quarta-feira, 17 de novembro de 2010

SENSO X CONTRASSENSO - MAIS UMA VITÓRIA DE FLORIANÓPOLIS

Raul Longo

Viver em Florianópolis é conviver num constante embate entre senso e contrassenso. Mal se descansa de uma luta para evitar um absurdo a ser acometido pelas autoridades contra o bem estar comum e já se vê em novas reuniões, discussões, manifestações.

Assim foi nos tempos da ditadura, quando a Marinha resolveu privatizar a Ponta do Sambaqui, uma área pública constituída por um bosque de Pitangueiras onde famílias vindas de outros bairros se reúnem nos domingos de verão, aproveitando à sombra das árvores à beira do mar.

Além desta função que a identifica como patrimônio público, a Ponta do Sambaqui é um sítio arqueológico. Não pesquisado, mas é. Geologicamente também chamada de berbigueira, caieira, caleira, mina de sernambi, ostreira, samauqui, sarnambi; sambaqui é um depósito de origem natural que através dos tempos vai constituindo terraços de diversos agentes geológicos, sobretudo cascas de moluscos, conchas.

Deduzem alguns paleontólogos que em busca da eternidade os pré-históricos que ocuparam a América do Sul desenvolveram um processo rudimentar de mumificação, enterrando seus mortos nesses sítios onde a grande presença do cálcio das conchas dos moluscos impediria a corrosão dos esqueletos. Outros não são tão confiantes nessa observação e consideram mais provável uma mera coincidência e consequência provocada porque esses sítios que se espalham por toda a costa atlântica e à beira de rios, seriam os mais propícios para a subsistência coletora daqueles primórdios da humanidade. Vivendo onde pudessem satisfazer a dieta de moluscos catados, ali também enterravam seus mortos.

De qualquer forma, como em todos os cultos funerários das mais antigas culturas, junto aos mortos sepultavam seus pertences: ferramentas, utensílios e objetos de pedra, e até alguns objetos cerâmicos.

Em diversos estados brasileiros há sambaquis pesquisados por arqueólogos. No Maranhão há um muito importante e mesmo nas propriedades particulares se é obrigado a ceder o acesso à pesquisa desenvolvida por instituições universitárias, como a da USP que anualmente deslocada uma equipe de professores e alunos para a Ilha do Mar Virado, no litoral norte do estado de São Paulo, em Ubatuba, uma concessão da Marinha ao empresário da Tigre, a indústria de tubos e conexões.

Ali no Mar Virado a condição para a manutenção da concessão da ilha não só é a hospedagem da equipe de arqueólogos, como inclusive a responsabilidade pelo impedimento de qualquer outro acesso ao local demarcado de pesquisa, inclusive aos ocupantes da ilha. Mas em Florianópolis a Marinha resolveu ceder a península que forma a Ponta do Sambaqui para o capital privado empreender ali um hotel. Evidente desastre que poluiria e destruiria um dos mais paradisíacos recantos da Ilha de Santa Catarina, sobretudo pela falta de sistema de coleta de esgoto que inevitavelmente seria despejado ao mar, pois trata-se de uma península com uma entrada que não tem 20 metros de largura.

Para que as autoridades da época pudessem enxergar o óbvio, foi preciso muita briga e muita luta da comunidade do Sambaqui, o que gerou a criação da primeira Associação de Moradores do Município de Florianópolis.

Nessa luta se formou uma das comunidades mais guerreiras da cidade.

Mas a população de Florianópolis protagonizou muitos momentos de grande bravura popular, como em Novembro de 1979 quando estudantes e trabalhadores cercaram a comitiva do então ditador João Baptista Figueiredo acompanhado pelo interventor Jorge Bornhausen. Quase todos da comitiva ditatorial iam apanhando da multidão e só foram salvos pela intervenção da Polícia Militar com ajuda da Polícia do Exército.

Ainda hoje relembrado com muito orgulho pelos catarinenses como a Novembrada, o episódio deu início a queda da ditadura que culminou com o Movimento das Diretas já iniciado por Lula da Silva em Diadema e logo desenvolvido por Teotônio Vilela nas Alagoas. Mas ainda sem o nome de Diretas Já. Foi o movimento da população de Florianópolis que deixou claro aos militares que o contrassenso da ditadura já estava com os dias contados.

O próprio nome da cidade resulta de um contrassenso e de um embate desses. Além de massacrar os líderes revoltosos aprisionados na fortaleza da ilhota de Anhatomirim, se impôs à antiga Desterro uma eterna homenagem a Floriano Peixoto, o tirano milicanalha contra o qual aqui se revoltava.

