30/4/2014, [*] Anand Gopal, TomDispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Cabul, Praça Malik Ashgar |
Era uma manhã típica, em Cabul. A Praça Malik Ashgar fervia de táxis
Corolla, jipes verdes da Polícia, minivans barulhentas e motociclistas
irritados. Meninos vendiam cartões de telefone e cambistas sacudiam maços de
dinheiro para cambiar, todos circulando entre os veículos e a fumaça dos
escapamentos. Junto ao portão do Liceu Esteqial, uma das escolas de mais
prestígio no país, estudantes chutavam uma bola de futebol. No Ministério da
Educação, um antigo prédio de estilo soviético, à frente da escola, uma fila de
funcionários saía para a calçada. Eu caminhava cruzando a praça, em direção ao
ministério, quando vi o suicida-atirador.
Tinha feições escandinavas. Blue
jeans e camiseta branca, carregando
uma mochila grande. E pôs-se a atirar indiscriminadamente na direção do prédio
do ministério. De onde eu estava, distante cerca de 50 metros, não podia ver
a expressão dele, mas não parecia frenético nem em pânico. Procurei cobertura
por trás de um táxi estacionado. Foi pouco antes de a polícia aparecer e a
praça ficar deserta.
28 pessoas, a maioria civis, morreram nos ataques no Ministério da
Educação, Ministério da Justiça e em outros pontos da cidade naquele dia, em
2009. Adiante, autoridades norte-americanas acusaram a Rede Haqqani – grupo
nebuloso que operava a partir do Paquistão e que inaugurara a tática de usar
vários suicidas-bombas em ataques urbanos que estiveram em todas as manchetes.
Diferente de outros grupos Talibã, a abordagem dos Haqqanis era “global”
e sofisticada: recrutavam árabes, paquistaneses e até europeus, influenciados
pelo mais radical pensamento islamista. O líder deles, o septuagenário senhor
da guerra Jalaluddin Haqqani, era uma espécie de Osama bin Laden e Al Capone
reunidos numa só pessoa, tão ferozmente ideológico quanto cruelmente
pragmático.
Grupo Talibã |
Tanto que, muitos anos depois, seus seguidores continuam a lutar. Mesmo
com os EUA retirando a maior parte de seus soldados esse ano, ainda assim 10
mil agentes das Forças Especiais, paramilitares da CIA e seus
agregados lá permanecerão, para dar combate aos Haqqanis, aos Talibã e a grupos
semelhantes, numa guerra que parece não ter fim. Com inimigos assim tão
entrincheirados, o conflito ganhou hoje ares de inevitabilidade. Mas as coisas
poderiam ter tomado rumo completamente diferente.
Hoje já é difícil imaginar, mas em meados de 2002 não havia insurgência
alguma no Afeganistão: a al-Qaeda fugira do país e os Talibã já não existiam
como movimento militar. Jalaluddin Haqqani e outras altas figuras dos Talibã
estavam tentando contacto com o outro lado para firmar acordos e depor armas.
Mas centenas de milhares de soldados dos EUA já haviam chegado a solo afegão,
depois do 11/9/2001, com um único objetivo: fazer guerra ao terror.
Como já escrevi em meu novo livro No Good Men Among the Living:
America, the Talibã, and the War Through Afghan Eyes, os EUA fariam aquela guerra em qualquer caso, mesmo que não houvesse
inimigo a combater.
Para compreender como a guerra dos EUA no Afeganistão deu tão errado,
por tanto tempo, é indispensável conhecer um pouco da história (oculta)
daqueles dias.
Nos primeiros anos depois de 2001, movida pela ideia fixa de que o mundo
dividia-se rigidamente entre terroristas e não terroristas, Washington aliou-se
a senhores da guerra e chefetes de grupos armados afegãos. Os inimigos deles
passaram a ser inimigos dos EUA e, com inteligência sempre precária e
insuficiente, a luta comum desses todos foi reembalada sob o rótulo de
“contraterrorismo”.
A história de Jalaluddin Haqqani, que se converteu, de aliado potencial
dos EUA, em seu principal inimigo, é caso paradigmático de como a guerra ao
terror gerou os próprios inimigos que ela visava a erradicar.
A campanha para erradicar os Haqqani: 2001
Jalaluddin Haqqani é homem de peso médio, sobrancelhas grossas, nariz
fino, sorriso largo e barba longa (vídeo no fim do parágrafo), a qual, se deixada luzir em toda sua glória, quase
engole metade do rosto dele.
