E cria seus próprios inimigos para a era pós 11/9
23/4/2013, Tom Engelhardt, Tom Dispatch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O livro Blowback [tiro pela culatra/revide]: The Costs and Consequences of
American Empire [Os Custos e Consequências do Império Americano] de
Chalmers Johnson foi publicado em março de 2000 – praticamente sem ser
percebido. Até então, “tiro pela culatra” era uma expressão obscura cunhada pela
CIA, que Johnson definiu como “as consequências não desejadas de políticas que
foram mantidas secretas, ignoradas pelo povo norte-americano”. No prólogo, o
ex-consultor da CIA e especialista em Mao Tse Tung (revolução
camponesa) e em Japão moderno, apresentava-se, como personagem da Guerra Fria,
como “ator coadjuvante do Império”.
Depois
que desapareceu a União Soviética em 1991, Johnson surpreendeu-se ao descobrir
que a estrutura global essencial do outro colosso da Guerra Fria, a
superpotência norte-americana, com suas muitas bases militares, permanecia
absolutamente intocada, como se o fim da URSS nada tivesse modificado. Quase uma
década adiante, quando o Império do Mal já não passava de memória histórica,
Johnson novamente correu os olhos pelo planeta e descobriu um “império
norte-americano informal” de imenso alcance e grande poder. Convenceu-se então
de que, na ambição planetária, Washington cultivava o terreno “em todo o planeta
(...) para futuras novas modalidades de tiros pela culatra-revides”.
Johnson
observou “sinais muito claros de uma crise do século XXI”. No primeiro capítulo
de Tiro pela Culatra, o livro, o autor concentra-se na análise de “um
ex-protégé dos EUA”, de nome Osama bin Laden, e na Guerra Afegã contra os
soviéticos, da qual emergiram o próprio Osama e uma organização chamada
al-Qaeda. Naquela guerra, Washington apoiara ao máximo possível – e a CIA
forneceu dinheiro e armas – aos mais extremistas dos fundamentalistas
islamistas, o que abriu caminho para que, adiante, os Talibã tomassem o
Afeganistão.
Em
matéria de “consequência não desejada”, difícil achar melhor exemplo! O objetivo
daquela guerra fora aplicar uma sova à União Soviética, de arrasar, estilo
Vietnam. O que foi feito. Mas o que ali se fez plantou as sementes do que... Em
1999, quando Johnson escreveu, ainda não se sabia o que viria. Mas ali estava
uma pista, uma intuição, um palpite que, dia 12/9/2001 já convertera em
“profético” o livro de Johnson. E ele falava também de outro fenômeno: os
norte-americanos, ao que lhe parecia, “separamo-nos de qualquer consciência
genuína de como outros povos do mundo nos veem e olham para nós”.
Com
o livro “Tiro pela Culatra” [Blowback], Johnson almejava corrigir esse
vício; pintar um quadro de como aquele império informal e sua gigantesca rede de
bases militares distribuídas por todo o mundo, maior que qualquer outra que o
mundo jamais conhecera, viam os outros; assim, planejava explicar por que o
antiamericanismo crescia; e por que os tiros pela culatra e os revides estavam,
de fato, em gestação, pelo planeta. Depois do 11/9/2001, o livro de Johnson
saltou imediatamente para o topo de todas as listas de livros mais vendidos nos
EUA; e as expressões “tiro pela culatra”, “revide” e “consequências não
desejadas” entraram para a linguagem diária. Pode-se dizer que Chalmers Johnson
foi o primeiro intelectual norte-americano especialista em tiros pela
culatra e revides.
Agora,
mais de dez anos depois, surge outro livro. Dessa vez, o autor é o primeiro
repórter norte-americano especialista em tiros pela culatra e revides.
Chama-se Jeremy Scahill.
Jeremy Scahill |
Em
2007, Scahill já publicara um best-seller “surpresa”: Blackwater: The Rise of the World's Most Powerful Mercenary
Army
[Blackwater: Ascensão do mais poderoso exército mundial de mercenários]
[1].
