22/5/2014, [*] Seumas Milne, The Guardian
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
No Iraque os EUA primaram pelo assassinato de civis e pelo uso de urânio empobrecido para envenenar a população civil |
O Iraque pode ter sido desastre
encharcado de sangue; e o Afeganistão, fracasso militar e político acachapante.
Mas da Líbia esperava-se que fosse diferente. A guerra da OTAN para derrubar o
coronel Gaddafi em 2011 foi saudada como intervenção liberal que teria
funcionado.
As potências ocidentais podem ter
distorcido o significado da Resolução da ONU sobre proteger civis, a cidade de
Sirte pode ter sido reduzida a ruínas, houve limpeza étnica em grande escala e
milhares de civis foram assassinados. Mas sempre se disse que a causa teria
sido nobre e alcançada sem mortos nos quadros da OTAN.
Afinal, não foi mortandade promovida
por Bush e Blair, mas por Obama, Cameron e Sarkozy. As pessoas foram
“libertadas”; o ditador, morto; massacre ainda pior teria sido evitado – e tudo
isso sem qualquer coturno visível em solo. Até o ano passado, o
Primeiro-Ministro ainda dizia que teria valido a pena, e prometia defender os
líbios “em cada passo do caminho”.
Mas... três anos depois de a OTAN ter
declarado vitória, a Líbia afunda-se outra vez em guerra civil. Nos últimos
dias, o general Hiftar, ligado à CIA, lançou sua segunda tentativa de golpe em
três meses. Supostamente, para salvar o país de “terroristas” e islamistas. No
domingo, suas forças golpistas atacaram o Parlamento nacional em Trípoli,
depois que 80 pessoas foram assassinadas em lutas em Benghazi, dois dias antes.
Agora, o chefe do governo líbio chamou
milícias islamistas para defender o governo, antes de novas eleições. Dado que
o país está tomado por milícias muitas vezes mais poderosas que o exército
oficial, que está dividido em mil grupos e facções, e que é presa de
interferência externa que nunca termina, as chances de evitar-se guerra total
são mínimas e diminuem rapidamente.
Mas esses são só os confrontos e
atrocidades mais recentes que assolam a Líbia desde a “libertação” pela OTAN:
bombardeios, assassinatos, sequestro do Primeiro-Ministro, invasão e ocupação
de terminais de petróleo por bandos de mercenários a serviços de
senhores-da-guerra, expulsão de 40 mil líbios (quase todos negros) de seus
lares e assassinato de 46 manifestantes nas ruas de Trípoli num incidente – e
tudo ignorado pelos estados que, supostamente, foram à guerra para proteger
esses mesmos civis que, hoje, aqueles mesmos estados deixam morrer aos magotes.
General Khalifa Hiftar, golpista |
De fato, o ocidente aproveitou a
oportunidade para intervir na Líbia e assumir algum “comando” dos levantes
árabes. O poder aéreo da OTAN em apoio à rebelião líbia fez multiplicar por 10
o número de mortos, mas teve papel decisivo na guerra – o que implica
reconhecer que nenhuma força política ou militar havia lá que pudesse ocupar o
vácuo político. Três anos depois, há milhares de presos sem julgamento, há cada
dia mais divisões e o dissenso mais furioso, e as instituições que não entraram
em colapso estão à beira do colapso.
Pois os EUA e a Grã-Bretanha continuam
a treinar soldados líbios, para que assumam o controle! Antes de Gaddafi ser
derrubado, Hiftar comandava a ala militar da Frente de Salvação Nacional
apoiada pela CIA. Antes de sua mais recente tentativa de golpe, EUA simpáticos
enviaram uma força de marines à Sicília para intervir; e John Kerry
prometeu ajudar a Líbia com “securança e extremismo” [sic].
Gen. al-Sisi, golpista |
Ambos, os Emirados Árabes Unidos e a
Arábia Saudita, estão apoiando abertamente o golpe de Hiftar, como também Sisi,
o general golpista do Egito. Depois de prender, encarcerar e abater a tiros
número impressionante dos próprios islamistas egípcios, Sisi e seus apoiadores
do Golfo estão decididos, agora, a impedir que eles se consolidem no poder da
Líbia, rica em petróleo. Há sinais de que Sisi – que reclama que o ocidente
teria abandonado a Líbia depois de derrubar Gaddafi – quer usar a crise líbia,
para mobilizar suas próprias forças.