Na terra onde nasceu, Loya Paktia – a área das três províncias do
sudeste do Afeganistão – Jalaluddin Haqqani é herói de guerra, mujahedeen que
lutou contra os soviéticos, homem de bravura narrada em histórias que circulam
de boca em boca e fama de resistência e de fé quase míticas (uma vez, ferido à
bala, recusou analgésicos, porque estava jejuando).
Nos anos finais da Guerra Fria, Jalaluddin Haqqani era adorado pelos
norte-americanos – o senador Charlie Wilson, texano, descrevia-o como “a
bondade personificada” – e também por Osama bin Laden. Nos anos 1980s, os EUA o
abasteceram com dinheiro e armas na batalha contra o governo que os russos
apoiavam; e os grupos árabes radicais garantiam fluxo regular de recrutas para
reforçar sua formidável força afegã.
Funcionários norte-americanos tinham tudo isso em mente, quando começou
a segunda Guerra do Afeganistão, em outubro de 2001. Na esperança de convencer
Haqqani (que passara a apoiar os Talibã e a al-Qaeda nos anos pós-soviéticos) a
mudar de lado, os EUA não atacaram o território dele em Loya Paktia, o qual foi
preservado, no intenso bombardeio que os EUA lançaram contra todo o resto do
país. E os Talibã, por sua vez, puseram-no no comando de toda a força militar
deles; os dois lados mostraram que viam Jalaluddin Haqqani como o fator capaz
de decidir o destino daquela guerra. Haqqani reuniu-se com altos comandantes
dos Talibã e com Osama bin Laden e partiu para o Paquistão onde participou de
incontáveis reuniões com paquistaneses e com afegãos patrocinados pelos EUA.
Representantes seus também começaram a reunir-se com funcionários
norte-americanos em Islamabad, capital do Paquistão, e nos Emirados Árabes
Unidos; até que os EUA afinal lhe fizeram uma proposta: ele se entregaria,
seria preso, cooperaria com as novas autoridades militares afegãs e, depois de
tempo “razoável” de prisão, estaria liberado para partir para onde desejasse
ir.
Arsala Rahmani |
Para Haqqani, um dos nomes mais conhecidos e respeitados de toda a Loya
Paktia, a ideia de ser exposto preso, sentado atrás das grades, era
absolutamente inaceitável. Arsala Rahmani, que acompanhava Haqqani naquele
período, e seria senador no governo afegão, contou-me:
Ele queria ter posição destacada
em Loya Paktia, e a “proposta” deles foi prendê-lo. Haqqani não acreditou no
que ouviu dos norte-americanos. Alguém pode imaginar insulto semelhante?
Mas Haqqani limitou-se a não aceitar a “proposta” dos EUA; e deixou a
porta aberta para outras negociações. Os EUA contudo já estavam completamente
dominados pelo ethos do “ou conosco, ou contra nós”.
Eu, pessoalmente, sempre
acreditei que Haqqani era homem com o qual poderíamos ter trabalhado – um ex-funcionário da inteligência dos EUA disse ao jornalista Joby
Warrick. – Mas naquele momento ninguém
estava olhando além do horizonte, para onde estaríamos dali a cinco anos. Para
os diplomatas e políticos dos EUA, a coisa sempre era “fodam-se os barbudos de
pele escura”.
No início de novembro, os EUA começaram a bombardear Loya Paktia. Duas
noites depois, aviões bombardearam a casa de Haqqani na cidade de Gardez, perto
da fronteira do Paquistão. Ele não estava ali, mas seu cunhado e um empregado
da família morreram no ataque. Na noite seguinte, aviões dos EUA atacaram uma
escola religiosa na vila de Mata China, uma das muitas escolas que Haqqani
fizera construir no Afeganistão e no Paquistão, que ofereciam moradia, comida e
educação a crianças pobres. Malem Jan, amigo da família Haqqani, foi dos primeiros
a chegar ao local.
Nunca vi nada semelhante – disse ele. – Eram muitos
corpos. O teto desabara quase inteiro sobre as crianças. Vi uma criança ainda
viva, mas foi impossível tirá-la a tempo.
Foram 34 mortos, quase todos crianças.