Beneficiou-se de um momento quando o governo Bush, preparando-se para suas
guerras longínquas, trabalhava como maníaco para “privatizar” a segurança
nacional e os militares norte-americanos, contratando espiões-de-aluguel,
pistoleiros-de-aluguel e empresas de aluguel para suas guerras que proliferavam
feito praga.
Nos
anos seguintes, foi como se Scahill tivesse tomado a peito, como desafio
pessoal, a observação de Johnson – que os norte-americanos não sabem ver o mundo
como ele é. E nem chegava a surpreender, porque grande parte do “modo
norte-americano de guerrear” já mergulhara nas sombras. Dois governos em
Washington já se haviam
arrogado cada vez mais poderes para fazer guerras e arrochar a (in)segurança
interna; começaram então a desenvolver novos, clandestinos, ocultados métodos de
guerra. No processo, transformaram uma CIA cada vez mais militarizada e uma
equipe “técnica” conhecida como Comando Conjunto de Operações Especiais
[orig. Joint Special Operations Command
(JSOC)] e uma sua “arma perfeita”, nova em folha, um objeto de desejos e
delírios high-tech, o drone [veículo aéreo pilotado à distância,
por joystick], no exército privado, privatizado, do próprio presidente.
Naqueles
anos, a guerra e o caminho para produzir mais guerras já se haviam convertido em
assunto privado e propriedade da Casa Branca e do estado de segurança nacional –
e de mais ninguém. Praticamente nada disso, claro, era segredo para os que
operavam na ponta rumo à qual o dinheiro andava. Só os norte-americanos nada
sabiam e nada deveriam saber do que era feito em seu nome. Resultado disso tudo,
havia ali uma história da guerra secreta produzida nos EUA para o século 21, que
bradava aos céus para ser narrada.
Agora,
essa história já aí está, na forma do novo livro de Scahill: Dirty Wars: The World Is a
Battlefield
[Guerras Sujas: o mundo é um campo de batalha].
Scahill rastreou, com especial
detalhe, a ascensão do Comando Conjunto das Forças Especiais. No Iraque, assumiu
as feições de uma espécie de Assassinatos Inc., “um ramo
empresarial-executivo, para assassinatos”, como
disse Seymour Hersh, que operava a partir do gabinete
do vice-presidente Dick Cheney. Em seguida a mesma unidade militar/empresa
serviu-se dos seus métodos de caça/assassinato contra o Afeganistão e, dali,
para o planeta, à medida em que as próprias forças especiais iam-se convertendo
em exército secreto caro, cevado entre os militares
norte-americanos. Naqueles
anos, Scahill começou a seguir as pegadas de tipos das forças especiais em
campo, sem deixar de acompanhar fontes dentro daquela comunidade e em outros
pontos do mundo militar e da inteligência.
No
novo livro, retraça as guerras burocráticas de inteligência em Washington,
enquanto o Pentágono, a CIA e o resto da comunidade de inteligência nos EUA ia
ganhando músculos e ordens secretas, diretamente da presidência, davam ao
Comando Conjunto das Forças Especiais, principalmente, autoridade sem
precedentes para converter o planeta em área de tiro livre.
Finalmente,
como repórter, viajou a vários “cenários” perigosos – Somália, Iêmen, Paquistão
– aos quais os norte-americanos absolutamente não davam qualquer atenção, e onde
militares norte-americanos e a CIA (trabalhando lado a lado com empresas
privadas de segurança contratadas) faziam testes e desenvolviam novos métodos
para fazer avançar o alastramento das guerras secretas de Washington.
