Primavera, 2013, *Zhang
WeiWei,
Europe’s world
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Se a China votasse como votam hoje
as chamadas democracias liberais, teríamos lá um governo de camponeses chineses,
furiosamente nacionalista, que já estaria em guerra contra Taiwan ou
Japão. Os atuais governantes são cautelosos, moderados em suas políticas
externas, são pragmáticos, são educados para governar à maneira chinesa, o que
atende muito bem aos interesses de todos os chineses e, de fato, como se vê,
atende muito bem também aos interesses ocidentais.
[14/1/2012,
Zhang WeiWei, em entrevista à
Al-Jazeera em: “Zhang Weiwei: The China Wave”].
O
maior país do mundo em extensão territorial e a segunda maior economia não tem
tradição de democracia liberal e tem muitas boas razões pelas quais desconfiar
dos sistemas políticos ocidentais adversários.
18º Congresso do Partido Comunista Chinês |
A
China é quase sempre apresentada na imprensa-empresa ocidental como eivada de
crises sociais e políticas, à espera de uma revolução colorida que a converta
em democracia
liberal. Mas o recente 18º Congresso do Partido Comunista
Chinês demonstrou claramente que nada disso está previsto ou é desejado; de
fato, tudo sugere fortemente que o país descobriu via própria para um presente e
um futuro bem-sucedidos, chamada oficialmente de “socialismo com características
chinesas”. Muitos no ocidente talvez descartem a ideia como mais uma tentativa
de impedir alguma reforma política, sem a qual não haveria futuro para a China.
Depois de tantas “predições” sobre o futuro do Império do Meio, aqui vão cinco
razões pelas quais se deve levar a sério o que Pequim diz e faz.
1.
Senso comum. A
população chinesa é maior que as de EUA, Europa, Rússia e Japão somadas, jamais
teve qualquer tradição de democracia liberal, e as lembranças do colapso
devastador da União Soviética ainda sobrevivem bem vivas. A história recente da
China mostra caos e guerras; na média, entre 1840 e 1978, houve um grande
levante a cada sete ou oito anos. Portanto, os chineses têm justas razões para
temer o caos, baseados só no senso comum e na memória coletiva, com medo real e
bem justificável de que o país tornar-se-ia ingovernável, caso adotasse o
sistema político opositor ocidental.
A
China é única em vários sentidos. É um amálgama entre a civilização mais longeva
que o mundo jamais conheceu, e um imenso estado moderno. É produto de centenas
de estados que se foram se amalgamando ao longo da história, até constituir
estado único. Mais ou menos como um Império Romano que tivesse sobrevivido até
hoje, se tivesse convertido num grande estado moderno unificado, com governo
centralizado e economia moderna, sem perder todas as suas muitas tradições e
culturas multifacetadas e diversas, com população imensíssima, que ainda falasse
um só latim como língua comum para todos.
Fato
é que até hoje, nem a União Europeia, dos territórios onde nasceu a democracia
liberal e com um terço da população da China, foi capaz de criar e manter modelo
próprio de democracia liberal. Se escolher a via de eleições diretas para
escolher os principais governantes, a União Europeia logo se verá mergulhada no
caos e talvez se desintegre logo à primeira eleição direta.
2.
Sinais empíricos. A
China tentou a democracia de modelo americano depois da Revolução Republicana de
1911 e rapidamente desistiu dela, porque resultou em catástrofe devastadora.
Em pouco tempo o país estava mergulhado em caos e guerra civil,
com centenas de partidos políticos lutando pelo poder e os senhores-da-guerra
combatendo uns contra os outros, todos apoiados, para os mais diferentes lados,
por outros países do resto do mundo. A economia foi destruída e dezenas de
milhões de chineses morreram nas décadas seguintes. Essa é lição que permanece
bem viva na memória dos chineses comuns, de tal modo que o que mais temem é o
luan – palavra chinesa para “o caos”. Pesquisas independentes construídas
para conhecer os valores chineses mostram que, em praticamente todos os estratos
sociais, nada supera em importância a paz e a ordem pública: é o valor principal
entre os chineses, como, para os norte-americanos, ao que parece, a liberdade de
expressão é o valor número um (embora os chineses não entendam bem como uma
sociedade social e politicamente desigual, como é a sociedade norte-americana,
conseguiria assegurar legítima liberdade de expressão para todos).
