quinta-feira, 25 de novembro de 2010

EUA: como criança em loja de doces da OTAN

25/11/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Posto na alça de mira com precisão cirúrgica de revista-scanning de corpo inteiro e nu em grande aeroporto norte-americano, o Pentágono acabou por ganhar uma fantástica caixa de chocolates – e mais alguma coisa – de seus 27 aliados, na reunião de Lisboa, semana passada, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Chocolates sortidos, dos mais variados sabores.

Um: o novo “Conceito Estratégico” da OTAN, completinho, com equipamento para cyber-guerra tamanho “Europa”, padrão “bom como os velhos tempos”, – o novo “Cyber Comando do Pentágono”, definido eufemisticamente como “proteção cibernética descentralizada”.

Dois: A promessa de que toda a Europa estará – teoricamente – protegida sob uma bolha-escudo de defesa antimísseis (“a defesa antimísseis será parte integrante de nossa postura de ampla defesa”).

Três: bombas atômicas táticas dos EUA definitivamente estacionadas em cinco bases militares espalhadas por toda a Europa.

Quatro: 20 “parceiros” da OTAN que continuarão a enviar soldados para a guerra no Afeganistão, de fato... Eternamente. (A Declaração da Cúpula de Lisboa, pelo menos, não se perde em tergiversações: “A transição será feita conforme as condições que se apresentem, sem limites de tempo, e não está condicionada à retirada das tropas das Forças Internacionais de Suporte à Segurança [ing. ISAF, International Security Assistance Force].”)

A OTAN arranjou também o que parece ser um novo “parceiro” na defesa antimísseis para toda a Eurásia – do Báltico ao Oceano Pacífico: a Rússia.

Mas, ao contrário da narrativa que a mídia-empresa ocidental está divulgando, a Rússia só concordou em participar de uma análise de “possíveis” ameaças de mísseis e de um vago “diálogo” e ainda não decidiu associar-se à OTAN, o que só terá de fazer, se fizer, na reunião de ministros da Defesa dos países da OTAN em junho de 2011.

As Guerras nas Estrelas remake do Pentágono/OTAN foram incansavelmente divulgadas como defesa contra um muito altamente improvável ataque total de mísseis balísticos a serem disparados ou pelo Irã ou pela República Popular Democrática da Coreia (“Coreia do Norte”). Ainda que se assuma que não se trata de plágio de roteiro de Marvel Comics, tal sistema dependeria de Sistemas Aéreos Embarcados de Alerta e Controle [ing. Airborne Warning and Control Systems], que qualquer hacker moderadamente esperto conseguirá invadir e detonar. E tudo isso depende de os respectivos líderes de países-membros do “eixo do mal” Irã e Coreia do Norte ter interesse no negócio do seppuku – de suicídio ritual.

Assim sendo, de fato, o “escudo-bolha” de defesa não passa de mito de propaganda (“public-relations”, como se diz). Mas, se esse remake de Guerras nas Estrelas for interpretado como uma espécie de bomba-de-fabricação-caseira-dos-Talibãs-tamanho-gigante, concebida para “conter” em futuro próximo um desafiante estratégico chamado China, então... o script fica muito mais saboroso.

Um prodígio de inteligência
  
A OTAN prometeu entregar aos afegãos a segurança do Afeganistão lá pelo final de 2014. Mas, pelo sim pelo não, também prometeu ocupar para sempre o Afeganistão.

2014 (alguém ainda se lembra de 2011?) é “objetivo aspiracional”, nas palavras do porta-voz do Pentágono Geoff Morrell. A questão de quantos soldados dos EUA/OTAN entrarão na festa a partir de 2015... Aí está exemplo clássico do que um dos ex-secretários de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, chamava de “dado ignorado que todos conhecem” [ing. “known unknowns”].

Em matéria de “dado ignorado que todos conhecem”, o campeão é o Gambito do Falso Mulá.

Um diplomata disse ao New York Times que o Mulá Akhtar Muhammad Mansour, suposto braço direito do invisível e inacessível líder Talibã Mulá Omar, e envolvido em discussões com o governo Karzai, não é o verdadeiro mulá: é falso mulá. O general David Petraeus teve de correr para salvar – se não para mascarar – a cena. E disse que o Pentágono desconfiara de que havia alguma coisa errada. A OTAN estava envolvida naquelas discussões – de fato, já há vários meses. O falso mulá embolsou muito dinheiro no negócio. E, claro, a gangue do verdadeiro Mulá Omar em Quetta deve estar rindo tanto que os turbantes, não as cabeças, rolam.

Mais uma vez, as super infladas altas competências multilíngues da OTAN não comprovaram que bastaria dar uma esfregada no polonês, quando você precisar pensar em língua pashtun. Mais uma para os arquivos implacáveis dos espetaculares sucessos dos serviços de inteligência do Pentágono/OTAN.

Desde 2001, a autoproclamada “missão” da OTAN tem sido combater o “terrorismo internacional”. Até os agentes-soldados rasos de mais baixo nível da CIA [ing. Central Intelligence Agency] sabem que não há “al-Qaeda no Afeganistão”, além de 20-30 instrutores-treinadores jihad invisíveis. Essa guerra nada tem a ver com a al-Qaeda.

Mas 42% da população do Afeganistão são pashtuns.

A OTAN ataca qualquer um da facção de Gulbuddin Hekmatyar da rede Jalaluddin Haqqani, e todas as facções da guerrilha desorganizada que apareçam entre uma e outra.