Haqqani estava em sua residência principal, na vila próxima de Zani
Khel, conjunto poeirento de casas de barro que servira como fortaleza
anti-soviética.
Ouvimos a explosão, depois o
ronco dos aviões no céu – contou um primo, que vivia
próximo dali. – Ficamos com muito medo.
Haqqani mudou-se para a casa de Mawlawi Sirajuddin, um chefe local.
Pouco depois, a casa foi sacudida, atingida diretamente por ataque aéreo.
Haqqani foi ferido, mas conseguiu escalar a pilha de escombros e escapou.
Sirajuddin teve menos sorte: naquele ataque perdeu a esposa Fatima, três netos,
seis netas e 10 outros parentes.
Pacha Khan Zadran |
Na manhã seguinte, Haqqani enviou mensagem a seus subordinados e
ex-subcomandantes, aconselhando-os que se rendessem. Mas os EUA já haviam
localizado o aliado local em Loya Paktia que procuravam há tempos, Pacha Khan
Zadran, suposto senhor-da-guerra e apoiador do rei afegão exilado. De
sobrancelha cerrada e vastos bigodes, “PKZ” (como seria conhecido entre os
norte-americanos) fazia lembrar um Saddam Hussein afegão.
Agitado, analfabeto e irritadiço, PKZ era, em vários sentido, o oposto
de Haqqani, sob cujo comando lutara durante algum tempo na jihad anti-soviéticos.
Chegara a Loya Paktia pouco depois de os Talibã terem partido em meados de
novembro e imediatamente se autodeclarou governador das três províncias. Em
pouco tempo selou laços com os norte-americanos, prometendo entregar-lhes o
homem que mais procuravam: Jalaluddin Haqqani.
Na última vez que o vi – disse Malem Jan – ele estava
preocupado e agitado. Disse-me apenas que saísse e me salvasse, porque Pacha
Khan não nos deixaria vivos.
Numa manhã de novembro, de madrugada, Haqqani cruzou a fronteira para o
Paquistão. Nunca mais foi visto em público.
Tentativa de reconciliação voa pelos ares: 2001
Hamid Karzai |
Dia 20/12/2001, Hamid Karzai, apoiado pelos EUA, preparava-se para tomar
posse como presidente “interino” do Afeganistão. Cerca de 100 dos principais
líderes tribais de Loya Paktia partiram em comboio, naquela tarde, rumo a Cabul
para congratular-se com Karzai e declarar-lhe lealdade, gesto que muito
ajudaria a legitimar seu governo, entre a população da região da fronteira. Do
Paquistão, Haqqani enviou membros da família, amigos íntimos e aliados
políticos para participarem da comitiva – um ramo de oliveira oferecido ao novo
governo.
Eram cerca de 30 carros; o comboio viajou durante horas pelo deserto. No
fim da tarde, início da noite, chegou a uma colina, e teve de parar: PKZ e
centenas de seus homens, armados, bloqueavam a estrada. Malek Sardar, membro idoso
da tribo Haqqani aproximou-se dele. “Ele queria que os idosos o aceitassem como
líder de Loya Paktia” – Sardar contou-me. – “Queria nosso sinal de aprovação e
que assinássemos, ali, naquele momento”. Sardar prometeu voltar depois da
posse, para discutir o assunto, mas PKZ continuou a bloquear a estrada. A
caravana fez meia volta e partiu por outra rota, para Cabul.
Pelo telefone por satélite, Sardar telefonou a funcionários na capital
afegã e para o consulado dos EUA em Peshawar, Paquistão, procurando ajuda. Mas
já era tarde demais: PKZ, que estava em contato direto com figuras chaves do
comando militar dos EUA, já lhes passara a informação de que “uma caravana
‘Haqqani-al Qaeda’ está andando na direção de Cabul. Imediatamente depois,
entre explosões ensurdecedoras, os carros começaram a explodir em chamas.
“Viam-se as luzes no céu, fogo por todos os lados. As pessoas gritavam. E nós
corremos” – contou Sardar.
Os EUA bombardearam a caravana. Os ataques repetiram-se durante horas.
Como Sardar e outros correram para duas vilas próximas, os aviões rodearam do
alto e atacaram as vilas; destruíram quase 20 casas e mataram dúzias de
moradores. Ao todo, 50 mortos; vários importantes líderes tribais morreram
naquele ataque.
