano decentemente apresentado como personagem: são sempre hordas, ondas e
ondas de massas irracionais, sempre aos berros.
Nem
uma palavra sobre o assassinato da democracia iraniana protagonizado pela – e
quem poderia ser? – CIA em 1953. Nem uma palavra sobre a política secreta do Xá,
a Savak, que “desapareceu”, torturou e matou a mancheias, treinada pela – e quem
poderia ser? – CIA.
Interessante
lembrar que imediatamente depois da revolução iraniana, durante a Jihad
afegã dos anos 1980s, a CIA canalizou rios de dinheiro e armas para jihadistas
salafistas, inclusive para um certo Osama bin Laden; e, com a ajuda de dinheiro
saudita, promoveu a criação de um monstro à Frankenstein – os Inter-Services de Inteligência do
Paquistão (ISI). Hoje, a CIA apoia jihadistas salafistas da Líbia até a Síria –
remix do Afeganistão dos anos 1980s.
Essa
exploração da CIA não se compara à mensagem (não exatamente subliminal)
veiculada pelo “liberal” – além de “progressista” – Affleck. Em Argo,
toda a população iraniana é apresentada como terroristas que odeiam “nossos
valores”.
Lincoln é tão
“liberal” quanto Argo. Mas Spielberg é mestre consumado do fazer cinema,
muito mais efetivo no que tenha a ver com manipular emoções. Se Baudrillard
ainda vivesse, teria desconstruído Lincoln como perfeito exemplo de
história como simulacro.
Lincoln
de
Spielberg é ícone maior que a vida, um totem a-histórico frente ao qual o
público deve prostrar-se ritualmente, parte de um perpétuo sacrifício ante o
altar da política, afirmação suprema do sistema político norte-americano. É a
representação perfeita do sonho americano e dos valores americanos. Lincoln vai
às telas para ser adorado. Lincoln – e não chega a surpreender – é o ET.
Suspensão da razão ou descrença? Oh yes, todos temos de continuar
enfeitiçados.
Espanque-me com suas baquetas / Hit me with your rhythm stick
[1]
Kathryn Bigelow é muito boa
diretora de cinema. Seu Estranhos Prazeres [orig. Strange Days
(1995)] é,
provavelmente, um dos melhores filmes cult dos oscilantes anos 90s
governados por William “Bubba” Clinton. Ninguém discorda, em Los Angeles, de que
Bigelow é versão feminina do falecido Tony Scott.
Sobre
A hora mais escura a questão não é se Bigelow ter-se-ia convertido numa
Leni Riefenstahl (desculpe, Leni) norte-americana. A questão é – e nem é preciso
consultar o Godard do auge, nos anos 1960s – que tudo se decide na edição do
filme (até o que nunca esteve nem no roteiro).
A hora
mais escura abre com
uma tela negra e áudio de telefonemas aterrorizantes do 9/11. Corte para a
tortura de “Ammar” num black site [buraco negro] da CIA, prelúdio da
iminente simulação de afogamento. Isso, para dar o tom do filme. A hora mais
escura, editado como o filme foi editado, é espantosa, impressionante,
assustadora publicidade para a Guerra Global ao Terror de Bush-Cheney.
Naquele imundo país de Oz, a CIA
só tortura “terãristas” [2]
certificados e comprovados do mal; o governo dos EUA jamais mata civis
inocentes; e todos os torturadores, analistas e matadores high-tech são
altruístas, imaculados, inatacáveis heróis.
É
inescapável: todos têm de amar essa CIA que mentiu incansavelmente até conseguir
uma guerra no Iraque; que entregou-se a uma orgia de tortura em incontáveis
buracos negros espalhados pelo mundo, depois de incontáveis “entregas especiais”
clandestinas de prisioneiros para serem torturados em diferentes locais, por
torturadores-parceiros; essa CIA que, agora, mudou-se para uma Guerra de
Drones – HUMINT [Human Intelligence Network] é demorado demais e
caro demais – para melhorar o próprio desempenho assassino, frequentemente
adornado com danos colaterais.