A “estratégia” do Pentágono/OTAN consiste essencialmente de assassinar comandantes de nível intermediário dos Talibãs ou de qualquer grupo guerrilheiro. O problema é que praticamente todos eles são líderes de tribos pashtuns. Cada comandante intermediário assassinado implica tribos rebeladas em massa, sejam ou não aliadas dos Talibãs, que juram matar os soldados invasores. No frigir dos ovos: a única guerra que há no Afeganistão é guerra do Ocidente contra os pashtuns.

Em fracasso ainda muito mais retumbante das “Public Relations (PR)”, o Pentágono/OTAN esqueceram-se de informar aos pashtuns que foram convertidos em inimigos mortais de todo o Ocidente. Relatório de um think-tank do Conselho Internacional sobre Segurança e Desenvolvimento [ing. International Council on Security and Development (ICOS)] acaba de comprovar que 92% dos pashtuns que vivem nas províncias de Helmand e Kandahar absolutamente jamais ouviram falar do 11/9. O relatório observa que “a falha de comunicação” entre os afegãos e a “comunidade internacional” é “dramática”. Arquive essa na pasta “Os maiores erros de subavaliação da década”.

Assim se demonstra que a mais terrível ameaça que pesa sobre a OTAN e seu ímpeto expansionista eterno, dos Bálcãs à ex-União Soviética – que mata de medo 36 divisões, 120 brigadas, 11 mil tanques, 23 mil peças de artilharia e 4.500 jatos bombardeiros da OTAN (só contando o que existe estacionado na Europa) – é um bando de pashtuns furiosos.

Se a OTAN já treme de medo dos pashtuns, imagine o que acontecerá quando descobrirem por lá os tuaregues – nômades que transitam por quase todo o Sahara central e o Sahel, com números consideráveis deles também no norte do Níger e do Mali.

Face à atual campanha orquestrada em todo o Ocidente para mostrar os tuaregues como peões “do mal” conhecido como “Al-Qaeda no Magreb [ing. al-Qaeda in the Maghreb (AQIM)]”, alguém aí avise a OTAN de que os tuaregues sabem ser osso tão duro de roer quanto os pashtuns. Deus tenha piedade dos brancos e da pesada carga que lhes coube nesse mundo![1]

A OTAN fez um acerto com Moscou para enviar apoio logístico ao Afeganistão através de território russo – evitando o Paquistão. Com isso, Islamabad foi empurrada para o centro da rinha. Da próxima vez, Washington nem se dará o trabalho de pedir licença para escalar, na guerra com aviões-robô. Aliás, esse jogo já começou.

O “clima” agora é bombardear não só as áreas tribais (sobretudo depois de a rede Haqqani ter-se espalhado pelo norte, do Waziristão Norte ao Kurram); trata-se de bombardear também Quetta, capital do Baloquistão – onde pode estar escondido (rindo tanto, que o turbante escorregou de lado) o Mulá Omar, líder dos Talibãs.

O ministro do Interior do Paquistão evidentemente nega tudo – e diz que a CIA e o serviço secreto do Paquistão [ing. Pakistan's Inter-Services Intelligence (ISI)] “ampliaram sua cooperação”. Assim sendo, devem-se esperar vastos “danos colaterais” em Quetta e nos arredores da cidade; e os movimentos separatistas do Baloquistão engordarão. Moral da história: homens de verdade mudam-se para Quetta.

Uma boutique que vende guerra

Seja qual for o quociente de drama envolvido, não há dúvida de que o abraço nuclear/cyber-guerra/de Defesa da OTAN anseia por cobrir todo o mundo branco. Como se proclama na declaração da reunião de Lisboa: “A promoção da segurança Euro-Atlântica é mais bem servida mediante uma vasta rede de relacionamentos de parceria com países e organizações em todo o globo.” Tradução: A Europa, depois de inaugurar boutique monstro para seduzir as hordas consumidoras da Ásia, agora passa a trabalhar basicamente como base avançada de operações de guerra em todo o planeta.

De fato, os EUA, a OTAN e a União Europeia estão hoje em vias de formar uma e a mesma entidade – como disse o presidente do Conselho da Europa da União Europeia, burocrata belga sem rosto Herman Van Rompuy, aos líderes da OTAN em Lisboa: “A capacidade de nossas duas organizações para modelar o nosso futuro ambiente de segurança será enorme, se trabalharmos juntos. É hora de derrubar as paredes que restam entre essas organizações."

Pashtuns do mundo uni-vos. Se continuarem a sacudir o pau da tenda, aquelas paredes ruirão de uma vez por todas.



Nota de tradução
[1] No orig. “God help the white man's burden”. “The White Man’s Burden: The United States and The Philippine Islands” é título de um poema do poeta e romancista britânico Rudyard Kipling. Nesse poema, Kipling suplica aos EUA que assumam “a carga” [burden] do novo império [branco] do mundo.
O poema apareceu na edição de fevereiro de 1899 da revista McClure’s logo no início da guerra EUA-Filipinas e da ratificação pelo Senado dos EUA do Tratado que punha Porto Rico, Guam, Cuba e as Filipinas sob controle dos EUA.
Theodore Roosevelt, que imediatamente depois seria eleito vice-presidente e, depois, presidente, copiou o poema e enviou ao senador Henry Cabot Lodge, seu amigo, com a  seguinte nota: “A poesia é ruim, mas a ideia, do ponto de vista, da expansão é boa”. Nem todos concordaram. O poema tem traços claros de racismo, e “White Man’s burden” passou a ser expressão eufemística para “imperialismo” – sentido em que, parece, é usada nesse artigo [Ver emThe White Man’s Burden”: Kipling’s Hymn to U.S. Imperialism]

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