quarta-feira, 24 de abril de 2013

Liberdade e Alta Ansiedade nos EUA


22/4/2013, Lawrence Davidson, Media With Conscience - MWC
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Lawrence Davidson
Os norte-americanos vivem a repetir que a insegurança pública é coisa que se vê em ditaduras, onde agentes do Estado podem arrombar a porta de sua casa e arrastar você preso, sem ordem judicial. Pois agora já acontece também nos EUA, mas só contra quem o governo decida chamar de “terrorista”. Talvez por ingenuidade, as pessoas comuns veem-se como imunes a esse tipo de tratamento. Mas a insegurança pública tem muitas raízes.

Os norte-americanos vivem hoje, mas quase nunca se dão conta, a evidência de que há uma correlação entre o conjunto relativamente amplo de liberdades que a democracia oferece nos EUA e uma população que vive em situação de alta ansiedade.

Eis alguns modos como isso funciona:

  • A liberdade econômica pode, em teoria, romper barreiras de classe e abrir oportunidades aos cidadãos que desejem empreender. Mas também deixa muita gente abjetamente pobre e produz um ambiente sociopolítico no qual líderes ideologicamente motivados hesitam em usar o poder do Estado para resolver as consequências da pobreza. Ser pobre é, quase sempre, estado de alta ansiedade.

  • As liberdades políticas podem ser viradas de cabeça para baixo em favor de interesses especiais bem organizados, com capacidade financeira para corromper o sistema político. Pode acontecer que 90% ou mais dos norte-americanos apoiem reformas nas leis sobre armas; é possível que se sentissem mais seguros se houvesse controle geral sobre os comerciantes de armas de fogo. Mas não faz diferença, porque essa maioria não sabe como usar com eficácia a própria liberdade política para alcançar esse objetivo. Por isso, os grupos de lobby que se especializam em fazer funcionar a máquina (como a Associação Nacional do Rifle [orig. National Rifle Association, NRA]) conseguem facilmente descartar os desejos da maioria e, como acaba de acontecer nos EUA, derrotam, no Senado, mesmo uma lei tão fraca que é quase inútil, de reforma da legislação sobre armas. Comandado pelo mesmo lobby de influência, o Senado rejeitará o recém criado Tratado da ONU para o Comércio de Armas [orig. UN Arms Trade Treaty]. Assim, o resto de nós e nossos filhos ficamos presos numa situação que é plenamente livre para os proprietários de armas, que podem dar asas às suas fantasias e delírios, mas que, para o resto de nós só gera alta ansiedade.

  • A liberdade de imprensa, como existe hoje, é talvez o fator que mais contribui para a insegurança pública, porque produz uma consistente concentração de tudo que há de pior. Acontece assim, ou porque os proprietários das empresas-imprensa e seus empregados, que literalmente selecionam as notícias que chegam até nós, ou têm, eles próprios uma visão de mundo que produz ansiedade ou, então, entendem que produzir ansiedade seja bom negócio. Tudo que seja espetaculosamente péssimo parece vender jornais e fazer crescer a audiência.

A essa altura, já se deve perguntar: e quem são os mais inclinados a usar a liberdade que lhes caiba – seja como fazedores e implantadores de medidas econômicas ou políticas, sejam os fabricantes de notícias nos veículos de imprensa-empresa, ou líderes de grupos de interesses – para promover práticas e políticas que estão gerando alta ansiedade para a vasta maioria?

Todos esses são protagonistas rígidos, gente de discurso único e problema único, que são qualquer coisa menos gente de mentalidade livre. E, de fato, é essa obcecação, essa fixação no discurso único e no problema único, que os torna cegos para os interesses e necessidades mais amplas da comunidade.


Tomem-se por exemplo os ideólogos cristãos e judeus que se reúnem em confrarias como Cristãos Unidos por Israel [orig. Christians United for Israel] e o Comitê Americano-Israelense de Negócios Públicos [orig. American Israeli Public Affairs Committee (AIPAC)]. O primeiro é uma clássica organização cristã-sionista que se diz “a maior organização pró-Israel nos EUA, que atende mais de 1,3 milhão de membros”. E o AIPAC, claro, é um dos grupos de lobby mais influentes no país. E como é que esses grupos “atendem” seus seguidores?


Um dos modos é porem-se a falar pelo país, tentando convencer o resto da população de que todos vivemos sob risco mortal, por causa de um Irã nuclear (para Israel, o Irã é país inimigo). Deram-se muito bem. Conseguiram implantar essa fantasia, geradora de ansiedade, na mente do público menos bem informado, mas também na mente de muitos membros do Congresso dos EUA.