Era final de dezembro, e em Qale Niazi, vila que servira de fortaleza
dos Haqqani nos anos 1980s, o bombardeio levara alguns anciãos preocupados, a
assumir o controle de um velho arsenal que havia ali.
Não queríamos que Pacha Khan
pusesse as mãos naquelas armas, nem que as usasse; aquelas armas tinham de ser
entregues ao governo de Karzai. E tomamos conta delas até o governo de Karzai
chegar– disse o velho Fazel Muhammad.
Uma noite, Muhammad caminhava para a vila, para uma festa de casamento,
quando ouviu os aviões dos EUA. Num segundo, as casas de barro que ele via à
sua frente, explodiram. Um segundo ataque acertou o depósito de armas,
detonando uma sequência de explosões. O céu clareou no meio da noite, mostrando
mulheres e crianças que tentavam fugir. “Então vieram os helicópteros”, contou
Muhammad, “e todas aquelas pessoas foram pulverizadas”.
Pela manhã, Fazel Muhammad correu à casa dos parentes, onde acontecera a
festa de casamento, mas só encontrou tijolos de barro pulverizados, molduras de
retratos retorcidos, panelas e vasilhas deformadas, um sapato de criança, um
escalpo com uma trança e vários dedos humanos. Adiante, comissão tribal
encarregada de investigar o massacre descobriu que PKZ fornecera à “inteligência”
norte-americana a informação de que Qale Niazi seria fortaleza dos Haqqani.
Segundo investigação conduzida pela ONU, 52 pessoas morreram naquela festa de
casamento: 17 homens, 10 mulheres e 25 crianças.
Reconciliação e chamas: 2002
Em seis semana, a campanha norte-americana para matar Jalaluddin Haqqani
resultara em 159 civis mortos, uma vila varrida do mapa, 37 lares destruídos,
uma liderança tribal fraturada e a ascensão de um homem, Pacha Khan Zadran,
como principal ator em Loya Paktia. Enquanto isso, Haqqani e seus seguidores
viviam clandestinos no Paquistão, assistindo enquanto as três províncias onde
haviam sido homens ricos e prestigiados lhes escapavam das mãos.
Sepultamento dos mártires de Miram Shah |
A vida no Paquistão não melhorou. Enquando Haqqani continuava escondido
em Peshawar, sua família retirou-se para um subúrbio de Miram Shah, capital da
agência tribal do Waziristão Norte. Os militares paquistaneses, então, estavam
trabalhando em íntima associação com Washington para cercar suspeitos de
pertencerem à al-Qaeda ou de serem membros dos Talibã. Em dezembro, a casa da
família em Miram Shah foi atacada, e Sirajuddin, filho de Jalaluddin Haqqani,
foi preso. Semanas depois, invadiram o esconderijo em Peshawar. Jalaluddin
Haqqani escapou por um triz.
Nos meses seguintes, equipes de Forças Especiais dos EUA fizeram várias
incursões secretas no Paquistão, atacaram casas e escolas Haqqani, levando o
terror à comunidade local.
Nunca permitiremos que
destruam nossas instituições religiosas, disse Hajji Salam
Wazir, líder tribal. Foi supresa, para
mim, o modo como os norte-americanos usam os muçulmanos, acrescentou. Até ontem, Haqqani era herói e combatente da
liberdade, para os EUA. Mandaram especialistas deles para treiná-lo. Hoje,
virou “terrorista”.
Colhido entre a ameaça de ser preso por paquistaneses e assassinado por
norte-americanos, Haqqani decidiu recorrer outra vez ao novo governo afegão. Em
março de 2002, mandou seu irmão, Ibrahim Omari, ao Afeganistão, com uma
proposta de reconciliar-se com Karzai. Em cerimônia pública, da qual
participaram centenas de anciãos líderes tribais e dignitários locais, Omari
jurou fidelidade ao novo governo e conclamou os seguidores de Haqqani a voltar
do Paquistão e trabalhar com o novo governo de Karzai.
Foi nomeado chefe do conselho tribal da província de Paktia, instituição
criada para reunir os anciãos das tribos e o governo de Cabul. Em pouco tempo,
centenas de antigos subcomandantes de Haqqani, que viviam na clandestinidade,
escondidos de PKZ, saíram do frio.