Como
Scahill escreve nos “Agradecimentos”, agradecendo a colaboração de outro
repórter que viajou com ele, “Estávamos juntos quando atiravam contra nós,
em telhados de
Mogadishu , dormimos lado a lado no chão úmido no interior do
Afeganistão e atravessamos juntos terras do sul do Iêmen”. Aí se vê algo do
espírito do livro, produzido por repórter dedicado, independente - nunca
“incorporado” às forças militares – trabalho impressionante, inspirador, às
vezes assustador.
No processo, Scahill, o qual,
naqueles anos, publicou várias reportagens impressionantes, como correspondente
de segurança nacional da revista The
Nation, descortina para nós aqueles esquadrões norte-americanos da morte
operantes no Iraque; raids noturnos, coisa de pesadelo, no Afeganistão
(nos quais morriam alvos “errados”; entrega secreta de suspeitos de terrorismo a
uma prisão que a CIA mantém na Somália (e já depois de o presidente Obama ter
proibido a “entrega extraordinária” de prisioneiros); o uso de drones e
mísseis Cruisers em ataques
desastrados contra civis no Iêmen; a caçada, até o assassinato de cidadãos
norte-americanos (ditos “suspeitos de atos terroristas”, embora Abdulrahman
Awlaki, de 16 anos, um dos assassinados, com certeza absoluta jamais tenha
praticado qualquer ato terrorista) também no Iêmen e ordenados pelo
presidente; o complexo mundo
das operações do Comando Conjunto das Forças Especiais/CIA/Blackwater no
Paquistão – e muito mais, incluindo uma indicação de que o Comando Conjunto das
Forças Especiais chegou a iniciar operações em solo, também no Uzbequistão.
(Quem ouvira falar disso?!).
Ann Jones |
Dirty
Wars
[Guerras Sujas] é também, nos termos de Johnson, uma história do futuro; uma
história de tiros pela culatra/revides potenciais; uma mensagem na garrafa que
nos é enviada de dentro das linhas ocultas dos campos de combate secretos
globais dos EUA – e aí há uma história dos EUA, que desconhecemos.
Preparando
o campo de batalha
Há
poucos anos, Ann
Jones, correspondente de Tom Dispatch,
contou-me algo que nunca esqueci. Tendo passado algum tempo incorporada às
tropas dos EUA no Afeganistão, ela assim descreveu as patrulhas que faziam pelo
interior do país: sim, há perigo, principalmente as bombas nas estradas [orig.
IEDs (roadside bombs)], mas no geral as áreas patrulhadas diariamente,
dia após dia, eram estranhamente desertas, “vazias”. Em certo sentido, era quase
como se não houvesse ninguém, como se combatessem uma guerra fantasma num –
palavras dela – campo de batalha vazio.
Essas
palavras têm um análogo planetário, no notável novo livro de Scahill. Como
tantos lembram, imediatamente depois dos ataques de 11/9, Bush e seus assessores
logo se puseram a pensar grande. Inesquecível, o Secretário da Defesa Donald
Rumsfeld pôs-se a exigir que seus assessores lhe apresentassem um plano contra
Saddam Hussein do Iraque, apenas cinco horas depois que o avião do voo 77 da American Airlines se espatifasse contra
o Pentágono. Em semanas, já altos funcionários do governo falavam com firmeza
sobre a necessidade de a OTAN “drenar
o pântano” dos
terroristas e dos inimigos dos EUA em escala global. Sabe-se
que houve planos para atacar entre 60 e
80
países,
entre um terço e metade dos países do planeta. Em outras palavras, quando
rapidamente declararam uma Guerra Global ao Terror, não estavam brincando.
Tratava-se disso, bem literalmente, e, como Scahill relata, imediatamente se
puseram também a construir o tipo de exército – secreto, que só obedeceria a
eles – capaz de combater em qualquer canto do mundo.
Rumsfeld |
Enquanto aquelas forças eram
despachadas globalmente, para recolher inteligência, treinar forças estrangeiras
(quase sempre ditas “especiais”
e secretas), e especialmente para caçar e
matar terroristas, uma nova expressão construída entrou rapidamente em
circulação, expressão tão crucialmente importante para o livro de Scahill,
quanto “tiro pela culatra/revide” foi importante para o livro de Johnson.
