2/2/2013, Mark LeVine*, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ver também
·
7/11/2011, redecastorphoto, Eduardo Febbro, Página 12 em: “A
praça sem chefes, ordens, capitães e hierarquias”
·
2/4/2012, redecastorphoto, Al Ahram, Cairo –Egito em: “Torcidas
organizadas no Cairo: a Revolução dos Ultras”
O bloco-negro - no Egito dizem que eles são os defensores de manifestantes contrários ao governo do
presidente Mohamed Mursi |
Da
outra vez que rapazes mascarados, vestidos in black, causaram confusão
equivalente no Egito, a culpa foi de Satanás. Ou, pelo menos, foi o que disseram
o governo Mubarak e a Fraternidade Muçulmana, durante o caso infame que ficou
conhecido como “Caso dos Metaleiros Satânicos”, em 1997, quando mais de 100
metaleiros – músicos e fãs – foram presos e ameaçados até de morte, simplesmente
porque usavam roupas pretas e gostavam de música extremamente, digamos,
barulhenta.
A
perseguição aos metaleiros egípcios (ou “metal-aliens”, como muitos deles
se autodenominam) foi constante em toda a cena underground no Egito,
durante toda a década seguinte. Mas manteve-se subterrânea, sem deixar-se ver à
superfície até meados dos anos 2000s, quando emergiram movimentos como Kefaaya,
e ocorreram as principais greves no centro industrial de Mahallah. Nesse período
viu-se nascer uma militância renovada, embora intermitente, que se manifestaria
no levante revolucionário do final de 2010 e início de 2011.
Manifestante do bloco-negro hoje (3/2/2013) no Cairo, Egito |
Não me
surpreende ver que alguns dos principais organizadores dos 18 dias de protesto
eram velhos amigos da cena metaleira egípcia. A aparentemente inesperada
reemergência dos “blacks” entre os revolucionários remanescentes no Egito,
especialmente as marcas visuais do chamado “bloco-negro” – o
qual, embora sempre descrito
como “grupo” pela mídia, por
comentaristas e pelo governo, não é
bloco nem grupo, mas, antes, um conjunto de táticas e estratégias – traz de
volta à memória momentos ainda vivos, tanto dos sons do metal egípcio
quanto da pulsação anarquista que sempre marcou o ritmo dos movimentos originais
de protesto em Tahrir.
Metaleiros
e anarquia – como, aliás, sempre disseram as autoridades políticas e religiosas
no Egito, cada vez com mais fúria – sempre andaram juntos, pode-se dizer,
naturalmente.
Na
verdade, sempre houve clara, embora pouco comentada, presença anarquista no
levante original em Tahrir; tradicionalmente se vendem livros anarquistas nas
bancas ao longo da rua Talat Harb, onde o grupo organizou marcha e oração
pública. E a própria Tahrir permanece, em vários sentidos, como exemplo das
ideias de horizontalismo (horizontalidad) e autogestão que são o coração
da moderna teoria e prática anarquistas.
Raízes
do Anarquismo Egípcio
Anthony Gorman |
O
anarquismo tem longa história no Egito e, mais amplamente, em todo o Levante.
Como o demonstrou a pesquisa do professor Anthony Gorman da
Universidade de Edinburgh, as raízes do anarquismo chegam aos anos 1860s, quando
os primeiros refugiados políticos italianos começaram a chegar aos subúrbios
hospitaleiros de Alexandria e outras cidades egípcias, onde inspiraram a criação
da “Universidade Popular Livre” [orig. “Free Popular University”] em 1901.
O
Egito, naquele momento, estava no auge de uma campanha sem precedentes, cada vez
mais desesperada, de modernização conduzida pelo estado, que aumentou a
integração do país à economia global durante a primeira e, em certo sentido a
mais intensa fase da globalização. De fato, o movimento constante das
comunidades do norte do Mediterrâneo para e pelos litorais leste e sul ao longo
de séculos – com mercadores, escravos, piratas, operários e ativistas – é lição
seminal de o quanto o Mediterrâneo sempre foi tradicionalmente integrado e,
deve-se esperar, voltará a sê-lo.
