sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A POLÍTICA DA DÍVIDA - "Dívida e Democracia" (Parte 1 de 2)

11/11/2010, Chan Akya, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
  
As cartas mostram complicações em grande escala entre o que querem os mercados e o que querem os cidadãos, obrigados a escolher entre austeridade ou déficits sempre crescentes nas economias desenvolvidas. Pode acontecer de os compradores começarem a preferir papéis da dívida emitidos por ditaduras, aos papéis da dívida emitidos por democracias, como via simples para escapar de riscos e evitar incertezas. 

Os bancos centrais só fazem confundir ainda mais as coisas para os mercados, tanto quanto os estridentes comentários das agências multilaterais e de alguns compradores. Nada disso anuncia bom tempo para o crescimento potencial nos próximos anos. Possivelmente, tudo isso anuncia nuvens de tempestade na rota da própria democracia. 

Dívida e democracia

Há muitos anos, quando eu ainda engatinhava na análise dos mercados da dívida de países emergentes, um conhecido, mais velho, chamou-me de lado e contou-me o que para ele seria um dos “segredos do negócio”: sempre fugir de papéis da dívida emitidos por democracias. Claro, meu amigo era nativo de uma democracia ocidental, mas nem por isso sem opiniões sobre como os países mais pobres devem ser governados. 

A ‘lógica’ era a seguinte: democracias em geral são difíceis de governar e confusas, novos governos eleitos alteram antigos acordos construídos com muito trabalho com governos derrotados. Ao contrário, as ditaduras são confiáveis – oposições internas praticamente sempre acabam por sumir e todos os contratos sempre são honrados, porque “afinal de contas, o dinheiro do governo vem dos contratos firmados”. 

Esse meu ‘mentor’ mostrou-me um gráfico para comprovar sua tese; mas o que resultou bem claro daquela reunião foi que a democracia simplesmente não seria recomendável ou, no mínimo, que dificultaria muito gravemente a gestão da dívida externa de países. Não tenho aquele gráfico; mas dois outros, publicados essa semana por Bloomberg ajudam a demonstrar a mesma tese. No primeiro, veem-se os níveis do credit default swap (CDS) [1] de papéis de dívidas de cinco anos emitidos por várias democracias europeias: 


Comparem-se o mesmo gráfico e os CDS de várias sociedades não democráticas (p. ex. China, Rússia e Arábia Saudita, como se vê no gráfico abaixo, também de Bloomberg: 


Portanto, meu “guru” não errou – ditaduras são mais bem-sucedidas que democracias, pelo menos no que tenha a ver com o mercado da dívida externa [2]. Claro: raciocino aqui com os dedos cruzados, dentre outras razões porque estou trabalhando com amostras pouco representativas, colhidas dos dois pontos extremos do espectro das democracias e das ditaduras). 

Mas vale a pena constatar que as médias gerais do Credit Default Swaps (chamadas “Índices de CDS”) comprovam praticamente a mesma tese, se se comparam o alto risco relativo de empresas domiciliadas na Europa e o risco genérico de países da periferia da Europa (no gráfico abaixo, designados como CEEMEA (Central and Eastern Europe, Middle East and Africa). 


Interessante nesse gráfico é que, depois de terem andando juntos por longo período de tempo, desde junho de 2010 o custo de seguro para empresas europeias e de países emergentes de alto risco caiu consistentemente; simultaneamente, o custo equivalente dos seguros para papéis da dívida emitidos por países ricos e desenvolvidos (a linha branca) subiu consistentemente.

Por falar de decoupling [3]

A explicação mais simples para essa dicotomia aparece no quadro seguinte, produzido pelo Fundo Monetário Internacional [ing.International Monetary Fund (IMF)] e reproduzido em vários jornais, inclusive no Wall Street Journal semana passada; o quadro detalha os empréstimos a serem tomados por alguns governos, em relação ao PIB de vários países desenvolvidos, que alcançam a cifra espantosa de US$10,2 trilhões em empréstimos no próximo ano. Vale observar que o único país que prevê diminuição acentuada dos empréstimos em relação ao PIB é a Irlanda – país que implementou dramático plano de austeridade para reduzir os gastos do governo. 


Se você fosse ministro das Finanças de país que estivesse precisando de muito dinheiro para os próximos anos, e visse o custo dos seguros para seu empréstimo (seu CDS) subindo à estratosfera, quais, de fato, as escolhas que haveria à sua frente? O que diria aos cidadãos sobre a situação? E, sobretudo, o que você esperaria que os cidadãos de seu país lhe respondessem ou sugerissem?