E se perpetua o estigma. Se mensura o tempo pelas lutas e mobilizações populares para manutenção de algum senso de lógica. É comum se ouvir as pessoas comentarem terem se conhecido em uma ou outras dessas lutas em que se envolvem os cidadãos para conter os desmandos dos políticos.

Por vezes se fica em dúvida se uma amizade surgiu na briga contra o prefeito quando quis elevar a cota de andares permitidos às construções de edifícios, ou na outra para impedir que a companhia de saneamento do estado desviasse a verba do PAC economizando no destino do sistema de esgoto implantado, para despejá-lo no rio mais próximo.

Nesse último caso, um exemplo típico foi o de quando o diretor da estatal afrontou a comunidade afirmando que o esgoto seria jogado no rio “Nem que for na marra”. Convocou-se ministros e técnicos de Brasília e hoje há uma comissão formada para buscar a decisão mais acertada, mas a rede de esgoto, já implantada, não promoverá o contrassenso de poluir a desembocadura do maior rio da Ilha de Santa Catarina, nem mesmo na marra, porque aqui só quem faz marra é a multidão.

Costumo dizer que em muitos aspectos essa Ilha é um continente. Mas em outros parece um hospício onde os doentes tomaram a direção e a população constantemente tem de adverti-los para não porem fogo e destruírem tudo. E se esses alienados que detêm o poder contam com o incondicional apoio da mídia local monopolizada pelo grupo RBS, por outro lado os sadios têm contado com significativo apoio dos Ministérios Públicos. Tanto o Estadual quanto o Federal.

Mas para ter ideia do que é o poder que controla este estado, basta lembrar que é o único do país onde ainda hoje não se respeita a determinação constitucional e não se criou uma Defensoria Pública. De todo o Brasil, apenas Santa Catarina!

Tais fatos provocados pelo controle político da eminência parda de Jorge Bornhausen, muitas vezes nos faz sentir mantidos nos anos de chumbo do século passado. Apesar de ser um dos estados mais ricos do país e se localizar na tão decantada região sul, em termos democráticos Santa Catarina é um dos estados mais atrasados do Brasil.

Talvez por esta razão o empresário Eike Batista se imbuiu de tanta certeza em emplacar suas pretensões de obter financiamento para instalação de um estaleiro, com objetivos paralelos ainda não revelados, mas que se evidenciam no comunicado da desistência da implantação do megaestaleiro no canal da Ilha, ao afirmar que: “O Grupo EBX estuda o desenvolvimento de outros empreendimentos para a propriedade em Biguaçu, reafirmando assim o seu compromisso com o Estado e a população de Santa Catarina.”

Blablablá à parte, o que não se ignora é que há muito tempo Eike Batista adquiriu a área onde pretendia instalar o maior estaleiro latino-americano. Muito antes da descoberta do Pré Sal. E também se sabe que a área total corresponde ao dobro de seu megaprojeto de estaleiro. Afora isso, também não é segredo que o empresário tinha e continua tendo outras opções no estado que não provocariam o mesmo caos social e ambiental a ser provocado pela localização em Biguaçu, além do considerável menor custo de instalação com imediata viabilidade.

Mister X revelou seu truque para uma plateia que estará muito atenta à natureza dos outros empreendimentos para a propriedade em Biguaçu. Se não forem tão nocivos e impactantes às águas da baía que conforma o canal entre a Ilha e o continente, não haverá indisposição em assistir as mágicas do bilionário. Do contrário, já sabe que não adianta contratar ajudantes para distrair a atenção do público na tentativa de fazer desaparecer as comunidades e atividades tradicionais desta população.

Desta vez, além dos Promotores dos Ministérios Públicos, tanto do Estadual quanto do Federal, sempre pautando pelo bom senso e no combate ao contrassenso junto com a população, temos muito a agradecer aos técnicos do  ICMBio.

Lamentamos, e muito, o contrassenso dos políticos. Não de todos, pois estamos acostumados à maioria deles e não era de esperar qualquer postura de real defesa dos interesses do povo de Santa Catarina; mas o contrassenso daqueles de quem mais esperávamos a defesa dos interesses das classes mais populares de trabalhadores desta região: pescadores e maricultores; foi bastante decepcionante.

Esperamos que ao menos reconheçam ter provocado e promovido inúmeros outros contrassensos, como os daqueles que já adiantavam culpabilidades ao governo federal com afirmações estapafúrdias e sem qualquer embasamento ou fundamentação, como a de que Lula seria sócio do Eike Batista, ou de que Lula e Dilma busquem desenvolvimento a qualquer custo.