Conheço
bastante bem mais de 100 países em todo o mundo, a maior parte dos quais são
países em desenvolvimento, e não me lembro de ter conhecido um único caso de
modernização bem-sucedida que tivesse sido conduzida em regime de democracia
liberal; excelente exemplo para ilustrar essa evidência são as diferenças que
separam Índia e China. Há 60 anos, esses dois países estavam em estágios muito
semelhantes de desenvolvimento; hoje, o PIB da China é quatro vezes maior, e a
expectativa de vida é dez anos mais longa.
3.
Desempenho. Parece
não haver dúvidas de que a China teve desempenho melhor que praticamente todas
as democracias liberais ao longo dos 30 últimos anos, sobretudo nos domínios que
mais interessam e preocupam a maioria dos chineses. A China evidentemente tem
problemas, mas o sucesso do país é autoevidente e indesmentível. O desempenho da
China alcança números superiores à soma de tudo que todos os demais países em
desenvolvimento produziram, incluídas aí todas as democracias liberais do mundo
em desenvolvimento. A pobreza que a China erradicou dentro da própria China
equivale a 70% de toda a pobreza que foi erradicada no mundo nos últimos 20 anos
– segundo dados da ONU.
A
China pode-se orgulhar também de ter tido melhor desempenho que todas as
democracias transicionais somadas: a economia chinesa cresceu 18 vezes desde
1979 (no mesmo período, a economia coletiva da Europa Oriental, por exemplo,
apenas duplicou).
Além
de ter tido desempenho econômico total muito melhor que muitos países
desenvolvidos, a China já tem hoje uma “região desenvolvida”, com população de
cerca de 300 milhões de habitantes, equivalente à população dos EUA, e em vários
aspectos equivalente aos países mais desenvolvidos, tanto na prosperidade geral
quanto na expectativa de vida. As metrópoles chinesas de primeiro nível, como
Xangai, competem hoje com New York ou
Londres; e a “região desenvolvida” está em interação dinâmica e para mútuo
benefício, com o resto da China – a “região emergente”. Essa interação para
fortalecimento mútuo explica em boa medida por que a China consegue crescer tão
rapidamente.
4.
Competição desenfreada. O
modelo de democracia liberal vê-se cercado de problemas terríveis, crises
financeiras e econômicas, os EUA terrivelmente endividados, a Europa pressionada
por dentro e por fora. Apesar de suas capacidades bem conhecidas, a democracia
liberal é instituição que se deixou erodir por problemas persistentes de
demagogia, projetos sempre de curtíssimo prazo, populismo simplório, excessiva
influência do poder do dinheiro, e grupos de interesses privados especiais em
postos criados para defender interesses coletivos gerais.
Abraham Lincoln |
O
ideal de Abraham Lincoln, de “governo do povo, pelo povo, para o povo”
mostrou-se inalcançável em todas as democracias liberais onde foi tentado. Nas
palavras de Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, criticando talvez com excesso de
dureza o sistema nos EUA, disse que é “governo do 1%, pelo 1%, para o 1%”. Até
Francis Fukuyama, que tanto pregou o fim da história como remédio para todos os
males, lamentou, em coluna para o Financial Times, há dois anos, que a
democracia dos EUA tivesse hoje tão pouco a ensinar à China.
5. O
modelo chinês. Os
sucessos econômicos do modelo chinês atraíram atenção global, mas falou-se
comparativamente pouco do modelo político e suas ramificações institucionais,
talvez por razões ideológicas. Sem alarde, Pequim introduziu reformas
significativas na governança política e implantou sistema que se pode chamar de
“eleições + seleção”: líderes que se comprovem competentes são selecionados por
desempenho e apoio popular, mediante vigoroso processo de acompanhamento,
pesquisas de opinião, avaliações internas e inúmeras eleições diretas de pequena
escala.
Alinhada
à tradição confuciana de governança meritocrática, Pequim pratica a meritocracia
– nem sempre com integral sucesso – em todo o estrato político. Os critérios de
desempenho na erradição da pobreza, criação de empregos, desenvolvimento
econômico local e, cada vez mais, atenção ao meio ambiente são fatores chaves na
ascensão e promoção de governantes e administradores públicos locais. O
crescimento dramático da China nas últimas três décadas não pode ser separado
desse modelo político meritocrático. À parte casos escandalosos de corrupção de
funcionários e outras tragédias pessoais-sociais, a governança na China, como a
economia chinesa, permanecem robustas e resistentes.