Por tudo isso, assisti com alguma ironia aos eventos das últimas semanas em algumas democracias ocidentais. Destaco adiante as mais significativas:

a) Os resultados das eleições de meio de mandato contra as políticas do presidente Obama nos EUA, com retorno triunfante dos Republicanos à cena do crime (que eles cometeram), a saber, a crise financeira dos EUA de 2008.
b) A insistência dos alemães sobre novas políticas para a Europa que forcem os que invistam na dívida europeia a partilhar as dores de qualquer revés, mais do que esperar (ou cobrar o correspondente custo de seguro) algum simples ‘resgate’.
c) Greves que paralisaram a França por ainda poucos dias nas últimas semanas, mas que anunciam greves maiores para breve, nos setores de transportes, do funcionalismo público e dos bancos.
d) Ao mesmo tempo em que a disposição para mais austeridade no Reino Unido parece estar avançando com menos drama que em outros casos, houve greves no metrô de Londres, que causaram prejuízos de bilhões de pounds numa economia já fragilizada.
e) Aumentam os protestos contra o governo na Grécia; extremistas enviaram cartas-bomba a vários chefes de Estado europeus e a várias embaixadas e consulados em Atenas.

Simultaneamente, os bancos centrais passaram a defender alguma espécie de status quo nos próprios quintais:

1. O Federal Reserve dos EUA anunciou plano para comprar $600 bilhões em títulos, como nova ação de “flexibilização quantitativa” [ing. quantitative easing] (ver “The Incorrigibles”, Asia Times Online, 16/10/2010).
2. O Banco Central Europeu liberou os juros, reiterando sua preferência por governos europeus que trabalhem firmemente ligados a ele ao mesmo tempo em que implementem plano de austeridade fiscal mais realista.
3. O Banco da Inglaterra, mantendo os juros controlados, alertou para “longo período de inflação” – o que de fato manifesta sua disposição para permitir taxas reais de juros negativas, para manter o controle sobre a economia do Reino Unido.
4. Depois de ter vendido todos os tipos de títulos, inclusive papéis do governo, o Banco do Japão começou agora a vender estoques japoneses, principalmente fundos de investimentos imobiliários, ao mesmo tempo em que continua tentando manter desvalorizado o yen em relação às principais moedas.
5. Os bancos centrais da Austrália e da Índia subiram as taxas de juros durante a semana, preocupados com os efeitos da inflação importada sobre suas economias e sistemas políticos.

Mas os bancos centrais e suas políticas idiotas não são o tema desse artigo – escreverei mais detidamente sobre suas tolices noutra oportunidade. Em todos os casos, e para que as coisas não percam a graça, várias externalidades continuam absolutamente fora de qualquer controle:

a. A Alemanha criticou as políticas “incompreensíveis” dos EUA na tentativa de despertar a economia, com tal foco na austeridade fiscal, que Ludwig von Mises sentiria orgulho.
b. China preparou-se para um show contra os EUA na reunião do G-20, com um plano para implementar limites numéricos em déficits / surperávits, apesar de o Banco Central chinês ter lançado vários comentários contra a QE2 [ing. “quantitative easing” (flexibilização quantitativa) 2].
c. O presidente do Banco Mundial voltou a pedir novas discussões sobre a reintrodução do padrão-ouro, atualizado de modo a refletir a economia global atual. 

Todas essas medidas compõem o quadro do que acontece em democracias inibidas por pesadas dívidas externas em todo o mundo. 

PROVA n. 1: Obama foi rejeitado

O tema desse artigo é a escalada de revoltas populares contra governos, no mundo desenvolvido, nas últimas semanas. Nesse sentido, a principal evidência a ser considerada é a rejeição, pelos eleitores dos EUA, do presidente Obama. 

Seu Partido Democrata foi arrasado nas urnas pelos Republicanos, que conseguiram eleger uma folgada maioria da Câmara de Deputados, embora o Senado permaneça sob controle dos Democratas, mas por pequena diferença. Quem acompanhe o que a imprensa dos EUA tem dito sobre esse tema, poderá supor que a rejeição teve a ver com os fracassos de Obama que não conseguiu estimular a economia, continua gastando demais em projetos deteriorados e só cuidou de proteger quem não mereceria sua proteção (os banqueiros). 

Nesses termos, é difícil entender exatamente o que defende a oposição que de fato derrotou o partido político de Obama. O slogan mais repetido é “é preciso controlar os déficits”, apesar de qualquer professor de aritmética saber explicar que “déficit” significa, simplesmente, que se gasta mais do que se arrecada. Dado que os Republicanos jamais concordarão com medidas para aumentar a arrecadação, que alternativa restaria para cortar gastos? 