Italianos
e gregos, que no fin de siècle estabeleceram brilhantes comunidades de
dezenas de milhares nas maiores cidades das costas sul e leste do
Mediterrâneo, foram-se envolvendo cada vez mais nos movimentos trabalhistas
locais, para os quais trouxeram forte dose de anarquismo, inclusive de
anarcossindicalismo, especificamente focado nas lutas trabalhistas mediante a
auto-organização. Já há notícias de greves construídas e agitadas por
anarquistas, de prisões por trabalho ilegal de organizar trabalhadores já nos
anos 1890s e até antes.
O anarquismo, como qualquer outra
ideologia política que concorresse contra o nasserismo, foi posto de lado
durante os dias de glória do panarabismo nos anos 1950s e 60s. Mas pelo menos
alguns anarquistas egípcios contemporâneos traçam as próprias raízes até os movimentos dos anos
1940s [em árabe].
O
crescimento do movimento antiglobalização corporativa
O
surgimento do anarquismo no Egito no século 19 é o contexto histórico que ajuda
a entender que ressurja hoje, durante a grande era de luta de integração global
puxada pelo sistema global neoliberal ocidental – mas já não dominada por ele.
Desde que Sadat iniciou a abertura – infitah – nos anos 1970s, o Egito
passou a ser profundamente – mas desfavoravelmente – incorporado ao sistema
global, mediante relações de dependência com os EUA, com o FMI e com o Banco
Mundial, como fora já dependente na economia global puxada pela Europa, no
século 19.
Mubarak, o pai, e ainda muito mais
o filho tentaram usar as políticas
neoliberais
para
fortalecer o poder das elites econômicas dentro do Egito e globalmente.
Políticas de privatização e liberalização abriram portas com as quais nem a
elite egípcia jamais sonhara, ampliando muito o controle que exerciam sobre a
economia. O problema foi e continua a ser sempre o mesmo: maior concentração de
riqueza nas mãos dos mais ricos só acontece, se se precariza cada vez mais a
posição econômica de vasta maioria da população. O processo exigiu, em seguida,
não apenas repressão sempre crescente, mas também a cooptação de novos atores
para a elite do poder: fosse a emergente burguesia nos anos 1990s (cujo caso
exemplar é o próprio Gamal Mubarak), fosse o alto comando da Fraternidade
Muçulmana, na última década.
De Marrocos à Síria, as lutas por
“liberdade”, “justiça social”, “democracia”, “pão” e, especialmente “dignidade”
– palavra chave para as lutas antineoliberalismo, pelo menos desde que o
movimento Zapatista introduziu o conceito no centro de seu discurso
político no
início dos anos 1990s – são sempre, sobretudo, lutas contra o neoliberalismo.
Quanto a isso, são a continuação natural das lutas dos movimentos
antiglobalização corporativa da América do Norte e da América Latina e, depois,
das lutas europeias dos anos 1990s e início dos anos 2000s (cujos casos
exemplares são Buenos Aires, Londres, Seattle, Praga e Gênova), lutas que em
seguida se converteram no movimento antiguerra que emergiu nos EUA quando da
invasão do Iraque.
Teatros
de violência
Muitos
dos princípios anarquistas de organização que os ativistas de “bloco negro”
egípcios adotaram como seus – como a autodemocracia, com organização
descentralizada, e os confrontos não raras vezes violentos com as forças de
segurança e outros símbolos do poder sistêmico – já foram princípios
orientadores também da primeira geração de ativistas do “bloco negro”, no
movimento antiglobalização e anticorporações. São ativistas que emergiram, não
só de círculos anarquistas, mas também de grupos como Ya Basta!, Tutte Bianche e Attac (que já têm ramos em alguns países
árabes).
