sábado, 20 de novembro de 2010

Recomenda-se Estudar a História

Não faz sentido comparar Dilma Rousseff ao general Eurico Gaspar Dutra

Por Sydenham Lourenço Neto – Doutor em ciência política pelo Iuperj, é professor da Uerj e da PUC-RJ.
No dia seguinte à eleição de Dilma Rousseff, jornais de todo o Brasil começaram a especular sobre o retorno de Lula em 2014, alguns, inclusive, na manchete principal. Dentro da mesma expectativa, não foi completamente surpreendente que alguns colunistas tivessem sugerido um paralelo entre Dilma e o general Eurico Gaspar Dutra, que governou o Brasil no intervalo entre os dois períodos de Vargas. Enfim, muitas vezes o próprio Lula foi comparado a Vargas.

Dilma, assim como Dutra, teria sido eleita para uma espécie de mandato-tampão. Dilma, assim como Dutra, seria uma escolha pessoal do antigo governante, comprometida a manter as mesmas políticas sociais e econômicas. Dilma, assim como Dutra, seria marcada pela ausência de carisma e de definição política própria, o tipo ideal para apenas esquentar a cadeira para a volta do verdadeiro mandatário.

A presidência de Dutra, até em razão da imagem de mandato-tampão, foi pouquíssimo estudada pela historiografia brasileira. Com exceção de pequenos fascículos de coleções sobre presidentes ou verbetes em dicionários históricos, dispomos basicamente de textos relativamente antigos e inspirados numa historiografia tradicional. Ainda hoje, quem se interessa pela presidência de Dutra precisa consultar o livro O General Dutra e a Redemocratização de 45, escrito por Osvaldo Trigueiro do Vale com o objetivo explícito de comemorar o centenário do nascimento do general.

O livro tem caráter laudatório mal disfarçado. Ainda assim, pela quantidade de informações que fornece, acaba sendo uma fonte da qual ainda não podemos prescindir. Mesmo a política econômica do período Dutra não foi estudada de forma considerável e um dos poucos textos recentes sobre o tema, de Fausto Saretta, tem o título de "Um Elo Perdido: Um estudo da política econômica do governo Dutra". Claramente, o autor chama a atenção para um elo, quase esquecido, entre os dois governos de Vargas.

A quase ausência de trabalhos recentes sobre a presidência de Dutra facilita a tarefa de quem deseja forçar as informações até encontrar semelhanças entre Dutra e Dilma. A comparação de períodos históricos é tarefa por si só bastante complicada, ainda mais quando orientada pelo desejo de construir uma imagem negativa ou positiva. Mesmo quando aparentemente encontramos fenômenos semelhantes é preciso ter cuidado, mas no caso que estamos discutindo, até o momento ao menos, há muito mais diferenças do que semelhanças.

Dutra não foi escolhido por Vargas, seu nome foi imposto. No início de 1945 a queda do Estado Novo estava na prática decidida e nem Vargas poderia se opor às várias pressões nesse sentido. A oposição contava com um candidato: o brigadeiro Eduardo Gomes. Muitos dos integrantes do próprio governo acreditavam que a continuidade de Vargas era inviável, ele não poderia conduzir o processo de democratização do País e muito menos tentar um novo mandato naquele momento. 

Políticos como o interventor de Minas Gerais, Benedito Valadares, e o embaixador do Brasil em Portugal, João Neves da Fontoura, instavam Vargas a lançar a candidatura de Dutra com o objetivo de dividir o apoio das Forças Armadas e evitar que elas, unidas, caminhassem para uma solução golpista. Fontoura teria dito a Vargas em março de 1945: “Ou lança a candidatura de Dutra ou será deposto esta semana”. Não era um vaticínio excessivamente paranóico, Dutra já havia sido convidado por outros chefes militares a participar da derrubada de Getúlio.

Vargas decide publicizar seu apoio à candidatura de Dutra, mas não se esforça minimamente por sua vitória eleitoral. Ao contrário, o presidente inicia um movimento de aproximação com os comunistas e estimula que lideranças populares, como o paulista Hugo Borghi, lancem a campanha queremista: “Queremos a Constituinte com Getulio”.

Enquanto isso, a candidatura de Dutra se esvazia. Na medida em que os movimentos de Vargas mais explicitamente apontavam na direção do continuísmo, crescia dentro das Forças Armadas a pressão para que o presidente fosse derrubado antes das eleições, o que acabaria a ocorrer em 29 de outubro de 1945, contando com o decisivo apoio de Dutra. Vargas só declara apoio à candidatura do general nos últimos dias de novembro, e a eleição ocorreria em 2 de dezembro, e o fez porque a vitória de Eduardo Gomes seria a pior opção para ele e para todos os seus aliados. Mas mesmo esse apoio tardio parece ter sido crucial para garantir a ampla vitória eleitoral de Dutra.

Uma vez eleito, Dutra dedicou-se a tentar desmontar as bases varguistas e a perseguir o PCB. Seu ministério foi composto basicamente por políticos que atuaram no Estado Novo, mas que eram leais a Dutra. Nas eleições estaduais de 1947 o governo federal apoiou nomes como Edmundo Macedo Soares no Rio de Janeiro, com o objetivo de diminuir a influência de Amaral Peixoto, e Carlos Luz em Minas Gerais, combatendo a ala liderada por Juscelino Kubitschek. Finalmente, a partir de 1948, Dutra buscou uma aliança com a UDN, no chamado acordo interpartidário, que objetiva isolar Vargas e inviabilizar suas pretensões eleitorais.

