domingo, 25 de maio de 2014

Golpes e terror: os frutos da guerra da OTAN contra a Líbia

22/5/2014, [*] Seumas Milne, The Guardian
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

No Iraque os EUA primaram pelo assassinato de civis e pelo uso de urânio empobrecido para envenenar a população civil
O Iraque pode ter sido desastre encharcado de sangue; e o Afeganistão, fracasso militar e político acachapante. Mas da Líbia esperava-se que fosse diferente. A guerra da OTAN para derrubar o coronel Gaddafi em 2011 foi saudada como intervenção liberal que teria funcionado.

As potências ocidentais podem ter distorcido o significado da Resolução da ONU sobre proteger civis, a cidade de Sirte pode ter sido reduzida a ruínas, houve limpeza étnica em grande escala e milhares de civis foram assassinados. Mas sempre se disse que a causa teria sido nobre e alcançada sem mortos nos quadros da OTAN.

Afinal, não foi mortandade promovida por Bush e Blair, mas por Obama, Cameron e Sarkozy. As pessoas foram “libertadas”; o ditador, morto; massacre ainda pior teria sido evitado – e tudo isso sem qualquer coturno visível em solo. Até o ano passado, o Primeiro-Ministro ainda dizia que teria valido a pena, e prometia defender os líbios “em cada passo do caminho”.

Mas... três anos depois de a OTAN ter declarado vitória, a Líbia afunda-se outra vez em guerra civil. Nos últimos dias, o general Hiftar, ligado à CIA, lançou sua segunda tentativa de golpe em três meses. Supostamente, para salvar o país de “terroristas” e islamistas. No domingo, suas forças golpistas atacaram o Parlamento nacional em Trípoli, depois que 80 pessoas foram assassinadas em lutas em Benghazi, dois dias antes.

Na Líbia os bombardeios efetuados pelos EUA-OTAN ocasionaram
mais de 150.000 mortes diretas, 285.000 ferimentos incapacitantes
e destruição quase completa da infraestrutura do país.
Objetivos: ROUBAR o petróleo e a água.
(clique na imagem para aumentar)
Agora, o chefe do governo líbio chamou milícias islamistas para defender o governo, antes de novas eleições. Dado que o país está tomado por milícias muitas vezes mais poderosas que o exército oficial, que está dividido em mil grupos e facções, e que é presa de interferência externa que nunca termina, as chances de evitar-se guerra total são mínimas e diminuem rapidamente.

Mas esses são só os confrontos e atrocidades mais recentes que assolam a Líbia desde a “libertação” pela OTAN: bombardeios, assassinatos, sequestro do Primeiro-Ministro, invasão e ocupação de terminais de petróleo por bandos de mercenários a serviços de senhores-da-guerra, expulsão de 40 mil líbios (quase todos negros) de seus lares e assassinato de 46 manifestantes nas ruas de Trípoli num incidente – e tudo ignorado pelos estados que, supostamente, foram à guerra para proteger esses mesmos civis que, hoje, aqueles mesmos estados deixam morrer aos magotes.

General Khalifa Hiftar, golpista
De fato, o ocidente aproveitou a oportunidade para intervir na Líbia e assumir algum “comando” dos levantes árabes. O poder aéreo da OTAN em apoio à rebelião líbia fez multiplicar por 10 o número de mortos, mas teve papel decisivo na guerra – o que implica reconhecer que nenhuma força política ou militar havia lá que pudesse ocupar o vácuo político. Três anos depois, há milhares de presos sem julgamento, há cada dia mais divisões e o dissenso mais furioso, e as instituições que não entraram em colapso estão à beira do colapso.

Pois os EUA e a Grã-Bretanha continuam a treinar soldados líbios, para que assumam o controle! Antes de Gaddafi ser derrubado, Hiftar comandava a ala militar da Frente de Salvação Nacional apoiada pela CIA. Antes de sua mais recente tentativa de golpe, EUA simpáticos enviaram uma força de marines à Sicília para intervir; e John Kerry prometeu ajudar a Líbia com “securança e extremismo” [sic].

Gen. al-Sisi, golpista
Ambos, os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita, estão apoiando abertamente o golpe de Hiftar, como também Sisi, o general golpista do Egito. Depois de prender, encarcerar e abater a tiros número impressionante dos próprios islamistas egípcios, Sisi e seus apoiadores do Golfo estão decididos, agora, a impedir que eles se consolidem no poder da Líbia, rica em petróleo. Há sinais de que Sisi – que reclama que o ocidente teria abandonado a Líbia depois de derrubar Gaddafi – quer usar a crise líbia, para mobilizar suas próprias forças.

