terça-feira, 2 de abril de 2013

Robert Fisk: “George Bush invadiu o Iraque. E a vida imitou a arte”


31/3/2013, Robert Fisk, The Independent
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Fisk
Cristãos renascidos raramente se dão conta de que o seu pressuposto direito ‘'dado por Deus'’ para invadirem o Iraque destruiu uma das mais antigas comunidades cristãs no Oriente Médio.

No final da década dos 40s do século 14, Bernardo Daddi de Florença pintou “A Virgem e o Menino com um Doador”. [1]

O doador cujo nome não se conhece aparece, minúsculo e em oração, num canto inferior da composição; e uma virgem de proporções monumentais – de véu escuro e vestido vermelho brilhante coberto de renda que cobre, por sua vez, busto absolutamente sem relevância – segura nos braços um Cristo de olhar meio sinistro, que prende na mão um pintassilgo de bico aberto. O pintassilgo, como outros pássaros da Renascença, tem simbolismo próprio: é pássaro que come espinhos; prefigura, no quadro, a coroa de espinhos que Cristo usará 30 anos adiante.

“A Virgem e o Menino
com um Doador”
Mas o que mais me chamou a atenção foi o tecido cor-de-rosa da roupa do Cristo-bebê. Porque nas franjas do tecido parece haver algo escrito em árabe. Inspeção mais próxima – o mais próximo que consegui chegar, na Galeria de Arte de Ontário em Ottawa, onde está montada a exposição “Revealing the Early Renaissance: Stories and Secrets in Florentine Art[Revelando a Primeira Renascença: histórias e segredos na arte florentina] – sugere que os grafismos, sim, bem parecem ser escrita árabe. Pode ser um “-lah” ou mesmo um “k” (kaf), mas nada que faça sentido. No que escreveu sobre a exposição, Victor Schmidt fala de “inscrição em pseudo árabe”.

Muito estranho. Os florentinos conheciam o mundo islâmico. Dante Alighieri pôs o Profeta Maomé no oitavo círculo do inferno em sua Divina Comédia; e embora as Cruzadas já estivessem acabadas há mais de um século e meio, os florentinos mantinham ativo comércio com os fabricantes de seda da Síria. E uma sociedade cristã-muçulmana já florescia na Andaluzia. Nem assim Bernardo Daddi deu-se o trabalho de escrever linha de verdadeira língua árabe.

Porção ampliada do quadro "A Virgem e o Menino com um Doador"
Naquele tempo, Florença era o mais poderoso centro econômico da Europa, e seus banqueiros e comerciantes podiam amenizar o medo do fogo do inferno, contratando os grandes pintores de seu tempo para honrar Deus. Mas, por mais que soubessem que Jesus morreu numa cidade chamada Jerusalém, a ilustração que faziam à guisa de Terra Santa era marcada e peculiarmente europeia.

É verdade que sempre há abundante sangue, naqueles trabalhos. Respinga do pescoço de João Batista, escorre de uma ferida feita à espada, no crânio de Cristo, jorra dos seios feridos da infeliz Santa Ágata. Mas se o Oriente Médio era – então, como hoje – lugar de sofrimentos, também o era a Europa do início do Renascimento. Pessoas queimadas na fogueira, torturadas até a morte, degoladas, tudo isso fora parte da Idade Média europeia.


Os soldados “romanos” (acima) que acompanham Cristo na crucificação na Cenas da Vida de Cristo, de Pacino di Bonaguida, vestem uniformes de um exército do Renascimento Italiano.

Há vacas, há burros, cães dormem aos pés dos senhores, mas nenhum camelo; e, muito suspeitamente, tampouco se veem desertos. Um elefante, sim, observa Jesus na Criação do Mundo, de Pacino, com gazelas e veados, mas os céus, em vez de rubros de calor, são sempre azul-profundo-temperado. O ouro manifesta a glória de Cristo – nunca o sol – e as árvores, nesses trabalhos, são quase sempre óbvios pinheiros italianos, obviamente europeias, com apenas um ou outro deslocado cacto, já sumindo na moldura. Construções, onde apareçam, são igrejas italianadas e muros.

Em outras palavras, esse é Cristo europeizado, como Brueghel e os Mestres Holandeses, depois, poriam Jesus em estábulos típicos dos Países Baixos. As montanhas, na pintura florentina, bem poderiam estar no deserto da Judeia – por exemplo, as de “A Ressurreição”, de Pacino – mas também poderiam estar nos Apeninos. Terá sido obra do Renascimento pôr Jesus em geografia europeia?

Castelo Krak des Chevaliers, Síria
Fato é que os primeiros Cruzados conheciam cartografia muito bem. Seus castelos, inclusive o Krak des Chevaliers, na Síria, hoje ferido pela guerra, já haviam “europeizado” a arquitetura do Oriente Médio. Aqueles castelos, como decidi depois de muito escrever sobre seus padecimentos – e é opinião absolutamente não acadêmica, já sei – eram catedrais góticas com paredes de fortaleza, em lugar das ogivas flutuantes.

Durante a Renascença, contudo, houve um local chamado “Cristandade” que, absolutamente, não ficava no Oriente Médio. Era o nome que se dava a grande parte da Europa Central e Ocidental – e começava a noroeste de onde está hoje a Bósnia, na fronteira otomana.

Em outras palavras, Cristo pertencia a “nós”. E os santos pés por acaso algum dia pisaram as verdes montanhas da Inglaterra? Não, claro que não. Mas, à altura dos séculos 18 e 19 já nos tínhamos apropriado tão completamente da Cristandade, que era perfeitamente possível que Jesus tivesse nascido na Inglaterra. Ou nos EUA.

Zona do cinturão Bíblico (Bible Belt)  dos EUA (hachurada em vermelho)
Assim, evidentemente, chegamos ao Cinturão Bíblico, nos EUA, [2] e a cristãos renascidos como George W. Bush, o qual, parece, nem se dá conta de que o direito que crê que Deus lhe tenha dado para invadir o Iraque levou diretamente à destruição de uma das mais antigas comunidades cristãs de todo o Oriente Médio.

Assim, Bush foi capaz de convocar uma Cruzada contra o mundo muçulmano, e de pôr-se a falar sobre o bem e o mal, sem se dar conta de que, para ele, como para os pintores da Renascença, Jesus teria de vir do Ocidente, nunca do Oriente Médio.

Bush, sim, promoveu a causa da Bíblia, não da Constituição dos EUA.

Mas onde começou tudo? Alguém se atreveria a culpar Giotto?





Notas dos tradutores

[1]DADDI, Bernardo, pintor italiano, ativo em Florença c. 1280-1348. Virgin and Child with Donor, final dos  anos 1340s. Têmpera e clara de ovo, com ouro sobre madeira. 109,2 x 47 cm. Na Coleção Samuel H. Kress, Seattle Art Museum, EUA (doada em 1961). 

[2]Bible Belt [Cinturão Bíblico] é o nome que se dá à região dos Estados Unidos onde a prática da religião protestante faz parte da cultura local. Inclui o sul inteiro, sudeste e as áreas próximas; a região oeste e o meio-oeste também poderiam ser incluídos. 

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