sábado, 24 de maio de 2014

Putin contra o camarada lobo − Duelo na Ucrânia

21/5/2014, [*] Mike Whitney, Counterpunch  
Traduzido por mberublue

“O camarada lobo sabe o que comer e não pede licença a ninguém”
[O presidente russo referindo-se aos Estados Unidos].

O camarada lobo...
A crise na Ucrânia tem suas raízes em uma política que remonta há 20 anos. Sua origem pode ser rastreada até um artigo de Zbigniew Brzezinski, em 1997, na revista Foreign Policy, intitulado A Geostrategy for Eurasia [Uma geoestratégia para a Eurásia], no qual Zbig defende que os Estados Unidos têm de se estabelecer firmemente na Ásia Central, a fim de manter sua posição de única superpotência mundial. Por mais que muitos leitores estejam familiarizados com a forma de pensar de Brzezinski sobre essas questões, podem ainda não se ter orientado sobre o que ele diz sobre a Rússia. E é muito útil revisar essa parte, porque o recente incremento da violência tem mais a ver com a guerra por procuração movida contra a Rússia, que com a Ucrânia em si mesma. Eis o que diz Brzezinski:

A forma pela qual a Rússia se autodefinirá tem muito a ver com o papel que desempenhará a longo prazo na Eurásia (...) Mais do que tentar readquirir o status de potência global, a Rússia deve priorizar a sua própria modernização. Dado o tamanho do país e sua diversidade, um sistema político descentralizado somado à economia de livre mercado provavelmente se mostrará a melhor opção para liberar o potencial criativo do povo russo, assim como de seus vastos recursos naturais. Uma confederação russa não tão rígida, composta de uma Rússia Europeia, uma República Siberiana e uma República do Extremo Oriente, poderia inclusive tornar mais fácil o cultivo de relações econômicas mais estreitas com seus vizinhos. Cada um dos estados confederados habilitar-se-ia então para explorar o próprio potencial criativo local, sufocado ao longo dos séculos pela mão pesada da burocracia moscovita. Ao mesmo tempo, uma Rússia descentralizada seria menos suscetível aos movimentos do império.

Então, será essa a meta política dos Estados Unidos: criar uma “Confederação russa frouxa”, com uma economia que possa ser incorporada ao sistema baseado no mercado dos EUA?

Zbigniew Brzezinski
De fato, parece muito fácil a Brzezinski fatiar a Rússia em pequenos estados, estados mínimos que não tenham poder para ameaçar a expansão imperial dos EUA. Indubitavelmente, Brzezinski tem a visão de uma Rússia a vender a baixo preço seus “vastos recursos”... E em petrodólares, lógico! Para em seguida reinvesti-los em Títulos do Tesouro Americano, tornando ainda mais ricos os usurários corruptos de Wall Street e Washington. Zbig antevê ainda uma Rússia que abdicará de seu papel histórico no mundo e não terá voz ativa na elaboração da política global. Imagina uma Rússia cabisbaixa e conformada, que facilitará as ambições imperiais dos Estados Unidos na Ásia, até o ponto mesmo em que terá de pagar para reprimir o próprio povo em nome dos oligarcas dos Estados Unidos, fabricantes de armamento, magnatas do petróleo e o 1%.

Considere-se um parágrafo da peça composta por Brzezinski, que resume as metas de Washington na Ucrânia, na Rússia e onde mais aparecer qualquer meta. O trecho seguinte aparece na abertura da matéria publica, em negritos, não por acaso:

SEGURANÇA TRANSCONTINENTAL

Institucionalizar a forma e definir a substância de um sistema de segurança trans-Eurásia pode vir a se tornar a maior iniciativa de arquitetura política do próximo século. A base de uma nova estrutura de segurança transcontinental poderia ser um comitê permanente composto dos maiores poderes da Eurásia mais EUA, Europa, China, Japão, Confederação Russa e Índia, que poderiam discutir coletivamente os assuntos inerentes à estabilidade da Eurásia. O surgimento de um sistema transcontinental pode gradualmente aliviar os EUA de seus encargos, ainda que continuem alocados por ainda uma geração ou mais, em seu papel decisivo de árbitro da Eurásia. O sucesso geoestratégico desse empreendimento seria régua apropriada para avaliar o legado deixado pelos EUA como primeira e única superpotência global.

Tradução: Os Estados Unidos policiarão o mundo de perto, despacharão encrenqueiros e eliminarão quaisquer potenciais problemas onde surgirem. Será imposto o dogma sagrado do neoliberalismo (austeridade, privatizações, ajustes estruturais, reformas contra os direitos trabalhistas, etc.) em todos os lugares e para todos os participantes. Além do mais, os parceiros “menores”, como Europa, China, Japão, a Confederação Russa e Índia – deverão providenciar segurança para o próprio povo e às próprias custas, para que os EUA sejam “aliviados de alguns de seus encargos”.