Os anarquistas também foram
fortemente impactados por movimentos de base latino-americanos, o principal dos
quais, os Zapatistas no México, como já escrevi em meu livro Why
They Don’t Hate
Us [Por que não nos odeiam], de
2005, constituíram o melhor modelo a seguir, para vários movimentos políticos de
jovens. O próprio instituto RAND
(.pdf) já alertava que “o
levante Zapatista demonstrou como
novas tecnologias possibilitaram que “enxames” de “moscas” atacassem e
eventualmente derrubassem governos”. Essas são, precisamente, as táticas que se
viram em ação na fase de definição, na Praça Tahrir, da revolução egípcia.
Pode-se
contra-argumentar que a “Batalha de Seattle”, no final de 1999, contra a OMC,
que pela primeira vez pôs o movimento nas manchetes e no mapa do ativismo
mundial, jamais teria recebido a atenção que recebeu, não fosse a violência
contra propriedade privada que se viu na prática dos manifestantes; aquela
violência foi e continua a ser fenômeno raro nos EUA, exceto nos “tumultos” de
rua em comunidades onde vivam minorias pobres.
Mas
já era bem claro, em setembro de 2000, no protesto contra o FMI em Praga, que o
uso da violência revolucionária, embora teatral e limitado à propriedade e a
forças de segurança, estava-se tornando contraproducente. A Polícia servia-se da
ameaça de violência para usar forças cada vez maiores e mais violentas que
passaram a prender e atacar violentamente também as manifestações pacíficas;
além de servir-se cada vez mais frequentemente de táticas de infiltrar-se nos
próprios movimentos. O clímax aconteceu no assassinato de um ativista italiano,
Carlo Giuliano, em Gênova, durante protestos contra reunião do G8, em julho de
2001, apenas dois meses antes de os ataques de 11/9 deslegitimarem completamente
qualquer tipo de protesto violento nos EUA e Europa, por toda a década seguinte.
Posto
em fórmula reduzida, a rotinização da violência nos movimentos contra a
propriedade privada, custou caro ao movimento antiglobalização; para começar,
custou-lhe parte significativa do apoio nos EUA e Europa; e, isso, porque nesses
países a maioria da população ainda não estava sofrendo sofrimento insuportável,
sob o sistema existente; sem isso, não havia meio pelo qual a população pudesse
estar preparada para ou disposta a suportar o nível de caos, de desordem e de
disrupção que a violência revolucionária visava a gerar. É possível que os
anarquistas e os ativistas mais hard-core dos movimentos antiglobalização
corporativa realmente trabalhassem para e desejassem “o fim do sistema”, como
tantos egípcios cantavam desde o início do levante (e, de fato, desde antes do
levante), mas praticamente todos os demais que enchiam a Praça Tahrir desejavam
apenas um processo de reformas menos doloroso.
Todos
os movimentos de militância de oposição política tornaram-se ainda mais difíceis
durante os anos da Guerra ao Terror de Bush, tanto porque o público estava menos
tolerante com qualquer oposição, como, também, porque os governos implantaram
leis antiterror, aumentaram os controles e a vigilância, perseguiram e em vários
casos assassinaram militantes ativistas.
A militância de oposição
reapareceria a seguir, com o crescimento dos movimentos Occupy globais, mas, sobretudo, na
Grécia, Espanha e, em certo grau, também nos EUA. Mas mesmo em meio à pior crise
econômica desde a Grande Depressão, as táticas de bloco-negro afastaram do
movimento, no mínimo, tanta gente quanta conseguiram atrair, levando
observadores normalmente sérios e sóbrios, como Chris Hedges, a definir a tática
do bloco negro (de fato, como vários outros, Hedges também fala erradamente do
“movimento”) como “o
câncer do movimento Occupy”.
Globalização
super bombada, no mundo árabe
O mundo árabe e, em termos amplos,
o mundo muçulmano, constituem ambiente muito diferente para lutas contra o
neoliberalismo e as várias políticas aí envolvidas, se comparados às sociedades
capitalistas ocidentais avançadas. Ganhos sem precedentes gerados pelo petróleo
permitiram desenvolvimento superficial muito rápido nos pequenos países do
Golfo, nos últimos 20 anos; mas no que tenha a ver com a situação econômica e
política em que vivem as populações da vasta maior parte da região, as coisas só
fizeram piorar horrivelmente
ao longo da última geração. Isso,
ao mesmo tempo em que a capacidade de as populações se conectarem culturalmente
– se não economicamente nem politicamente –, integrando-se aos movimentos e
ideias globais, aumentou a níveis também sem qualquer precedente.