Entre eles, estava Malem Jan. De longos cílios escuros, olhos pintados
com muito Kohl e unhas cuidadas, gostava de dançar e dançava muito, para deleite dos
companheiros. Era também comandante de vastíssima experiência de combate;
lutara, no início dos anos 1990s, sob comando de Haqqani, contra o governo
soviético. Na primavera de 2002, reconvocou seus antigos combatentes e, em
pouco tempo, todos estavam trabalhando a serviço da CIA como unidade paramilitar, encarregados da segurança de
missões dos EUA que caçavam a al-Qaeda.
“Foram bons tempos” – Malem Jan relembrou. – “Trabalhávamos juntos,
comíamos juntos, conversávamos muito”. – As milícias da CIA, das
quais havia uma meia dúzia em Loya Paktia, rapidamente cresceram e
transformaram-se num exército clandestino de 3 mil homens, chamados, em grupo
de “Equipes de Perseguição de Contraterrorismo”, que opera até hoje fora da
jurisdição do governo afegão e só recebe ordens das forças dos EUA.
Os contatos
entre Haqqani e a CIA foram retomados, com seu irmão Omari servindo de
intermediário. Planejou-se um encontro entre o próprio Haqqani e representantes
da Agência. Na negociação, o ponto chave foi a garantia de que Haqqani poderia
voltar ao Afeganistão e participar na política da província de Loya Paktia. O
problema era PKZ, enciumado com tais manobras e sempre interessado em manter o
controle sobre as três províncias. “Tenho de ser nomeado governador” – disse ao
jornal Austin American-Statesman. “Se não for eu, será alguém da
al-Qaeda”.
Quando Karzai
nomeou um novo governador para a província Paktia, PKZ logo respondeu: cercou a
casa do governador e matou 25 pessoas. Simultaneamente, convenceu os norte-americanos
a fechar o cerco contra os Haqqanis. Uma noite, quando Omari estava visitando
um funcionário do governo, perto de Cabul, apareceram forças das Operações
Especiais dos EUA – sem conhecimento da CIA – e o prenderam. Na mesma
semana, outros seguidores dos Haqqanis foram presos, em vários pontos da
província Loya Paktia.
Base Aérea de Bagram, Afeganistão |
No instante
em que percebeu o que estava acontecendo Malem Jan fugiu para o Paquistão, mas
vários de seus subordinados foram presos e enviados para a nova prisão
norte-americana na Base Aérea Bagram, centro militar de comando que estava em
rápida expansão. Swat Khan, seu vice-comandante, contou que, no primeiro
interrogatório, foi pendurado ao teto pelos pulsos. Depois, foi espancado.
Finalmente o mandaram para Guantánamo, onde, alguns anos depois, tentou o
suicídio. “Cada vez que fecho os olhos, tudo reaparece” – contou-me ele, depois
que foi libertado. – “O pesadelo nunca sai de mim”.
A CIA demorou
meses até dar-se conta de que Omari estava preso numa prisão dos EUA. Quando
afinal foi libertado, parecia outro homem. Era um dia de outono, frio, numa
colina perto da cidade de Khost, onde centenas de anciãos das tribos e
funcionários do governo foram recebê-lo. Havia autoridades das tribos e das
vilas atacadas e bombardeadas pelos aviões norte-americanos e pelas forças de
PKZ, anciãos sobreviventes do ataque à caravana, agricultores cujos filhos
haviam sido mandados para Guantanamo.
“Primeiro,
nem o reconheci” – disse Malek Sardar, ancião de uma das tribos. – “Não falou
sobre o que o fizeram passar, e pareceu-nos doloroso demais perguntar qualquer
coisa”. Aos poucos, com voz fraca, Omari falou ao grupo ali reunido. Que
ninguém nunca mais esperasse coisa alguma, nem do governo de Karzai, nem dos
norte-americanos. Alguns velhos gritaram insultos a Karzai. Outros disseram que
os norte-americanos eram iguais aos soviéticos. Omari jurou que não voltaria a
pisar em terra afegã, enquanto não estivesse livre de “todos os infiéis”. Pouco
depois, partiu para o Paquistão.