Estava, como diziam, começando a “preparar o campo de batalha” (ou, como também
se dizia, “o espaço de combate” ou “o ambiente de confronto”). Essa preparação
não poderia ter sido mais apavorantemente enlouquecida. O Secretário de Defesa
Rumsfeld assim resumiu o quadro: “Hoje, todo o mundo é o espaço de combate”.
Aqui,
o mais estranho: quando aquelas forças secretas partiram para fazer seu serviço
sujo, aquele espaço de combate global era, nas palavras de Jones, espantosa,
estranhamente vazio.
Não se via ninguém. Talvez algumas centenas, no máximo alguns milhares de
jihadis espalhados pelas áreas mais remotas do planeta. Se “preparar o
campo de batalha” converteu-se em palavra chave daquele momento, nunca foi
expressão descritiva acurada. Mais preciso seria dizer
“criar o campo de batalha” ou, então, “povoar o campo de batalha”.
Campo do Sonhos |
O
padrão que Scahill traça brilhantemente, bem se pode entender no subtítulo do
filme “Campo dos
Sonhos”:se
você construir, eles virão. O resultado não foi tanto uma guerra contra o
terror: foi, muito mais, uma guerra de terror e pelo terror. Washington,
simultaneamente, produzia uma máquina de matar e uma máquina para gerar terror.
“Guerras Sujas”, Dirty Wars, de Scahill captura o modo como os altos
oficiais convenceram-se de que a única superpotência restante no planeta, a
última, com “a melhor
força de combate que o mundo jamais conheceu”
(como, hoje, os presidentes dos EUA nunca se cansam de repetir), podia
simplesmente abrir caminho à bala e à morte, até a vitória global.
Scahill mostra também que eles são
frequentemente bem-sucedidos no processo de matar as pessoas que haja em sua “lista
de matar” [orig. kill list], de
Osama bin Laden para baixo: o próprio Bin Laden no Paquistão; Abu Musab
al-Zarqawi no Iraque; Aden Hashi Ayro na Somália; Anwar al-Awlaki no Iêmen, além
de vários “tenentes” entre altas figuras da al-Qaeda e grupos aliados. E,
enquanto vão sendo assassinados os “listados”, com os drones da CIA e os
voos do Comando Conjunto das Forças Especiais, assassinam-se também quem esteja
por perto. Não raras vezes, foram civis inocentes – e em grande quantidade.
Gente
que de modo algum poderia ter tido a porta de casa arrombada, os filhos presos,
a esposa grávida assassinada a tiros, gente que para sempre sentirá o horror
daqueles momentos. E assim, antes que Washington percebesse, a lista de matar
inchava, nunca diminuía; e suas guerras tornavam-se mais, nunca menos, intensas
e vastas, já chegando a outras terras. O campo de combate, tão atentamente
preparado, começava a encher-se de inimigos.
Uma
máquina de moto perpétuo para desestabilizar o planeta
Enquanto
Washington lançava suas aventuras pós 11/9, os aliados neoconservadores do
governo Bush, acreditando que o vento lhes enchia as velas, punham os olhos no
mundo, do Norte da África à fronteira da China na Ásia Central (o chamado
“Oriente Médio Expandido”) que gostavam de chamar de “arco de instabilidade”. O
serviço dos EUA, imaginavam eles, seria estabilizar o tal “arco” empregando o
gigantesco poder militar dos EUA para criar uma Pax
Americana na região.
Eram, em outras palavras, fundamentalistas, e os militares dos EUA eram sua
religião original. Acreditaram que esse tecno-poder derrotaria, forçaria à
rendição, qualquer outra forma de poder no mundo.