Bases Militares pelo mundo
(clique na legenda para acessar notação)
Que beleza! E, além do mais, temos de pagar o salário dos nossos próprios carcereiros e carrascos.

Afinal de contas, o que diabos quer dizer “Segurança Transcontinental”? É eufemismo para “governo mundial”, sim, mas, bem feitas as contas, é tudo a mesma coisa. E temos mais, de Brzezinski:

A falha na expansão da OTAN (...) destruiria o conceito de uma Europa em expansão (...), ainda pior, poderia reacender latentes aspirações políticas russas em relação à Europa Central.

Essa declaração é estranhamente complicada. Primeiro, Brzezinski apoia a ideia de uma Europa em expansão; na sequência, mostra-se preocupado por a Rússia também se interessar por expansão... Como sempre: o roto fala do esfarrapado.

O que se depreende claro como água é que, na concepção de Brzezinski, a expansão da União Europeia e da OTAN ajudará as aspirações hegemônicas dos EUA. E isso é o que importa. Diz ele:

A Europa é a cabeça de ponte essencial dos Estados Unidos na Eurásia (...). Uma Europa maior e a OTAN ampliada servem aos interesses políticos dos EUA tanto no curto quanto no longo prazo (...). Uma Europa politicamente definida também é essencial para que a Rússia seja assimilada num sistema de cooperação global.

“Cabeça de ponte”? Em outras palavras, a Europa não passa de meio para alcançar um fim. E o que “fim” seria esse? Dominação Global. Sim, sim. É disso que Zbig fala. É. É claro que é.

A crise ucraniana tornou-se difícil de entender, por causa da neblina impenetrável na qual a mídia envolve, diariamente, incansavelmente, a política que move os eventos. Nos momentos em que a neblina dissipa-se um pouco, vê-se facilmente qual a causa de todos os problemas. Chama-se EUA, os bons, velhos EUA, fazendo sua farra a tiros, em terra alheia.

Nem a maioria dos ucranianos nem Putin querem guerra. Todo esse imbróglio foi criado pelo Tio Sam e seus asseclas, na tentativa de interromper o fluxo contínuo de gás russo para a Europa; empurrar a OTAN mais um pouco para leste; e quebrar em mil pedaços a Federação Russa. Esta é a verdade, toda a verdade.

Para conseguir seus objetivos, esses norte-americanos insanos não se importam de destruir a Ucrânia e matar tudo o que se mova num raio de 4.800 quilômetros de Kiev. Afinal... Já fizeram o mesmo no Iraque, não fizeram? Sim, fizeram.

Já disse aqui que, segundo o Wall Street Journal desta semana, “a produção iraquiana de petróleo alcançou seu mais alto nível nos últimos 30 anos”. Claro! E, afinal, os suspeitos de sempre estão auferindo lucros imensos. A questão é se farão na Ucrânia o que já fizeram no Iraque. Porque Washington não se importa com carnificinas, mas ainda se importa um pouco com a opinião dos eleitores. Massacres não são problema.

O caso é que Brzezinski não é o único a apoiar a atual política. Com Zbig está também, companheira de viagem, Hillary Clinton.

Hillary Clinton em campanha para 2016
De fato, foi ela quem primeiro falou do tal “pivô”, quando ainda era Secretária de Estado, em artigo intitulado “O século do Pacífico da América. Nesse artigo-discurso, Clinton descreveu um plano de reequilíbrio que, em tese, abriria novos mercados para as corporações dos Estados Unidos e para Wall Street; controlaria o fluxo de recursos vitais e “permitiria uma presença militar ampla” em todo o continente. Aqui, um trecho dessa fala-artigo de Clinton:

A decisão sobre o futuro da política será tomada na Ásia, não no Afeganistão ou no Iraque, e os Estados Unidos estarão no centro da ação. Os EUA estão em um ponto de pivoteamento, pois a guerra do Iraque está no fim e se inicia a retirada das tropas do Afeganistão. Nos últimos dez anos, colocamos imensos recursos nesses dois teatros de guerra. Nos próximos dez anos, precisamos ser sistematicamente inteligentes em relação ao lugar onde investiremos nosso tempo e energia, de maneira que possamos sustentar nossa liderança, assegurar nossos interesses e fazer avançar nossos valores.

