Publicado
em 11/04/2013 por Urariano
Motta
Recife
(PE) - Um
texto de Contardo Calligaris na Folha me dá inspiração hoje para esta coluna. O
artigo de Calligaris me chamou a atenção desde o título, Mulheres infelizes. Mas
não só, porque depois de mencionar os romances Anna Karenina, Madame Bovary e
Thérèse D., Contardo Calligaris escreve que:
...a
modernidade poderia (ou deveria) começar, exemplarmente, com essas três
histórias de insatisfação feminina, ou seja, com a descoberta de que as mulheres
têm sonhos e devaneios que vão além de um marido devoto, de uma família e de uma
vida ao abrigo da necessidade --em outras palavras, com a descoberta de que
existe um desejo feminino.
E
foram as frases em itálico acima que me moveram para esta coluna. Não sei se
Calligaris sabe, mas no Brasil a infelicidade das mulheres bem gostaria de
possuir maridos devotos, famílias e vidas sem necessidades básicas. Se assim
fossem infelizes, 90% das brasileiras até poderiam dizer que sentiam um
pouquinho do gosto da felicidade. É sério. Quando a gente relaciona a
infelicidade feminina nos romances clássicos às mulheres brasileiras, a
inadequação é a mesma do pregador franciscano em Canudos, no instante em que
recomendava jejum de farinha e bacalhau aos sertanejos. O religioso ganhou
gargalhadas, aos gritos de que “assim já é fartura”.
Queremos
dizer, a infelicidade da mulher nos romances apontados por Calligaris é, ela
própria, uma infelicidade ainda inalcançável para a maioria das brasileiras. E
se falo mais claro, digo: o nosso inferno é maior, buracos mais embaixo. Pois se
não sabem, saibam que também há uma radicalização no infernizar a infelicidade,
como um descer vertical no aviltamento, numa injustiça que aprisiona, condena e
mata. Escreve Calligaris:
Não
é por acaso, aliás, que, nos três romances, a maternidade não faz a felicidade
das mães. A descoberta do desejo feminino acompanha a descoberta da inadequação
e da insuficiência dos homens, como maridos e também como filhos.
Mas
em que mundo ele vive? A infelicidade das mães no Brasil começa já na falta de
um lugar onde com segurança elas dêem à luz. Enquanto escrevo as maternidades
populares estão repletas de mulheres nos corredores, no chão, agonizando. Ah,
Bovary.
As
traduções das mulheres infelizes do mundo clássico para o Brasil atendem pelo
nome de Maria. Em lugar de nobres e burguesas, esse nome é dado para melhor
corpo e formas, que se machucam nas pessoas das pobres, bravas e violentadas.
Agora mesmo é possível sentir o cheiro do velho tempo que sobrevive na
modernidade do Brasil. O cheiro vem de flores sem perfume, apenas com um acento
de náusea, porque cobrem cadáveres. Exagero? É só ter olhos de ver, coração de
sentir e pensamento de não negar. Abram as folhas, percorram a web, escrevam na
busca mulheres assassinadas. Entre os 2.800.000 resultados, a maioria será de
crimes “de amor”. Na verdade, mulheres assassinadas por um amor que jamais
receberam. E que amam ainda assim.
Na
verdade, as mulheres sem amor amam, mas em um afeto de compensação. Agora digo
por que o texto de Calligaris me deu o mote para a coluna de hoje. O seu título,
Mulheres infelizes, me trouxe à lembrança um trecho do meu próximo romance, “O
filho renegado de Deus”. Dele copio o parágrafo a seguir:
Existe
no coração das pessoas uma vontade irrefreável de amar. Ama-se um gato, ama-se
um cachorro, um papagaio, uma flor que ninguém quer ou vê. Talvez esse amor que
deriva e vaga por objetos e coisas que não respondem, ou respondem abaixo da
fome de amar, talvez sejam sintomas do afeto que procura no mundo um individuo
que lhe responda. Ou, quem sabe, o amor elástico, amplo e plástico onde tudo
cabe. Em lugar de um pansexualismo, como o vê uma absurda redução, o amor às
coisas é antes um panafeto. O carinho e o cuidado com que se toca uma
mercadoria, um carro, um revólver, uma faca ou uma caneta, em lugar de um
desvio, de um puro desvio daquele coração que se guarda para um amor maior,
talvez seja o coração mudado para um afeto camaleão, que se veste da pele do
lodo do esgoto ao verde da mata. Camaleão feio, mas camaleão. Iguana de luxo,
iguana-afeto que, em vez de saltar os obstáculos à sua natureza, faz da
adaptação ao obstáculo a sua natureza.
Quero
dizer, enfim: a modernidade poderia e deveria começar no Brasil com a descoberta
de que mulheres são pessoas plenas, loucas por um dia terem o drama de Madame
Bovary. E corrijo: no Brasil? Melhor seria dizer, nos Brasis de todos os lugares
onde houver a redução de gente a coisa, ou a corpo, puro corpo. Corpos desejados
de mulheres, e quando fora de utilidade, destruídos.
_____________________
Enviado por
Direto da
Redação
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