Aos que usavam dessas acusações vazias para brigar contra o empreendimento, desejamos que em próximas lutas sejam capazes de reconhecer quanto tais posturas são improdutivas, quando não, contraproducentes.

Se a esses faltou perspectiva, também é preciso reconhecer que foram enganados pelos primeiros, os que, sendo de Santa Catarina e próximos ao governo através do PT, anunciaram que a Ministra do Meio Ambiente haveria desconsiderado o parecer técnico, transformando a questão em decisão política.

E aí também me enganaram e também minhas perspectivas sobre o caso se distorceram, chegando a escrever desaforos à Ministra. Agradeço às técnicas do ICMBio cujos nomes me comprometi não revelar e que me alertaram sobre essa falácia. Mas se a realidade resgata a imagem da Ministra, à quem me desculpo, ainda mais chafurda a dos mentiram sobre a real posição de Izabella Teixeira, comprometendo-a injustamente perante a opinião pública.

Mas há um político que merece um desagravo pela repreensão de sua nota pública de discordância ao estaleiro. O presidente de seu partido no estado reclamou por Nildomar Freire não ter consultado o diretório estadual. Nildão fez é muito bem em consultar as bases e os trabalhadores, pois o seu partido não é o PD, o Partido dos Diretórios. Seu partido é o PT, o Partido dos Trabalhadores. Quem não consultou os trabalhadores que o fizesse. Ou que procure os que representam outras classes.

E do PT agradeço a todos os blogs que publicando os textos sobre o estaleiro, ajudaram a levar as informações sobre esse contrassenso por todo o Brasil. Todos os blogs e listas de apoiadores do governo Lula e da presidente Dilma, sobretudo ao Beatrice do Maranhão, à redecastorphoto de São Paulo, a Tribuna da Internet e ao “Quem Tem Medo do Lula” do Rio de Janeiro que muito torceram, apoiaram e divulgaram a luta catarinense. A minha amiga Lila de Brasília (não posso dizer exatamente da onde, mas é você mesma Lila Verão!) E ao Marcos Lula por indicar meu textos sobre o tema do estaleiro ao portal Dilma na Rede.

A força tarefa suprapartidária em prol de Eike Batista precisou invadir o gabinete da Ministra Izabella para tentar transformar o processo em questão política, e vocês nos ajudaram a lutar politicamente para manter a decisão técnica do órgão federal de regulação ambiental.

E agradeço também as palavras de incentivo de correspondentes do PSOL e do PV. Inclusive a da correspondente do DEM ou PSDB que nesta questão em particular encontrou um ponto de concordância comigo, sem cair no contrassenso dos que tentaram me convencer que a ameaça do estaleiro seria consequência de um governo inconsequente ou irresponsável.

Mas apesar desse contrassenso, a esses também se deve valorizar a participação na luta. Talvez doravante consigam entender com maior clareza o processo e aprendam onde encontrar aliados com bom senso e acima dos conceitos montados ou fabricados.

E por falar nos pré conceitos, há que se agradecer e aplaudir a comunidade do Jurerê Internacional que enfrentou inclusive seus antigos aliados da RBS e do Diário Catarinense com muita galhardia, arrostando-lhes a evidência da canalhice.

Haverá despeitados que dirão que só vencemos o bilionário Eike Batista porque vocês também são ricos, mas sabemos bem que isso é falácia e os admiramos por irem às ruas como multidão e como multidão carregar faixas e vaiar a Polícia Naval quando prenderam nossos maiores heróis nessa luta. Uma luta que começou aí do vosso lado, através da comunidade da Daniela.

E é preciso lembrar que foi a comunidade da Daniela que iniciou essa luta contra Eike Batista. Dos de Santa Catarina citei apenas os nomes do Nildão, porque foi individual e politicamente muito prejudicado no apoio que nos deu, e não quero citar o de mais ninguém para não ser injusto com tantos, mas preciso lembrar aqui, como exemplo, um diálogo entre Paulo Monteiro, o diretor da OSX e uma brava companheira da Daniela. Ao se encontrar frente a frente com a companheira num momento da audiência pública, Paulo tenta um sorriso e ruge: “Você é uma pedra no meu sapato”. Sem sorrir, ela decepa: “Então você vai ter de amputar o pé!”