Numa
sala de conferências onde havia 500 pessoas, nos protestos em Praga contra o
FMI, em 2000, ninguém levantou a mão quando perguntei se havia ali gente vinda
do mundo muçulmano. Mas poucos anos depois, o número de ativistas do Oriente
Médio e do Norte da África já aumentava notavelmente em manifestações pela paz
global e/ou por justiça global; ao mesmo tempo, beneficiavam-se também das
oportunidades criadas para eles por governos e ONGs ocidentais, para se
interconectarem entre eles e seus pares, nas redes, oficinas, conferências que
se chamavam “da sociedade civil”, no período que se seguiu à invasão dos EUA
contra o Iraque.
A
internet, é claro, tornou muito mais fácil aprender sobre táticas – como a
tática do bloco-negro – e permitiu que vários grupos na Região e para além e que
partilhavam objetivos e atitudes similares, tomassem conhecimento da existência
uns dos outros. Ao mesmo tempo, o crescimento do movimento dos Ultras –
claramente inspirado em movimento de torcidas organizadas de times europeus de
futebol – garantiu o laboratório de testes perfeito para experimentar e
aperfeiçoar táticas agressivas, eventualmente violentas, de confronto com forças
de segurança e gangues armadas por regimes ditatoriais. Essas táticas, entre os
dias 28/1/2010 e 4/2/2011, literalmente salvaram a revolução egípcia.
Não
surpreende que, quando foram perdendo a capacidade de modelar a situação
política, nos dois anos que se passaram depois do levante, os Ultras e
simpatizantes que se reuniram à volta deles tenham partido à busca de novas
estratégias, novas táticas e novos símbolos para reacender a velha chama e o
ímpeto inicial, e, tão importante quanto isso, para reassumir também o controle
da própria narrativa nacional, caminhando na direção de terreno mais favorável.
Elemento dos blocos-negros mascarado com balaclava |
Membros dos Socialistas
Revolucionários, o maior
grupo de anarquistas, em termos de conhecer estratégias e ter
clareza dos próprios objetivos políticos (e os quais, consequentemente, foram diretamente
atacados pelo Exército egípcio e, também, pela Fraternidade
Muçulmana),
repetidamente disseram, em longos contatos comigo desde o início da Revolução,
que a chave do sucesso estaria em manter-se capaz de aprender e ensinar de/para
círculos cada vez mais amplos da população.
A
explosão da discussão sobre a tática de blocos-negros no Egito – que se vê hoje
muito mais entre o governo, os apoiadores e a mídia de língua árabe, além dos
grandes jornais egípcios, no que na mídia do resto do mundo – é prova de o
quanto a estratégia política dos Socialistas Revolucionários sempre esteve
corretamente orientada.
Se se examina a proliferação de
páginas na internet de e sobre os blocos-negros (dentre muitas
outras, aqui,
aqui e aqui), videopronunciamentos de ativistas [ver também
aqui], tuítes e os
muitos que adotam o visual e os logotipos dos blocos-negros, e discussões com
amigos dentro do movimento mais amplo dos Ultras (dentre outros que muito têm
aprendido com as mudanças estratégicas introduzidas pelos blocos-negros), é bem
claro que, embora a adoção das táticas de blocos-negros tenha um centro de
irradiação a partir dos Ultras, de modo algum se limita às torcidas organizadas,
uma vez que nem todos os que adotaram as balaclavas negras para cobrir o rosto
são ou algum dia foram membros de qualquer das duas principais torcidas
organizadas de equipes de futebol no Egito, Zemalek ou Ahly.
