22/4/2013, Lawrence
Davidson, Media With Conscience -
MWC
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Lawrence Davidson |
Os
norte-americanos vivem a repetir que a insegurança pública é coisa que se vê em
ditaduras, onde agentes do Estado podem arrombar a porta de sua casa e arrastar
você preso, sem ordem judicial. Pois agora já acontece também nos EUA, mas só
contra quem o governo decida chamar de “terrorista”. Talvez por ingenuidade, as
pessoas comuns veem-se como imunes a esse tipo de tratamento. Mas a insegurança
pública tem muitas raízes.
Os
norte-americanos vivem hoje, mas quase nunca se dão conta, a evidência de que há
uma correlação entre o conjunto relativamente amplo de liberdades que a
democracia oferece nos EUA e uma população que vive em situação de alta
ansiedade.
Eis
alguns modos como isso funciona:
-
A liberdade econômica pode, em teoria, romper barreiras de classe e abrir oportunidades aos cidadãos que desejem empreender. Mas também deixa muita gente abjetamente pobre e produz um ambiente sociopolítico no qual líderes ideologicamente motivados hesitam em usar o poder do Estado para resolver as consequências da pobreza. Ser pobre é, quase sempre, estado de alta ansiedade.
-
As liberdades políticas podem ser viradas de cabeça para baixo em favor de interesses especiais bem organizados, com capacidade financeira para corromper o sistema político. Pode acontecer que 90% ou mais dos norte-americanos apoiem reformas nas leis sobre armas; é possível que se sentissem mais seguros se houvesse controle geral sobre os comerciantes de armas de fogo. Mas não faz diferença, porque essa maioria não sabe como usar com eficácia a própria liberdade política para alcançar esse objetivo. Por isso, os grupos de lobby que se especializam em fazer funcionar a máquina (como a Associação Nacional do Rifle [orig. National Rifle Association, NRA]) conseguem facilmente descartar os desejos da maioria e, como acaba de acontecer nos EUA, derrotam, no Senado, mesmo uma lei tão fraca que é quase inútil, de reforma da legislação sobre armas. Comandado pelo mesmo lobby de influência, o Senado rejeitará o recém criado Tratado da ONU para o Comércio de Armas [orig. UN Arms Trade Treaty]. Assim, o resto de nós e nossos filhos ficamos presos numa situação que é plenamente livre para os proprietários de armas, que podem dar asas às suas fantasias e delírios, mas que, para o resto de nós só gera alta ansiedade.
-
A liberdade de imprensa, como existe hoje, é talvez o fator que mais contribui para a insegurança pública, porque produz uma consistente concentração de tudo que há de pior. Acontece assim, ou porque os proprietários das empresas-imprensa e seus empregados, que literalmente selecionam as notícias que chegam até nós, ou têm, eles próprios uma visão de mundo que produz ansiedade ou, então, entendem que produzir ansiedade seja bom negócio. Tudo que seja espetaculosamente péssimo parece vender jornais e fazer crescer a audiência.
A
essa altura, já se deve perguntar: e quem são os mais inclinados a usar a
liberdade que lhes caiba – seja como fazedores e implantadores de medidas
econômicas ou políticas, sejam os fabricantes de notícias nos veículos de
imprensa-empresa, ou líderes de grupos de interesses – para promover práticas e
políticas que estão gerando alta ansiedade para a vasta maioria?
Todos
esses são protagonistas rígidos, gente de discurso único e problema único, que
são qualquer coisa menos gente de mentalidade livre. E, de fato, é essa
obcecação, essa fixação no discurso único e no problema único, que os torna
cegos para os interesses e necessidades mais amplas da comunidade.
Tomem-se
por exemplo os ideólogos cristãos e judeus que se reúnem em confrarias como
Cristãos Unidos por Israel [orig. Christians United for
Israel] e o Comitê Americano-Israelense de Negócios Públicos [orig.
American Israeli Public Affairs Committee (AIPAC)]. O primeiro é uma
clássica organização cristã-sionista que se diz “a maior organização pró-Israel
nos EUA, que atende mais de 1,3 milhão de membros”. E o AIPAC, claro, é
um dos grupos de lobby mais influentes no país. E como é que esses grupos
“atendem” seus seguidores?
Um
dos modos é porem-se a falar pelo país, tentando convencer o resto da população
de que todos vivemos sob risco mortal, por causa de um Irã nuclear (para Israel,
o Irã é país inimigo). Deram-se muito bem. Conseguiram implantar essa fantasia,
geradora de ansiedade, na mente do público menos bem informado, mas também na
mente de muitos membros do Congresso dos EUA.