Na política internacional, Dutra levou o Brasil a um completo alinhamento com os Estados Unidos, isso apesar de o general ter sido conhecido como um simpatizante do eixo nas vésperas da Segunda Guerra Mundial. Nossa delegação na ONU atuou em total harmonia com a política dos EUA no episódio de criação do Estado de Israel, por exemplo, e também na questão dos refugiados de guerra. Finalmente, a própria cassação do registro do PCB obedecia às novas diretrizes da Doutrina Truman.

A política econômica de Dutra distanciou-se bastante daquela de Vargas. Nos primeiros anos do seu governo foi adotada uma política de livre comércio que, convivendo com uma moeda valorizada, rapidamente esgotou nossas reservas.

Seus ministros tentaram, sem sucesso, modificar a proposta do estatuto do petróleo, de modo a permitir a entrada de empresas estrangeiras no setor. Dutra não foi desenvolvimentista. Tentar comparar o PAC com o Plano Salte, que era bastante tímido e praticamente não saiu do papel, só pode se justificar por um profundo desconhecimento do período.

Quando Vargas rompe com Dutra e inicia os preparativos para a sua campanha, inclusive tentando reconquistar o apoio de lideranças do PSD, não temos uma solução de continuidade, muito ao contrário. Vargas precisou derrotar a UDN, que, novamente, lançou Eduardo Gomes, e o PSD Dutrista.

Dutra não foi a continuidade de Vargas nem uma criatura que se revoltou contra o seu criador. A passagem do poder de Lula para Dilma materializa uma situação inédita na história recente da República, uma experiência de mudança de governante com continuidade, como nós não experimentamos nem mesmo na ditadura. É inútil buscar compreender essa situação forçando paralelos com o nosso passado.

Enviado por Jotamorim
CartaCapital - No.  623

Um comentário:

  1. Já que não há quase matéria escrita sobre o Governo do cuiabano Eurico Gaspar Dutra (1946-50) - terceiro dos cinco marechais que tivemos na Presidência da República -, há que recorrermos, então, à memória dos que já viviam, antes e durante seu quinquênio presidencial.

    Quando o cabeça de bagre foi eleito, a 02.12.45, tinha eu 8 anos; quando entregou o bastão presidencial, a 31.01.51, não havia ainda completado meus 14. Mas meus familiares, de pequena classe-média suburbana do Rio de Janeiro (da leopoldinense Penha Circular, onde o filho do padeiro, Augusto Boal, era nosso vizinho), eram afiadamente politizados.

    Aquela campanha presidencial de 1945 deixou-me marcas na memória, como os gritos dos marmiteiros: "É Dutra! É Dutra! É Dutra do trabalho!". Ao mesmo tempo, cantava-se a paródia:

    Vamos lá, canja de graça,
    No boteco do José:
    Entra Dutra, entra Fiúza, entra Rolim se quisé,
    Nas só não entra o Brigadeiro,
    Que tem medo de mulhé!...

    O cara era solteirão. Morava com uma irmã, carola pré-conciliar. Dizia-se fora atingido por um balaço nas partes, na Revolta dos 18 do Forte, idos de 1922, primeira ação tenentista que resultou na morte do único civil que aderira à caminhada do Posto 6 até à esquina da atual Rua Siqueira Campos. Este era o líder do grupo, também baleado em estado grave (mas se salvou, para desaparecer bestamente, sete anos depois, no mar da costa uruguaia, em queda do avião que o transportava de Buenos Aires).

    O Brigadeiro (e o próprio Dutra, a depender das facções) foi a primeira tentativa da burguesia de militarizar a "solução constitucional". A facção dele era a mais reacionária da UDN, partido esquisito que comportava até uma "Esquerda Democrática". Os gajos eram profundamente anti-trabalhistas e anti-trabalhadores. Numa arenga radiofonizada, chamou-os de malta. O ricaço Hugo Borghi, a partir da palavra, designou a massa operária(*) como "os marmiteiros", filiados ao PTB, criado por Getulio (assim como o PSD, o que levou os anti-getulistas a dizer que o ex-Chefe da Nação estadonovista era "pai dos pobres e mãe dos ricos".

    Pois os marmiteiros venceram. Até o golpe de 1964, os udenistas tentaram vários outros, em vão, o mais sério deles engendrado por Carlos Lacerda e o Presidente interino Carlos Luz (1955). Foi a tempo evitado pelo Marechal Lott, em quem votei em 1960, junto com João Goulart - útima eleição para Presidente da República até 1989.

    Então é isso. Não vejo como tentar comparar a Presidenta eleita Dilma ao Dutra, nem em termos conteudísticos nem formais. Espero que, até 2018, ela esteja no Alvorada, Planalto, Torto e Rio Negro. Depois, então, conversaremos.

    Abraços do
    ArnaC

    (*) "Operário" e "camponês" foram termos subversivos por muitos anos. Por isso, me permito apelidar de "eversiva" essa chatice de "terceirizados".

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