É
também bem claro que, embora os ativistas que apareceram com a ideia de
identificar-se publicamente com a tática conhecessem bastante bem sua história
recente, seria errado assumir que partilhassem (ou, sequer, que algum dia tenham
construído debate consistente sobre) alguma agenda ou filosofia política
anarquista consequente; tampouco se deve supor que todos conhecessem em
profundidade o discurso anarquista histórico que sempre modelou o movimento Occupy global mais amplo. Esse, vale a
pena lembrar, é que foi diretamente inspirado pelos 18 dias históricos de
resistência popular na Praça Tahrir – se não nasceu ali, integralmente, do
estilo-fundamento anarquista de auto-organização revolucionária.
Por
outro lado, alguns ativistas autoidentificados dos blocos-negros egípcio
informam, como sua “universidade de origem” a UNAM (Universidad Autónoma de México), que tem
longa história de parentesco e afiliação com os Zapatistas; além disso, se
observa também um retorno a algumas das análises sobre as táticas de bloco negro
que se escreveram antes de 2001, as quais mostram forte semelhança entre os
desafios que o movimento
enfrentava
no ocidente, naquele momento, e enfrenta hoje no Egito.
A
revolução como destruição criativa
Imediatamente
depois das vitórias eleitorais da Fraternidade Muçulmana e do Partido
Fraternidade e Justiça, o desempenho anêmico da “oposição” oficial, representada
pela Frente de Salvação Nacional, e uma população desesperadamente carente de
qualquer tipo de recuperação econômica empurraram as forças revolucionárias, num
primeiro momento, para uma posição defensiva. Mas os protestos de massa e, em
seguida, a violência que cercou o veredito de Port Said, além do segundo
aniversário do início do levante de 25 de janeiro, ofereceram condições para
recalibrar todos os relógios e projetos políticos. O bloco-negro tornou-se
símbolo público da oposição militante que está, sim, literalmente, em marcha
contra uma ordem emergente e ainda instável.
Difícil exagerar os perigos que um
movimento popular de protesto bem organizado (mesmo que auto-organizado e
descentralizado) pode impor à elite do poder político no Egito. O chefe militar,
Abdel Fatah al-Sissi, não erra quando diz que os protestos em curso ameaçam
levar “ao
colapso do Estado”;
tampouco erram os juízes e procuradores em definir como “terroristas” os
especialistas nas táticas do bloco-negro. Mas o que, afinal, seria uma
revolução, se não tiver como objetivo o colapso do Estado que há? E como esperar
que os que ocupam hoje aquele poder em disputa não se sintam aterrorizados pelos
que hoje confrontam aquele poder?
Todas
as revoluções verdadeiras implicam um ato supremo de destruição criativa – um
impulso anárquico de reordenamento, que destrói a velha ordem, ao mesmo tempo em
que já vai criando algo novo que tomará o lugar da velha ordem. O motivo pelo
qual muitas revoluções perdem o rumo ou são sequestradas por forças quase sempre
diferentes e não raras vezes opostas às que lhes deram origem é, precisamente, o
fracasso nessa passagem revolucionária decisiva: da fase e dos discursos
destrutivos, para a fase e os discursos criativos gerativos. Vale para as
revoluções religiosas axiais, inclusive nas fés abraâmicas, tanto quanto vale
para as modernas revoluções políticas no México, na Rússia, na China ou no Irã.
O
impulso anárquico tem raízes diretas no fato de que nasce do sistema existente.
Mas se um Estado – vale dizer, o arranjo e a rede das relações de poder vigentes
– tiver de ser substituído por outro, um novo sistema tem de substituir o velho
que se desintegra. Assim também uma verdadeira revolução é combinação
potentíssima do que o sociólogo Manuel Castells chama de identidades de
“resistência” e de “projeto”; a primeira é estreita, fechada, hostil ao
diferente; a segunda é aberta, receptiva e orientada para o futuro.
Sem
essas duas identidades, não se pode “pôr abaixo o sistema” e criar outro mundo
que o substitua. Assim também, não se pode manter dezenas de milhões de pessoas
em apoio cerrado à destruição, se ninguém consegue sequer entrever qualquer
visão positiva de futuro.