Em
tempos de retirada dos EUA do Iraque e à luz do desastre da guerra no
Afeganistão, se se examina o Oriente Médio Expandido hoje – do Paquistão à
Síria, do Afeganistão ao Mali – vê-se, agora sim, o que é instabilidade. 12 anos
depois, grande parte da região já foi desestabilizada em maior ou menor grau, o
que bem se pode tomar como definição do sucesso de Washington no curto prazo; e
fragoroso fracasso, no longo prazo.
Na
realidade, estiveram errados desde o início. Afinal, por trás da guerra lançada
pelo governo Bush e mantida e ampliada pelo governo Obama, sempre esteve uma
“remontagem”, para o século XXI, da mesma brutal estratégia com a qual
Washington já falhara no Vietnã. A expressão que entrou em moda então foi “o
ponto da virada”, um suposto momento crucial no que então já se pensava,
declaradamente, como “guerra de atrito”.
A
ideia era bem simples. O aterrador poder de fogo ao qual Washington tinha acesso
imporia ao inimigo vietnamita o resultado esperado, óbvio: mais cedo ou mais
tarde, chegaria o momento em
que os EUA estariam matando mais inimigos do que o inimigo
conseguiria recrutar no Vietnã do Sul; ou se infiltrariam reforços, vindos do
norte. Naquele momento, Washington “viraria” rumo à vitória. Todos sabemos no
que deu aquilo – da infame
contagem de cadáveres (que o governo Bush tentou
desesperadamente evitar no Iraque e no Afeganistão),
à carnificina em escala jamais vista e à derrota, quando nem o prodigioso número
de inimigos mortos resultou em os EUA conseguirem “virar” rumo à vitória.
E
aqui está a ironia. Como seu pai, o qual, no final da primeira Guerra do Golfo,
em 1991, discursou,
em êxtase,
que “acabamos com a síndrome do Vietnã, de uma vez por todas”, George W. Bush, o
filho, e seus principais oficiais padeciam de alergia mortal à memória do
Vietnã. Mesmo assim, ainda deram jeito de lançar uma guerra global de atrito
contra vários grupos que definiram como “terroristas”. Estavam bem visivelmente
planejando assassiná-los, um a um se possível, ou sem nem identificá-los, em “Grupos
de assinatura” [orig.
“signature groups”], se necessário,
até alcançar algum ponto onde conseguissem “virar”, quando o inimigo esteja
perdendo tantos braços que não possa repô-los, e a vitória raie no horizonte.
Como no Vietnã, claro, esse ponto de ‘virada’ jamais chegou e é cada dia mais
claro que jamais chegará. Quanto a isso, o livro-reportagem de Scahill é
incisivo.
“Guerras
Sujas” [Dirty Wars] é realmente a história secreta de como Washington
lançou uma série de guerras não declaradas nos confins do planeta e abriu, a
fogo e morte, o próprio caminho para algo que cada dia mais se aproxima de total
guerra global: criou um oceano de inimigos, a partir de praticamente nenhum
inimigo. Pode-se dizer que foi a realização de um desejo inconsciente de morte,
e os resultados – sim, alcançados! – chegaram como um campo de pesadelos.
O
que se criou naquele processo parece hoje uma máquina de moto perpétuo para
desestabilizar do planeta. Basta acompanhar
o aumento do
número de bases
de drones e
dos raids dos grupos do Comando Conjunto das Forças Especiais, e logo se
veem, diante dos olhos e em ação, o processo em andamento de desestabilização do
planeta. Ou que se leia o livro de Scahill, para conhecer o relato, golpe a
golpe, de como aconteceu. O processo está agora em andamento, já
bem avançado, na África, onde
a desestabilização parece tomar rumo sul, da Líbia via Mali.