Mas não é só a Líbia que tem de
conviver com o fracasso da intervenção da OTAN. O “revide” da guerra líbia já
se disseminou por toda a África, desestabilizando a região do Sahel e para além
dela. Depois da derrubada de Gaddafi, o povo tuaregue que lutara por Gaddafi
voltou para suas terras no Mali, levando consigo suas muitas armas. Em poucos
meses, todo o norte do Mali estava envolvido em total rebelião armada, tomado
por combatentes islamistas. O resultado foi a intervenção militar francesa do
ano passado, apoiada por EUA e Grã-Bretanha.
Mas o impacto da Líbia vai muito além
disso. Um dos grupos cuja campanha armada foi estimulada e inflada pelo
armamento pesado obtido dos arsenais de Gaddafi – é o grupo Boko Haram.
O apoio popular à seita de terroristas
nigerianos fundamentalistas – que sequestraram 200 meninas de uma escola mês
passado e foram responsáveis por mais de 1.500 mortes desde o início do ano –
foi cevado pela miséria, pela fome, pela seca e pela repressão brutal contra o
norte muçulmano.
Bombeiros atuam na cidade de Jos na Nigéria após atentado do grupo Boko Haram |
Mas, como em todos os demais pontos na
África e no Oriente Médio, cada intervenção externa só faz ampliar o ciclo da
guerra do terror. Assim, a conclamação à ação, depois do sequestro das meninas
pelo Boko Haram, levou as forças dos EUA, da Grã-Bretanha e da França à
Nigéria, rica em petróleo, assim como a crise no Mali, ano passado, levou uma
base de drones militares norte-americanos para dentro do
vizinho Niger.
Forças armadas dos EUA estão agora envolvidas
em 49 dos 54 estados africanos, além das ex-potências coloniais de França e
Grã-Bretanha, no que já é uma nova onda de saque contra o continente: uma caça
aos recursos e uma caça a influência maior ante o crescimento incessante do
papel econômico da China, acionadas por presença militar em escalada frenética
que espalha o terror por onde passa e onde chega. Tudo isso gerará seu
específico revide, como aconteceu na guerra da Líbia.
Apoiadores da guerra da OTAN na Líbia
argumentam que não houve intervenção militar ocidental na Síria, mas o país,
mesmo assim, está tomado pelo caos e pela violência e já morreram mais de 150
mil naquela guerra horrenda. Mas é claro que, sim, há intervenção clandestina
gigante, sim, em apoio aos terroristas na Síria: os estados da OTAN e os
estados do Golfo, sim, estão lutando, na Síria, ao lado dos terroristas.
Um dos aspectos mais repugnantes da
política ocidental para a Síria é o mecanismo de “liga/desliga” do apoio que o
“ocidente” dá a grupos armados envolvidos naquele confronto, para manter os
seus grupos favoritos sempre ativos no jogo – e sem dar a nenhum deles qualquer
vantagem decisiva. De fato, o apoio de EUA, Grã-Bretanha e Golfo cresce sempre,
nos últimos tempos, por causas dos resultados positivos que o exército de
al-Assad está obtendo em campo.
Na Síria os EUA "et alii" ja causaram mais de 150.000 mortes e 1.500.000 de refugiados |
É impensável, não faz qualquer sentido,
supor que o número de mortos na Síria seria menor, ou o conflito sectário menos
brutal, se EUA e aliados tivessem lançado ataque militar de grande escala na
Síria, em qualquer estágio do conflito. A experiência do Iraque – onde se
estima que a guerra tenha feito 500 mil mortos – mostra isso, bem claramente.
Mas há essa expectativa de fazer mais e
mais guerras, guerras de rotina, entre partes da elite ocidental que já estão
impacientes para conseguir alguma nova intervenção. “Por qual causa os EUA
lutarão?” perguntava, patética, a revista The
Economist, no início desse mês, repetindo as queixas dos Republicanos nos
EUA, de que a Casa Branca de Obama é “frouxa”. Para o resto do planeta, a
realidade da Líbia e as consequências desastrosas do que o ocidente fez contra
a Líbia deveriam ser resposta suficiente.
__________________
[*] Seumas Milne (nascido em 1958) é um
jornalista e escritor britânico. Muito respeitado como colunista e Editor
associado do jornal The
Guardian. Também autor de um best-seller sobre o 1984–5 British miners' strike, The Enemy Within: The Secret War Against
the Miners, focalizando o papel do MI5 e do Special
Branch na disputa.
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