Uma das mais importantes tarefas do Estado Americano para a próxima década será então dar solidez a substanciais aumentos de investimentos – diplomáticos, econômicos, estratégicos e outros – na região da Ásia e do Pacífico (...) O aproveitamento dinâmico do crescimento da Ásia é fundamental para os interesses econômicos e estratégicos dos Estados Unidos e prioridade absoluta para o presidente Obama. A abertura dos mercados asiáticos proverá os EUA de oportunidades sem precedentes para investimentos, comércio e acesso a tecnologia de ponta (...) As empresas americanas (precisam) entrar no mercado consumidor da Ásia, que é grande e está em crescimento (...) A região asiática já é responsável por mais da metade da produção mundial e por cerca da metade do comércio global. Como estamos nos esforçando para atingir a meta do presidente Obama, de dobrar as exportações até o ano de 2015, estamos à procura de oportunidades para mais negócios na Ásia (...) ao falar com líderes empresariais através do país, ouço sempre como é importante para os Estados Unidos expandir suas exportações e não perder as oportunidades de investimento no dinâmico mercado asiático.

“O aproveitamento dinâmico do crescimento da Ásia é fundamental para os interesses econômicos e estratégicos dos Estados Unidos e prioridade absoluta para o presidente Obama”?! Parece, por acaso, fala de alguém que queira cultivar relação mútua de benefícios comuns com seus parceiros comerciais? Ou soa, mais, como fala de quem quer chegar, assumir tudo e comandar o espetáculo?

Tudo tem a ver com o dinheiro – inclusive o plano de Washington para desviar a atenção, do Oriente Médio para a Ásia. A própria Clinton sempre diz exatamente isso. Releiam o que ela diz: “A abertura dos mercados asiáticos proverá os EUA de oportunidades sem precedentes para investimentos, comércio e acesso a tecnologia de ponta (...) As empresas americanas (precisam) entrar no mercado consumidor da Ásia, que é grande e está em crescimento (...)”.

Dinheiro, dinheiro, dinheiro. O potencial para mais e mais lucro é ilimitado. Assim, Madame Clinton quer fincar nossa bandeira exatamente no centro da ação, onde as empresas americanas possam acumular grana, sem temer represálias.

É também o que diz Brzezinski em sua obra prima The Grand Chessboard [O grande tabuleiro de xadrez], de onde tiramos esse pequeno excerto (p.31):

O poder que dominasse a Eurásia dominaria duas das três regiões mais avançadas e economicamente produtivas do mundo. Um simples olhar que se lance ao mapa mostra que quem domina a Eurásia tem assegurada de forma quase automática a subordinação da África, tornando o hemisfério ocidental e a Oceania (Austrália) politicamente periféricos ao continente central do globo. Quase 75% da população mundial vive na Eurásia, e a maioria da riqueza física mundial se encontra ali, ou nas empresas ou no subsolo. A Eurásia provê três quartos dos recursos energéticos conhecidos do mundo.

Cha-ching!

O caro leitor está começando a entender? É uma nova corrida do ouro! Depois de ter pirateado, agredido e saqueado a classe média dos EUA até o último centavo, deixando em farrapos a economia, Brzezinski, Clinton et caterva estão migrando para pastos mais verdes na Ásia Central, onde se localizam as maiores nações produtoras de petróleo do mundo, com as reservas ilimitadas da bacia do Mar Cáspio e, a cereja do bolo, com zilhões de consumidores ávidos para comprar de tudo, começando por i-pads para matar o tempo, e tudo, é lógico, fornecido por empresas norte-americanas. Cha-ching! [1]

Vladimir Putin pela imprensa-empresa ocidental
Por tudo isso, não se impressione, caro leitor, com o dia a dia da Ucrânia. A luta que ali se desenrola nada tem a ver com “forças pró-Kiev e ativistas antigovernamentais”. É, só, só, mais uma fase do plano dos EUA para conquistar o mundo. Esse plano visa a arrastar a Rússia a, inevitavelmente, lutar contra o massacrante poderio militar dos EUA. É Davi contra Golias. Mãe-Rússia contra o Grande Satã. Vlad Putin contra o camarada lobo. A Ucrânia é só o primeiro round.  
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Nota dos tradutores
Cha-ching! É palavra onomatopaica de uso urbano nos EUA e que significa o barulho feito pela caixa registradora ao fechar. Usada em conversação para exemplificar grande lucro com o uso de poucos recursos. Exemplo: “comprei uma casa em leilão judicial por R$ 100 mil e acabo de vendê-la por R$ 380 mil. Cha-ching!”
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[*] Mike Whitney é um escritor e jornalista norte-americano que dirige sua própria empresa de paisagismo em Snohomish (área de Seattle), WA, EUA. Trabalha regulamente como articulista freelance nos últimos 7 anos. Em 2006 recebeu o premio Project Censored por um reportagem investigativa sobre a Operation FALCON, um massiva, silenciosa e criminosa operação articulada pela administração Bush (filho) que visava concentrar mais poder na presidência dos EUA. Escreve regularmente em Counterpunch e vários outros sites. É co-autor do livro Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press) o qual também está disponível em Kindle edition. 
Recebe e-mails por: fergiewhitney@msn.com.

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