Reli
“Tiro pela culatra/revide” [Blowback] 13 anos depois da primeira leitura,
e é difícil acreditar que alguém tenha conseguido ver tão à frente no tempo,
dada a preferência, entre os humanos, por jamais tentar ver muito adiante de
coisa alguma. O mais triste de tudo que se possa dizer sobre “Guerras Sujas”
[Dirty Wars] é que, pelo que já se vê hoje, dentro de outros 13 anos
também o livro de Scahill voltará às manchetes, tão atual quanto o noticiário de
ontem. Scahill desmascarou um modo de fazer guerras que parece destinado à
perpetuidade, não importa que governo os norte-americanos elejamos para nos
governar.
Ainda
há muito que todos ignoramos sobre as atuais “não guerras” que os EUA estamos
guerreando. Daqui a 13 anos talvez saibamos muito mais sobre o que o Comando
Conjunto das Forças Especiais, a CIA e outros realmente fizeram nesses anos
iniciais do processo. Mas nada disso modificará o padrão que Scahill conseguiu
traçar e exibir para todos.
Assim
sendo, não hesitemos: “missão cumprida!” Talvez o mundo ainda não fosse um campo
de batalha quando começaram a trabalhar. Mas, sim, aquela gente preparou o
espaço global de batalha, e fez bem feito: hoje já estamos bem adiantados
naquele mesmo processo então iniciado.
E,
quase sem que ninguém percebesse, as guerras imperiais encontraram via para
também voltarem para casa. Consideremos a reação às
explosões na Maratona de Boston.
A
resposta foi sem dúvida a maior, mais militarizada caçada humana de toda a
história dos EUA. A seu modo, também foi exemplo de campo de batalha deserto,
vazio. Uma área
metropolitana de 217 km2 foi quase completamente esvaziada
e cercada. Pelo menos 9 mil policiais pesadamente
fardados e armados, da Polícia local, da Polícia estadual, policiais federais e
centenas de soldados
da Guarda Nacional,
equipes da SWAT, veículos blindados, helicópteros e sabe-se lá o que mais
tomaram as ruas de Boston e arredores, à caça de dois perigosos, enlouquecidos
jovens, um dos quais terminou ensanguentado num barco num fundo de quintal, nas
fronteiras da zona que a Polícia fechara, em Watertown. Esse espetáculo seria
inimaginável nos EUA de antes do 11/9.
O custo dessa operação tem de ter
sido estratosférico (sobretudo se se somam os prejuízos a todos os comerciantes
da cidade, impedidos de abrir as lojas). No final, claro, um dos suspeitos foi
assassinado e o outro foi capturado – e as
celebrações
por mais esse sucesso de curtíssimo prazo começaram imediatamente nas ruas de
Boston e nos veículos da imprensa-empresa. Mas nem assim se conseguiu provar que
abrir caminho a fogo e à morte para o sucesso seria estratégia vencedora. De
fato, continuamos no mundo dos tiros pela culatra/revides do livro de Scahill,
no qual, não importa o número de mortos, nada sugere que estejamos mais próximo
do ponto “da virada”, na guerra.
Depois
que Dzhokhar Tsarnaev, o segundo suspeito de autor dos ataques em Boston, foi
capturado, o senador Republicano Lindsey
Graham tuitou
uma nova frase, que
se integrou ao discurso norte-americano: exigindo
que o rapaz de 19 anos fosse considerado “inimigo não combatente” (como são os
detidos sem julgamento e sem acusação formal na prisão de Guantánamo), Lindsey
Graham escreveu: “A pátria é o campo de batalha”. Leitores de “Guerras Suja”
[Dirty
Wars]
de Scahill, devem ter estremecido de pavor.
Enquanto o mundo queima
e arde e
derrete-se, Washington
se autodeterminou uma missão global crucial: despachar suas forças secretas para
aquele campo de batalha global, à caça de jihadis.
Foi
o pior erro imperial de avaliação, desde que Nero tomou da harpa e tocou,
enquanto Roma queimava.
Nota dos tradutores
[1] Sobre a empresa, ver 21/10/2010,
redecastorphoto, Jeremy Scahill,
em: Blackwater
& Co. - A “negabilidade total” , The Nation, em português.
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