31/3/2013, Robert Fisk, The Independent
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Robert Fisk |
Cristãos
renascidos raramente se dão conta de que o seu pressuposto direito ‘'dado por
Deus'’ para invadirem o Iraque destruiu uma das mais antigas comunidades cristãs
no Oriente Médio.
No final da década dos 40s do
século 14, Bernardo Daddi de Florença pintou “A Virgem e o Menino com um
Doador”.
[1]
O
doador cujo nome não se conhece aparece, minúsculo e em oração, num canto
inferior da composição; e uma virgem de proporções monumentais – de véu escuro e
vestido vermelho brilhante coberto de renda que cobre, por sua vez, busto
absolutamente sem relevância – segura nos braços um Cristo de olhar meio
sinistro, que prende na mão um pintassilgo de bico aberto. O pintassilgo, como
outros pássaros da Renascença, tem simbolismo próprio: é pássaro que come
espinhos; prefigura, no quadro, a coroa de espinhos que Cristo usará 30 anos
adiante.
“A Virgem e o Menino com um Doador” |
Mas
o que mais me chamou a atenção foi o tecido cor-de-rosa da roupa do Cristo-bebê.
Porque nas franjas do tecido parece haver algo escrito em árabe. Inspeção mais
próxima – o mais próximo que consegui chegar, na Galeria de Arte de Ontário em
Ottawa, onde está montada a exposição “Revealing the Early Renaissance: Stories and Secrets
in Florentine Art” [Revelando a Primeira Renascença:
histórias e segredos na arte florentina] – sugere que os grafismos, sim,
bem parecem ser escrita árabe. Pode ser um “-lah” ou mesmo um “k” (kaf),
mas nada que faça sentido. No que escreveu sobre a exposição, Victor Schmidt
fala de “inscrição em pseudo árabe”.
Muito
estranho. Os florentinos conheciam o mundo islâmico. Dante Alighieri pôs o
Profeta Maomé no oitavo círculo do inferno em sua Divina Comédia ;
e embora as Cruzadas já estivessem acabadas há mais de um século e meio, os
florentinos mantinham ativo comércio com os fabricantes de seda da Síria. E uma
sociedade cristã-muçulmana já florescia na Andaluzia. Nem assim Bernardo Daddi
deu-se o trabalho de escrever linha de verdadeira língua árabe.
Porção ampliada do quadro "A Virgem e o Menino com um Doador" |
Naquele
tempo, Florença era o mais poderoso centro econômico da Europa, e seus
banqueiros e comerciantes podiam amenizar o medo do fogo do inferno, contratando
os grandes pintores de seu tempo para honrar Deus. Mas, por mais que soubessem
que Jesus morreu numa cidade chamada Jerusalém, a ilustração que faziam à guisa
de Terra Santa era marcada e peculiarmente europeia.
É
verdade que sempre há abundante sangue, naqueles trabalhos. Respinga do pescoço
de João
Batista , escorre de uma ferida feita à espada, no crânio de
Cristo, jorra dos seios feridos da infeliz Santa Ágata. Mas se o Oriente Médio
era – então, como hoje – lugar de sofrimentos, também o era a Europa do início
do Renascimento. Pessoas queimadas na fogueira, torturadas até a morte,
degoladas, tudo isso fora parte da Idade Média europeia.
Os
soldados “romanos” (acima) que acompanham Cristo na crucificação na Cenas da Vida de
Cristo, de Pacino di Bonaguida, vestem uniformes de um exército do Renascimento
Italiano.
Há
vacas, há burros, cães dormem aos pés dos senhores, mas nenhum camelo; e, muito
suspeitamente, tampouco se veem desertos. Um elefante, sim, observa Jesus na
Criação do Mundo, de Pacino, com gazelas e veados, mas os céus, em vez de rubros
de calor, são sempre azul-profundo-temperado. O ouro manifesta a glória de
Cristo – nunca o sol – e as árvores, nesses trabalhos, são quase sempre óbvios
pinheiros italianos, obviamente europeias, com apenas um ou outro deslocado
cacto, já sumindo na moldura. Construções, onde apareçam, são igrejas
italianadas e muros.
Em
outras palavras, esse é Cristo europeizado, como Brueghel e os Mestres
Holandeses, depois, poriam Jesus em estábulos típicos dos Países Baixos. As
montanhas, na pintura florentina, bem poderiam estar no deserto da Judeia – por
exemplo, as de “A Ressurreição”, de Pacino – mas também poderiam estar nos
Apeninos. Terá sido obra do Renascimento pôr Jesus em geografia europeia?
Castelo Krak des Chevaliers, Síria |
Fato
é que os primeiros Cruzados conheciam cartografia muito bem. Seus castelos,
inclusive o Krak des Chevaliers, na Síria, hoje ferido pela guerra, já haviam
“europeizado” a arquitetura do Oriente Médio. Aqueles castelos, como decidi
depois de muito escrever sobre seus padecimentos – e é opinião absolutamente não
acadêmica, já sei – eram catedrais góticas com paredes de fortaleza, em lugar
das ogivas flutuantes.
Durante
a Renascença, contudo, houve um local chamado “Cristandade” que, absolutamente,
não ficava no Oriente Médio. Era o nome que se dava a grande parte da Europa
Central e Ocidental – e começava a noroeste de onde está hoje a Bósnia, na
fronteira otomana.
Em
outras palavras, Cristo pertencia a “nós”. E os santos pés por acaso algum dia
pisaram as verdes montanhas da Inglaterra? Não, claro que não. Mas, à altura dos
séculos 18 e 19 já nos tínhamos apropriado tão completamente da Cristandade, que
era perfeitamente possível que Jesus tivesse nascido na Inglaterra. Ou nos EUA.
Zona do cinturão Bíblico (Bible Belt) dos EUA (hachurada em vermelho) |
Assim,
evidentemente, chegamos ao Cinturão Bíblico, nos EUA, [2] e a cristãos renascidos como George
W. Bush, o qual, parece, nem se dá conta de que o direito que crê que Deus lhe
tenha dado para invadir o Iraque levou diretamente à destruição de uma das mais
antigas comunidades cristãs de todo o Oriente Médio.
Assim,
Bush foi capaz de convocar uma Cruzada contra o mundo muçulmano, e de pôr-se a
falar sobre o bem e o mal, sem se dar conta de que, para ele, como para os
pintores da Renascença, Jesus teria de vir do Ocidente, nunca do Oriente Médio.
Bush,
sim, promoveu a causa da Bíblia, não da Constituição dos EUA.
Mas
onde começou tudo? Alguém se atreveria a culpar
Giotto?
Notas
dos tradutores
[1]DADDI,
Bernardo, pintor italiano, ativo em Florença c. 1280-1348. “Virgin
and Child with Donor”, final dos anos 1340s. Têmpera e clara
de ovo, com ouro sobre madeira. 109,2 x 47 cm . Na Coleção Samuel H. Kress,
Seattle Art Museum, EUA (doada em 1961).
[2]Bible Belt [Cinturão Bíblico] é o
nome que se dá à região dos Estados Unidos onde a prática da religião
protestante faz parte da cultura local. Inclui o sul inteiro, sudeste e as áreas
próximas; a região oeste e o meio-oeste também poderiam ser incluídos.
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