O
problema é que, embora as duas metades da “destruição criativa” revolucionária
sobreponham-se quase perfeitamente durante boa parte do período revolucionário,
em algum momento futuro a destruição tem de ceder; e a criação tem de ocupar os
espaços como processo dominante; ou a revolução torna-se autodestrutiva,
niilista, é cooptada ou acaba por ser redirecionada (quase sempre por forças
militares já organizadas, nos fenômenos que se conhecem como “bonapartismo” ou
“cesarismo”). Nessa situação, os apoiadores resistentes desistem facilmente da
resistência e passam a apoiar ativamente qualquer estabilidade que qualquer
antigo regime restaurado (mesmo que não passe do que havia antes, metido em
novos uniformes ou ternos) lhe ofereça.
O
que fez de Tahrir evento realmente revolucionário durante 18 dias, mas,
infelizmente, poucas vezes desde então, foi que, naquela praça, se via,
sentia-se a possibilidade de um novo Egito, um Egito diferente, um Egito
capaz de realizar os melhores sonhos dos seus filhos. Jovens e velhos, ricos e
pobres, muçulmanos e coptas, metaleiros e sufis, todos irradiavam silmiyya
– a alegria da paz – por mais que berrassem sem parar, o mais alto e forte
possível, dia e noite, incansáveis.
Viveu-se
ali uma experiência limítrofe, paradoxal, experiência que Adel Iskandar,
professor de Georgetown e coeditor de Jadaliyya, relembrou em conversação
recente sobre a situação atual. Para ele, foi “fenômeno de duas fases: a
primeira, de 25/1 a 4/2, foi violenta, confrontacional, disputada à moda do
bloco-negro (...); a segunda, de 4-11/2, foi a Tahrir do imaginário utópico...
Essas duas fases continuam a existir e manifestam-se em frequência
alternada”.
A
questão chave é, claro, como controlar a oscilação, sobretudo se não se pode
jamais ter certeza de qualquer ponto de virada, nem se está virando, nem para
que lado viraria. Já há dois anos, o “estado” egípcio vive em curto circuito; a
estrutura mais interna – o estado profundo onde operam os senhores do poder e
por cujas mãos fluem toda a riqueza e todo o poder no Egito – permaneceu
aparentemente estável, e está crescendo um pouco, com a Fraternidade Muçulmana e
suas próprias redes de poder e patrocínio já sendo absorvidas, embora com alguma
dificuldade, naquela velha elite. Mas, fora daquele núcleo mais duro, o estado
continua gelatinoso e poroso; e se a oposição pode arrancar dali algum poder e
alguma legitimidade, é verdade, também, que o próprio sistema pode andar, como
alertou o general al-Sissi, diretamente para o colapso.
Milhões,
se não dezenas de milhões de egípcios compreendem que se a estrutura do Estado
re-enrijecer-se na forma que parece ter hoje, todos estarão mais ou menos
recongelados em mais ou menos o mesmo lugar em que viviam sob Mubarak, ou serão
empurrados ainda mais para as margens; ou serão completamente cuspidos para fora
do estado. De fato, o “estado de emergência” mais uma vez declarado, agora por
presidente democraticamente eleito, e os ataques contra mulheres organizados por
forças claramente alinhadas ao velho regime, refletem essa necessidade
desesperada de desarticular o maior número possível de redes de poder popular,
antes de que o novo sistema endureça novamente.
É
quando entram em cena as táticas de combate dos blocos-negros
As táticas dos blocos-negros são
hoje uma das mais criativas, das mais imaginativas respostas ao endurecimento
geral no Egito. Os “especialistas” que a desqualificaram como “soluções
idiotas” não
conhecem, nem compreendem, a história das táticas anarquistas e o quanto já se
provaram produtivas no Egito revolucionário.
A
questão é como a maioria dos egípcios, que não estão diretamente envolvidos nos
combates de rua (mas são diretamente afetados por eles) compreenderão essa
dinâmica. Como reagirão ao tipo de violência tática produtiva de que são prova e
instrumento os princípios anarquistas e as táticas de bloco negro, se
continuarem ativas nas ruas e o governo responder com violência ainda maior?