É onde, afinal, tudo volta ao chão, digamos assim. Muito me interessaria ver políticos, em plena recessão, discutindo modos para impor austeridade aos eleitores e, sobretudo, sugerindo cortes de direitos sociais e de bem-estar social de milhões de cidadãos. Para evitar qualquer dúvida sobre o significado da frase acima, explico que não espero que algum dia aconteça de vermos os Republicanos atirando no próprio pé, propondo medidas efetivas de austeridade. 

Esse fato nos leva de volta à questão de saber do que se trata, de fato, nesse drama: trata-se de mudar só para ‘variar’, não para mudar de fato alguma coisa essencial ou importante. Eleitores menos emocionais já teriam percebido que tudo começou pelos erros do Federal Reserve que desde 2000 erra sem parar na organização e comando do setor financeiro, auxiliado pelos deputados e senadores Republicanos no mesmo período. Por causa daqueles erros, aconteceram vários episódios de financiamento predatório e super-super expansão da alavancagem em todo o sistema financeiro. 

Se a oposição está sem rumo, o Partido do presidente tampouco parece ter qualquer ideia sobre o que quer e não dá sinais de ter aprendido qualquer lição da derrota nas urnas. Surgem várias sugestões – pela esquerda, do economista Prêmio Nobel e colunista do New York Times Paul Krugman & Co., que acusa o presidente de ter perdido as eleições porque não foi suficientemente “esquerdista”, i.e., não propôs maior intervenção do Estado na economia do que a intervenção que foi feita. Outros, no Partido, culpam o presidente por não ter sido suficientemente “centrista”.

O que tudo isto mostra a investidor estrangeiro que considere comprar papéis da dívida pública dos EUA  é, evidentemente, confusão em escala gigante. Não há saída à vista em termos de política governamental; e, embora não se possa dizer, de fato, que Obama já seja “pato manco”, a ideia tampouco parece completamente absurda.

A única certeza que se pode extrair de tudo isso parece ser um tipo de incerteza política semelhante àquela para a qual meu ‘guru’ alertou-me, sobre investimentos em mercados emergentes, à qual me referi no início desse artigo. O simples fato de que já se aprofundam as fissuras políticas em vários países, já agora, imediatamente depois de uma crise financeira, sugere que o caminho à frente está cheio de obstáculos para todas as democracias, para não falar dos golpes abaixo da linha da cintura que se devem temer como reações do mercado de dívidas, até que se estabilizem as tendências de crescimento.

A seguir: Pay up, or wiggle out: Part 2 de 2 [aprox. “Pague, ou libere a cadeira”]

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NOTAS
* Essa tradução precisa ser revista por especialista em finanças, que conheça a terminologia específica, que não conhecemos. O que aqui fazemos é apenas chamar a atenção para esse tipo de reflexão, de melhor qualidade e absolutamente mais interessante que as “análises” feitas por jornalistas e “especialistas” da Rede Globo ou dos jornalões paulistas, todas iguais(NT).

[1] Em geral a expressão não é traduzida no Brasil. Designa operação em que se trocam créditos duvidosos por créditos “melhores” (default). Também “contratos de proteção creditícia derivada”, de onde o substantivo “derivativos”. Ver em: Credit default swaps 
 
[2] Os Credit default swaps (CDS) são cotados por pontos: 100 pontos básicos = 1%; quanto mais alto o número, pior a qualidade do emissor considerado. Portanto, se os níveis dos CDS sobem, diz-se que o seguro do crédito subiu de preço, o que significa que o mercado avalia que aquele crédito tem baixa confiabilidade.

[3] O termo tem a ver com “separar” ou desconectar as economias nacionais e a economia dos EUA. Em “The Decoupling Debate”, lê-se um resumo simples da questão [aqui traduzido]: “Há três anos, a crise financeira que atingiu os EUA espalhou-se pelo planeta e arrastou o mundo para a pior recessão dos últimos 70 anos. Hoje, com o mundo já finalmente emergindo da recessão, a recuperação dos EUA mostra-se mais lenta do que o esperado. Os EUA arrastarão novamente o mundo de volta à recessão? Vários economistas dizem que não: dessa vez, mesmo que os EUA espirrem, o mundo não terá gripe”
[4/10/2010, Daily Finance. O artigo integral pode ser lido em: A Decoupling World Can Thrive Despite a Weaker U.S. Economy].

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