A Rede
Haqqani: 2004-2014
No verão de
2004, Malem Jan estava sentado com Sirajuddin Haqqani, o segundo filho de
Jalaluddin, em sua base no Paquistão, no Waziristão Norte, na cidade de Miram
Shah, quando ouviram seus nomes na BBC. Os norte-americanos ofereciam
recompensas, respectivamente, de US$250 mil e de US$200 mil, por qualquer
informação que levasse à prisão deles. Introvertido, religioso e furiosamente
inteligente, o mais jovem dos Haqqani imediatamente decidiu tomar as rédeas da
depauperada rede de seu pai. Sorriu, ante a ideia de que seu porta-voz, Malem
Jan, valesse recompensa maior que a oferecida por ele. E zombou: “Dizem que a
cabeça que vale prêmio mais alto já está mais perto de Deus”.
A partir
dali, os Haqqanis entraram em guerra declarada contra os norte-americanos.
Enquanto seu pai comandara a Loya Paktia contando com apoio popular, Sirajuddin
comandou das sombras, pelo medo – assassinatos, sequestros, extorsão, estradas
minadas. Miram Shah tornara-se capital mundial da Jihad radical, lar da
al-Qaeda e de sortimento variado de chechenos, uzbeques e europeus que, todos,
combatiam sob a bandeira dos Haqqani. O ISI, serviço secreto do
Paquistão, apoiava também os Haqqanis, como meio de influenciar nos eventos
internos do Afeganistão, apesar de, publicamente, Islamabad apresentar-se como
aliada de Washington.
Ao
classificar alguns grupos como terroristas, e, na sequência, agir como se sua
própria classificação fizesse algum sentido, os EUA, sem ver o que faziam,
geraram as próprias condições de existência do que, em tese, estariam
combatendo.
Em 2010, a rede Haqqani já era
a ala mais mortal de uma insurgência armada cada dia mais violenta, que matava
civis sem conta, além de muitos soldados norte-americanos. Já era quase
impossível, então, sequer recordar que, em meados de 2002, os EUA não tinham
inimigos no Afeganistão: os remanescentes da al-Qaeda haviam fugido para o
Paquistão, os Talibã haviam entrado em colapso, e os Haqqanis tentavam o acordo
e a reconciliação.
Drones matam indiscriminadamente |
Se Pacha Khan
Zadran conseguiu convencer seus aliados norte-americanos do contrário disso,
foi por causa da lógica da guerra ao terror. “Terrorismo” deixou de ser
definido como um conjunto de táticas (captura de reféns, assassinatos,
carros-bomba). E passou a ser entendido como algo que fazia parte da própria
identidade dos perpetradores, como o peso, ou o temperamento. Significava que,
uma vez declarado “terrorista”, Jalaluddin Haqqani nunca mais deixaria de ser
terrorista, mesmo quando tentou a reconciliação.
Por sua vez,
quando, adiante, PKZ rompeu com o governo Karzai e tomou os norte-americanos
como alvos, foi rotulado não como terrorista, mas como um “renegado”. (PKZ
conseguiu fugir para o Paquistão, foi preso, entregue ao governo afegão, e,
adiante, foi eleito para o Parlamento).
Em anos
recentes, os EUA movem campanha intensa de ataques, por drones, contra
os Haqqanis em sua fortaleza no Waziristão Norte. Dezenas de seus comandantes
foram mortos, inclusive o principal comandante militar, Badruddin Haqqani.
Muitos têm sido presos. Hoje, a rede Haqqani não é nem sombra do que foi.
Mas a
influência do grupo continua bem viva. Em 2012, recebi um telefonema da família
de Arsala Rahmani, senador afegão do qual me tornei amigo. Naquela manhã, um
atirador acompanhou o carro onde Rahmani viajava, parou ao lado dele num
cruzando e o matou a queima roupa.
Depois, ouvi
que um ex-comandante dos Haqqanis, de nome Najibullah era o responsável por
aquele assassinato; ele criara sua própria facção, Mahaz-e-Fedayeen,
cuja violência faz os Haqqanis parecerem amadores. Hoje já tomado como inimigo
das forças do contraterrorismo norte-americano, esse grupo é mais um – mas não
o último – inimigo numa guerra que parece nunca acabar.
[*] Anand Gopal escreve regularmente em TomDispatch. É autor do recém lançado No
Good Men Among the Living: America, the Talibã, and the War Through Afghan Eyes
[Não há bons entre os sobreviventes: EUA, Talibã e a Guerra, pelos olhos dos
afegãos] (Metropolitan Books). Escreveu sobre a Guerra Afegã para o Wall
Street Journa le o Christian Science Monitor e é membro da New America Foundation. Twitter: @Anand_Gopal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.