Um
tsunami digital foi mobilizado para torturar como se vê em A hora mais
escura. Bigelow defendeu as cenas de tortura: “mostrar não significa
apoiar”. Sim, mas... outra vez, a coisa começou no roteiro – escrito por Mark
Boal, ex agente infiltrado por pouco tempo no Iraque. Para o roteiro, Boal
baseou-se em informação de primeira mão, exclusiva, reservada, de quem teve
“acesso de primeira mão” aos torturadores da CIA e a várias outras fontes da
CIA. Durante vários meses, Boal e Bigelow insistiram que A hora mais
escura seria narrativa “factual”, estilo documentário, da caçada a Osama bin
Laden, até o desfecho. Mas também disseram que não passaria de um filme.
Nessa matéria
do Los Angeles Times
vê-se o
discurso mais articulado que Bigelow produziu em defesa de A hora mais
escura. Ela insiste que “não estava interessada em apresentar essa ação
militar como se fosse isenta de consequências morais”. Insiste que A hora
mais escura é “rigoroso” – destacando o aspecto “documental” do filme.
Insiste também que “sou pacifista e sempre fui, a minha vida inteira”.
Bigelow,
sim, filmou A hora mais escura – esteticamente – quase como um
documentário. Não mostra a tortura bruta, mas de forma cuidadosamente
higienizada. A tortura, nos termos de A hora mais escura, parece
inteiramente justificada. Portanto, inteiramente normalizada. Portanto,
inteiramente apoiável. Afinal de contas, os torturadores são seres tão humanos –
exatamente como os reféns em Argo. Sartre salva todos: o inferno, de
fato, são os outros. Especialmente se forem muçulmanos.
Boal
e Bigelow também insistiram que trabalharam “jornalisticamente”. É –
literalmente – o detalhe que faltava: prova que A hora mais escura é o
produto acabado da Guerra Global ao Terror: o jornalismo “incorporado” à guerra.
Era uma vez, antigamente, o blues pariu uma cria e deram-lhe o nome de
rock'n roll. Nos EUA pós-modernos, o Pentágono pariu o jornalismo
“incorporado” à guerra; em seguida, a CIA também pariu: nasceu o cinema
incorporado à guerra.
A hora
mais escura tem de
ser visto como o mais bem acabado produto cinematográfico da era Obama. Os
registros mostram como o ícone do “Sim, podemos” com as habilidades retóricas
sedosas que se conhecem (acorde, Spielberg! O seu novo Lincoln está aí, bem à
mão!) atropelou tudo, da ética ao respeito à lei: não fechou Guantánamo, ao
mesmo tempo em que se pivoteava da Guerra Global ao Terror para a guerra
clandestina, guerra de sombras, com, inclusive, uma “lista de matar” (não, “nós
não torturamos”, disse Obama em entrevista à televisão norte-americana, tendo,
como pano de fundo, uma cena de A hora mais escura). Simultaneamente, os
grandes patrocinadores e doadores – como no caso da CIA – alegremente chafurdam
nos brilhos do mito cinematográfico.
A
beleza do negócio todo é que Hollywood, funcionando como funciona, sequer
precisa da CIA – ou do Pentágono – como patrocinadores. Hollywood faz a Voz do
Dono como operação padrão. E já começa com cartas vitoriosas, tecnicamente –
porque ninguém, exceto alguns estranhos épicos europeus e asiáticos, podem
competir com Hollywood em termos de qualidade de produção, custos das produções
e de know-how para vender recreação.
Ainda
assim, Hollywood apresenta-se com orgulho, como “liberal”. Argo talvez
leve o Óscar de Melhor Filme, e Spielberg, o de Melhor Diretor. Mas que ninguém
se engane: como representação suprema do complexo pós-moderno
militar-industrial-de segurança-Hollywoodiano, nada chega sequer próximo de
fazer mais bem feito que A hora mais escura.
Notas
dos tradutores
[1]
Hit Me with Your Rhythm
Stick é um rock
punk gravado por Ian Dury and The
Blockheads, lançado em novembro de
1978.
[2]
Como Bush pronuncia [aproximadamente] a palavra terrorists, objeto de
infindáveis piadas nos EUA.
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