Mas não é só a Líbia que tem de conviver com o fracasso da intervenção da OTAN. O “revide” da guerra líbia já se disseminou por toda a África, desestabilizando a região do Sahel e para além dela. Depois da derrubada de Gaddafi, o povo tuaregue que lutara por Gaddafi voltou para suas terras no Mali, levando consigo suas muitas armas. Em poucos meses, todo o norte do Mali estava envolvido em total rebelião armada, tomado por combatentes islamistas. O resultado foi a intervenção militar francesa do ano passado, apoiada por EUA e Grã-Bretanha. 

Mas o impacto da Líbia vai muito além disso. Um dos grupos cuja campanha armada foi estimulada e inflada pelo armamento pesado obtido dos arsenais de Gaddafi – é o grupo Boko Haram.

O apoio popular à seita de terroristas nigerianos fundamentalistas – que sequestraram 200 meninas de uma escola mês passado e foram responsáveis por mais de 1.500 mortes desde o início do ano – foi cevado pela miséria, pela fome, pela seca e pela repressão brutal contra o norte muçulmano.

Bombeiros atuam na cidade de Jos na Nigéria após atentado do  grupo Boko Haram
Mas, como em todos os demais pontos na África e no Oriente Médio, cada intervenção externa só faz ampliar o ciclo da guerra do terror. Assim, a conclamação à ação, depois do sequestro das meninas pelo Boko Haram, levou as forças dos EUA, da Grã-Bretanha e da França à Nigéria, rica em petróleo, assim como a crise no Mali, ano passado, levou uma base de drones militares norte-americanos para dentro do vizinho Niger.

Forças armadas dos EUA estão agora envolvidas em 49 dos 54 estados africanos, além das ex-potências coloniais de França e Grã-Bretanha, no que já é uma nova onda de saque contra o continente: uma caça aos recursos e uma caça a influência maior ante o crescimento incessante do papel econômico da China, acionadas por presença militar em escalada frenética que espalha o terror por onde passa e onde chega. Tudo isso gerará seu específico revide, como aconteceu na guerra da Líbia.

Apoiadores da guerra da OTAN na Líbia argumentam que não houve intervenção militar ocidental na Síria, mas o país, mesmo assim, está tomado pelo caos e pela violência e já morreram mais de 150 mil naquela guerra horrenda. Mas é claro que, sim, há intervenção clandestina gigante, sim, em apoio aos terroristas na Síria: os estados da OTAN e os estados do Golfo, sim, estão lutando, na Síria, ao lado dos terroristas.

Um dos aspectos mais repugnantes da política ocidental para a Síria é o mecanismo de “liga/desliga” do apoio que o “ocidente” dá a grupos armados envolvidos naquele confronto, para manter os seus grupos favoritos sempre ativos no jogo – e sem dar a nenhum deles qualquer vantagem decisiva. De fato, o apoio de EUA, Grã-Bretanha e Golfo cresce sempre, nos últimos tempos, por causas dos resultados positivos que o exército de al-Assad está obtendo em campo.

Na Síria os EUA "et alii"  ja causaram mais de 150.000 mortes e 1.500.000 de refugiados
É impensável, não faz qualquer sentido, supor que o número de mortos na Síria seria menor, ou o conflito sectário menos brutal, se EUA e aliados tivessem lançado ataque militar de grande escala na Síria, em qualquer estágio do conflito. A experiência do Iraque – onde se estima que a guerra tenha feito 500 mil mortos – mostra isso, bem claramente.

Mas há essa expectativa de fazer mais e mais guerras, guerras de rotina, entre partes da elite ocidental que já estão impacientes para conseguir alguma nova intervenção. “Por qual causa os EUA lutarão?” perguntava, patética, a revista The Economist, no início desse mês, repetindo as queixas dos Republicanos nos EUA, de que a Casa Branca de Obama é “frouxa”. Para o resto do planeta, a realidade da Líbia e as consequências desastrosas do que o ocidente fez contra a Líbia deveriam ser resposta suficiente.
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[*] Seumas Milne (nascido em 1958) é um jornalista e escritor britânico. Muito respeitado como colunista e Editor associado do jornal The Guardian. Também autor de um best-seller sobre o 1984–5 British miners' strike, The Enemy Within: The Secret War Against the Miners, focalizando o papel do MI5  e do Special Branch na disputa.

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