Da comunidade do Sambaqui e Sto. Antonio de Lisboa nem preciso dizer nada. Nosso Boi, nossa Bernunça e o Baiacú de Alguém dispensam palavras. Mas quero agradecer o apoio e as informações do Sambaqui na Rede, a divulgação do Fala Sambaqui, e o Estala Estaleiro do Portal Desacato.

Hoje ganhamos uma guerra em que muita gente nos acreditou vencidos já no início, embora nós todos nunca duvidássemos disso de nosso bom senso em lutá-la. Nunca duvidamos de que a multidão derrota o bilhão. Nunca duvidamos de que não há exercito maior e mais do que o da multidão. Nem aqui e nem em Honduras.

É verdade que as amigas do ICMBio me tranquilizaram bastante já naquela audiência pública em que tentaram nos coibir e constringir, mas o dinheiro e as forças políticas bem poderiam ter pervertido o essencial sentido técnico da decisão, para a qual esta nota da OSX abaixo se faz uma saída honrosa, ou menos constrangedora.

Talvez conseguissem reverter, mesmo a contragosto da Ministra, obrigando o governo a aceitar pressões dos políticos catarinenses, com opinião pública manipulada pela RBS. Daí a grande importância de nossa luta que inviabilizou as tentativas e manobras nesse sentido, como quando conquistamos os passageiros da dezena de enormes ônibus de auto luxo para colher a gente pobre da periferia de Biguaçu que deveria fazer claque à OSX na audiência em que nos coagiam com teleobjetivas, tentando nos amedrontar com outra dezena de guarda-costas; mas ao final a claque da OSX aplaudiam nossas falas.

E nessa luta, tivemos um herói muito simbólico. Se há um momento em que pudemos ter certeza de que a partir daquele momento ganháramos a luta, foi quando a Polícia Naval conduziu nosso Pescador para a Capitania dos Portos.

A luta foi grande e vencemos o homem mais rico do país. Isso tem de ficar nos anais da história dessa região e desta cidade. Isso merece um marco, uma comemoração para que as futuras gerações jamais esqueçam do poder da multidão. E sugiro que ali, onde a Polícia Naval nos devolveu nosso herói, a ele seja erigido um marco. E que nele se inscreva: “Aqui, em tal data, um manézinho pescador desta baía fez o homem mais rico do Brasil tomar senso e ir embora desse canal!”

E quando outro voltar com novos contrassensos, a gente leva ate ali e mostra para ver se adquire um pouco de senso e não nos dá tanto trabalho.

Até a próxima luta, torcendo para que algum dia tenhamos melhores políticos para eleger no estado.         

Um comentário:

  1. Eis mais um texto interessante, conquanto discorde eu do epíteto "tirano milicanalha", aplicado à figura de Floriano. Este alagoano, diga-se de passagem, governou sem dúvida com mão-forte, mas salvou a República. Só para recordar, o regime vige há 121 anos, já, dos quais apenas 43 sob o império da lei e das liberdades democráticas e o povo não foi consultado em sufrágio universal por 29. E, olhe lá, que há muito por fazer ainda, para aperfeiçoarmos isso, num País, qual o nosso, dominado por quase-irremovíveis alienações e preconceitos psicossociais.

    Nos albores republicanos, mal-comandados por um outro alagoano e também marechal (Deodoro), foi graças ao seu conterrâneo e sucessor que o projeto do golpe militar de Quinze de Novembro não se desfez. É bem verdade que Floriano cumpriu mandato - logo, não foi tirano, mas autocrata - e não lhe foi possível limpar o terreno de todo. Muito pelo contrário, ao regressar modestamente ao seu domicílio suburbano, o prazo de seu mandato impediu-lhe limpasse o terreno de todo.

    Ficou muito lixo acumulado em nossa vida pública, nas mãos de uma oligarquia que até hoje tem seus descendentes. É o pessoal do "Coronelismo, enxada e voto", denunciado por Victor Nunes Leal em tese de 1939, a qual foi transformada em obra seminal de nossa literatura sócio-política, como "Os donos do poder", de Raymundo Faoro, e algumas outras.

    Cabe recordar que, a título exemplar, mas infelizmente sem reflexos no resto do País, nomeou o baiano Barata Ribeiro como primeiro Prefeito do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Talvez tenha sido a sua gestão a primeira de sentido social profundo em nossa República, a ponto de não lhe permitirem a recondução no cargo, em menos de dois anos empossado.

    É preciso que paremos com essa de desconsiderar nossos militares. O Brasil lhes deve muito, apesar das barbaridades ocorridas em 1964-85.

    Abraços do
    Arnaldo C.

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