Será
que perceberão o aspecto projetivo e criativo dos protestos e os aceitarão como
tática necessária e único meio não apenas para concluir o serviço de derrubar o
velho sistema, mas, também, para construir economia social e política realmente
nova para o Egito? Ou se concentrarão só no elemento destrutivo, de resistência
destrutiva que há neles – como se aí estivessem para acelerar a desintegração
social, política e econômica e gerar o caos, de tal modo que qualquer sistema
religioso-autoritário, por impalatável que pareça ao primeiro trago, logo
parecerá melhor alternativa?
Em todos os casos, temos de
analisar o trabalho tático dos blocos negros, antes de julgá-los. A lealdade
desses grupos militantes aos demais manifestantes já foi várias vezes posta à
prova. Semana passada, quando mulheres foram brutalmente atacadas na Praça
Tahrir, e já nem grupos como “Operação Antiabuso
Sexual”
conseguiam protegê-las ou afastá-las de onde estavam, ativistas de blocos
negros surgiram não se
sabe de onde e, com
porretes e lança-chamas dispersaram grupos de atacantes armados e conseguiram
levar as mulheres e outros ativistas para local seguro, de onde foram retiradas
em segurança da
Praça.
Sucesso
limitado, futuro melhor?
Vale
a pena observar que o sucesso do Zapatismo sempre foi muito limitado à própria
região. Os Zapatistas conseguiram criar uma zona autônoma – embora
constantemente ameaçada – para grupos indígenas mexicanos que vivem na região de
Chiapas. Não alteraram fundamentalmente a economia mexicana, nem derrotaram, nem
lhe impuseram ameaça significativa, ao “neoliberalismo global”, contra o qual o
movimento abriu guerra dia 1º de janeiro, há 19 anos.
Subcomandante Marcos |
A
frase que o subcomandante Marcos disse a turistas desapontados por não poderem
visitar ruínas maias em Chiapas, no dia em que a revolução começava – “Perdoem,
mas hoje estamos fazendo uma revolução aqui” – também já foi ouvida por muitos
turistas impedidos de visitar o Museu de Antiguidades da Praça Tahrir durante a
revolução.
De
fato, embora conter a marcha brutal do neoliberalismo nas montanhas Lacondonas
de Chipas seja, sem dúvida, grande vitória, a revolução egípcia não se
implantará se se limitar só a uma região ou só a um grupo social. O sucesso
inicial e a vitória final dependem, precisamente, de que se infiltre por toda a
sociedade e alcance todo o país. Não há revolução parcialmente vitoriosa, nem
pequenos territórios “libertados”, como Tahrir, conseguirão sobreviver cercados
por um oceano de autoritarismo neoliberal da Fraternidade Muçulmana protegido
pelos militares.
É
bem visível que as táticas de bloco-negro e os militantes anarquistas
revolucionários não conseguirão no Egito muito mais do que os Zapatistas
conseguiram em Chiapas.
Mas
se os revolucionários anarquistas de blocos negros no Egito conseguirem manter
em desequilíbrio os donos do poder, enquanto vão injetando novo ânimo na
oposição que os jovens já comandaram em Tahrir, oferecendo-lhes visão positiva
criativa de resistência e estratégias que permitirão levar a revolução egípcia
para o seu terceiro ano de lutas, convencendo números crescentes de cidadãos
comuns a não desistirem e a manter ativada a luta por liberdade real, dignidade
e justiça social, terão cumprido muito dignamente um papel de máxima importância
nessa torturada transição pela qual passa o Egito, de governo autoritários para,
afinal, algum sistema realmente democrático.
Mark Levine* é professor de História do Oriente Médio na UC Irvine,
e professor-visitante emérito do Centro de Estudos do Oriente Médio na Lund University, Suécia. É autor de The Five Year Old Who Toppled a Pharaoh
[O pequeno de cinco anos que derrubou um
Faraó] (no prelo).
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