Como eu sei que a ideia de um Irã que estaria construindo bombas atômicas é fantasia? Porque cada vez que os serviços de segurança do governo dos EUA são mandados investigar, eles vão, investigam, e declaram que nada disso existe. Muito estranhamente, esses diagnósticos não chegam às manchetes de jornais e redes de televisão.

Essas mesmas organizações sionistas também disseminam insegurança pública mediante a promoção da islamofobia – outra fantasia – que declara que todo e qualquer muçulmano nos EUA seria um agente da al-Qaeda. Como escreveu meu amigo Peter Loeb, de Boston: A palavra “terrorista” tornou-se sinônima de “árabe/muçulmano” na mentalidade norte-americana. A tal ponto que, se referindo às bombas na Maratona de Boston, jornalistas da rede ABC noticiam que: O mais terrível ataque em solo dos EUA desde o 11/9 deixou muitas pessoas ansiosas. Mas os muçulmanos norte-americanos esperam pela identidade do criminoso com particular terror.

O exemplo da Maratona de Boston

A recente ansiedade que atingiu a nação, por causa das bombas na Maratona de Boston, é bom exemplo do mundo exageradamente apavorante que a nossa liberdade (nesse caso a liberdade das empresas-imprensa) criou para nós.

Instante exato da explosão da bomba caseira na maratona de Boston
Se alguém ainda dedicar mais atenção aos fatos que ao que publica a imprensa-empresa, saberá que ataques terroristas não são numerosos, nem frequentes nos EUA; que, de fato, acontecem hoje em menor número que em outras épocas. Que a maioria deles não são obra de muçulmanos, mas de militantes que defendem os direitos dos animais. E que, de fato, a polícia norte-americana consegue hoje, melhor do que em outras épocas, enfrentar esse tipo de incidente. Mas nenhuma dessas boas notícias causa qualquer impacto, ante o impacto criado por qualquer evento que a imprensa-empresa produza e que gere ansiedade.

O caso da Maratona de Boston foi obra de dois jovens irmãos imigrados, chechenos étnicos. O mais velho, provavelmente o líder, parecia desencantado. Era atleta boxeador talentoso, que sonhava em competir pela equipe olímpica dos EUA. Mas soubera, recentemente, que, como “atleta estrangeiro” (ainda não era cidadão), nunca poderia competir em campeonatos nacionais oficiais dos EUA. Concluiu que “já não há valores” e que “as pessoas não podem controlar a própria vida”. Vale a pena anotar que não são sentimentos que floresceriam na mente de um muçulmano devoto.

Liberdade e Responsabilidade

Infelizmente, a liberdade, como é praticada nos EUA tem inúmeras falhas. Estimulou um individualismo impiedoso, que facilmente esquece os muitos pobres que vivem aqui, em níveis muito graves de pobreza. Permitiu que prosperasse uma mentalidade política de grupos de interesse que não rara vezes opera contra os interesses dos EUA, tanto no plano da política doméstica como nos planos das políticas externas.

E, sob a carapuça das livres empresas-imprensa, produziu um ambiente favorável ao exagero, ao delírio, à concentração em torno do mais espetacular, mais feio, mais sujo, mais negativo – que é só o que se encontra nas matérias jornalísticas.

Será que tudo isso torna as liberdades norte-americanas, em princípio, coisas ruins? Não. De modo algum. Mas nos obriga a encarar o fato de que essas liberdades, praticadas incondicionalmente, podem abrir espaço e dar rédea livre aos aspectos mais egoístas, menos comunitários, da psicologia humana. O resultado pode ser uma espécie de tiro pela culatra, de revide do negativo. Comunidade madura e inteligente saberia disso e imporia regulações não abusivas, para garantir que, ao lado das liberdades econômicas, políticas e de imprensa, viesse também um comportamento socialmente responsável.

É triste, mas a sociedade norte-americana não é muito inteligente nem madura. O que torna bem pouco esperáveis quaisquer movimentos para estimular algum comportamento socialmente responsável.

A ironia disso tudo é que é em nome de preservar as liberdades norte-americanas – nessa modalidade local de individualismo radical – que as elites mais poderosas e poderosos grupos organizados de interesses especiais continuarão a opor-se a qualquer esforço para criar regras que os obriguem a dar uso responsável às liberdades de que gozam. Consequência disso, os EUA estamos condenados a ver andar, sempre lado a lado, alta liberdade e alta ansiedade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.