Como
eu sei que a ideia de um Irã que estaria construindo bombas atômicas é fantasia?
Porque cada vez que os serviços de segurança do governo dos EUA são mandados
investigar, eles vão, investigam, e declaram que nada disso existe. Muito
estranhamente, esses diagnósticos não chegam às manchetes de jornais e redes de
televisão.
Essas
mesmas organizações sionistas também disseminam insegurança pública mediante a
promoção da islamofobia – outra fantasia – que declara que todo e qualquer
muçulmano nos EUA seria um agente da al-Qaeda. Como escreveu meu amigo Peter
Loeb, de Boston: A palavra “terrorista”
tornou-se sinônima de “árabe/muçulmano” na mentalidade norte-americana. A
tal ponto que, se referindo às bombas na Maratona de Boston, jornalistas da rede
ABC noticiam que: O mais terrível ataque
em solo dos
EUA desde o 11/9 deixou muitas pessoas ansiosas. Mas os
muçulmanos norte-americanos esperam pela identidade do criminoso com particular
terror.
O
exemplo da Maratona de Boston
A
recente ansiedade que atingiu a nação, por causa das bombas na Maratona de
Boston, é bom exemplo do mundo exageradamente apavorante que a nossa liberdade
(nesse caso a liberdade das empresas-imprensa) criou para nós.
Instante exato da explosão da bomba caseira na maratona de Boston |
Se
alguém ainda dedicar mais atenção aos fatos que ao que publica a
imprensa-empresa, saberá que ataques terroristas não são numerosos, nem
frequentes nos EUA; que, de fato, acontecem hoje em menor número que
em outras épocas.
Que a maioria deles não são obra de muçulmanos, mas de
militantes que defendem os direitos dos animais. E que, de fato, a polícia
norte-americana consegue hoje, melhor do que em outras épocas, enfrentar esse
tipo de incidente. Mas nenhuma dessas boas notícias causa qualquer impacto, ante
o impacto criado por qualquer evento que a imprensa-empresa produza e que gere
ansiedade.
O
caso da Maratona de Boston foi obra de dois jovens irmãos imigrados, chechenos
étnicos. O mais velho, provavelmente o líder, parecia desencantado. Era atleta
boxeador talentoso, que sonhava em competir pela equipe olímpica dos EUA. Mas
soubera, recentemente, que, como “atleta estrangeiro” (ainda não era cidadão),
nunca poderia competir em campeonatos nacionais oficiais dos EUA. Concluiu que
“já não há valores” e que “as pessoas não podem controlar a própria vida”. Vale
a pena anotar que não são sentimentos que floresceriam na mente de um muçulmano
devoto.
Liberdade
e Responsabilidade
Infelizmente,
a liberdade, como é praticada nos EUA tem inúmeras falhas. Estimulou um
individualismo impiedoso, que facilmente esquece os muitos pobres que vivem
aqui, em níveis muito graves de pobreza. Permitiu que prosperasse uma
mentalidade política de grupos de interesse que não rara vezes opera contra os
interesses dos EUA, tanto no plano da política doméstica como nos planos das
políticas externas.
E,
sob a carapuça das livres empresas-imprensa, produziu um ambiente favorável ao
exagero, ao delírio, à concentração em torno do mais espetacular, mais feio,
mais sujo, mais negativo – que é só o que se encontra nas matérias
jornalísticas.
Será
que tudo isso torna as liberdades norte-americanas, em princípio, coisas ruins?
Não. De modo algum. Mas nos obriga a encarar o fato de que essas liberdades,
praticadas incondicionalmente, podem abrir espaço e dar rédea livre aos aspectos
mais egoístas, menos comunitários, da psicologia humana. O resultado pode ser
uma espécie de tiro pela culatra, de revide do negativo. Comunidade madura e
inteligente saberia disso e imporia regulações não abusivas, para garantir que,
ao lado das liberdades econômicas, políticas e de imprensa, viesse também um
comportamento socialmente responsável.
É
triste, mas a sociedade norte-americana não é muito inteligente nem madura. O
que torna bem pouco esperáveis quaisquer movimentos para estimular algum
comportamento socialmente responsável.
A
ironia disso tudo é que é em nome de preservar as liberdades norte-americanas –
nessa modalidade local de individualismo radical – que as elites mais poderosas
e poderosos grupos organizados de interesses especiais continuarão a opor-se a
qualquer esforço para criar regras que os obriguem a dar uso responsável às
liberdades de que gozam. Consequência disso, os EUA estamos condenados a ver
andar, sempre lado a lado, alta liberdade e alta
ansiedade.
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