O Politburo da China eleito no 18º Congresso
do PCC: Xi Jinping, Li Keqiang, Zhang
Dejiang, Yu Zhengsheng, Liu Yunshan, Wang
Qishan e Zhang Gaoli.
|
Bom
exemplo disso viu-se agora, quando saiu, do 18º Congresso do Partido Comunista
Chinês, a próxima geração de governantes chineses. Seis, dos sete membros do
Comitê Central do Politburo, o mais alto corpo decisório da política chinesa,
serviram pelo menos por dois mandatos como secretários do Partido em alguma
província da China, e tiveram desempenho destacado. É indispensável ter talento
e capacidade excepcionais, para governar uma típica província chinesa – uma
província chinesa de tamanho médio tem território equivalente a cinco países
europeus somados. O sistema chinês meritocrático impediria, completa e
absolutamente, que governantes notoriamente incompetentes como George W. Bush,
dos EUA; ou Yoshihiko Noda, do Japão, jamais chegassem à presidência de seus
respectivos países.
Não
é exagero dizer que o modelo chinês leva mais a sério os próprios governantes e
a própria responsabilidade de governar, e é mais eficaz no planejamento para a
próxima geração; enquanto a democracia liberal não dá qualquer importância,
nem aos reais conhecimentos e talentos sociais e políticos dos candidatos (são
avaliados como se fossem candidatos a emprego de apresentador de
telenoticiários), nem cuidam de qualquer planejamento para formar novas gerações
de governantes (no máximo, a democracia liberal preocupa-se com ter candidato a
apresentar à próxima campanha eleitoral e à eleição seguinte; e o eleito tem, de
futuro, apenas os primeiros 100 dias, ao final dos quais é ‘'julgado'’, no máximo,
por jornalistas).
A
governança meritocrática chinesa desafia a dicotomia estereotipada e
ideologizada de democracia versus autocracia. Do ponto de vista chinês, a
natureza do Estado, inclusive sua legitimidade, tem de ser definida por sua
própria substância: boa governança, comando competente e sucesso no trabalho de
satisfazer os cidadãos. Por isso, apesar das deficiências que o sistema ainda
apresenta, as políticas e os governantes chineses selecionados por esse sistema
de construção e seleção já produziram a economia que mais cresce no mundo e já
melhoraram as condições e o padrão de vida da maioria dos chineses.
Segundo
pesquisa do Instituto Pew, que tem sede em Washington, 82% dos chineses
pesquisados em 2012 declararam-se otimistas quanto ao futuro. Não se vêem
números semelhantes em nenhuma das democracias liberais ocidentais...
A
frase famosa de Winston Churchill, para quem “a democracia é a pior forma de
governo, exceto todas as outras jamais tentadas” talvez faça algum sentido na
cultura ocidental. Para muitos chineses, a frase de Churchill soa como paráfrase
do que Sun Tze, o grande estrategista chinês, chamou de xiaxiace (a saída
menos ruim, dentre duas saídas ruins), saída pela qual os maus comandantes
sempre podem tentar salvar a própria pele. Mas na China, a tradição de
meritocracia, vista à luz do que Confúcio ensina, obriga o Estado a sempre e
necessariamente buscar o que se diz shangshangce, a melhor dentre as
melhores alternativas; por isso, na China, dá-se a máxima atenção à formação e a
escolha dos governantes.
Evidentemente,
não é fácil, mas nem por isso os esforços podem esmorecer. Até aqui, as
inovações políticas e institucionais introduzidas pela China já produziram um
sistema que, em vários sentidos, combina a melhor via para selecionar
governantes bem testados por critérios meritocráticos, e a opção menos ruim (a
melhor dentre opções todas ruins) de poder excluir do governo os governantes que
não satisfaçam ao interesse coletivo, por ato de uma liderança coletiva, com
mandato e idade limitados.
O
modelo meritocrático chinês, de “seleção + eleição”, com as feições que está
assumindo, ganha cada vez mais condições de competir com sucesso contra o modelo
ocidental de democracia popular.
A
China muito aprendeu do Ocidente, e continuará a aprender, para seu próprio
benefício. Talvez seja hora, agora, de o Ocidente, nas palavras de Deng
Xiaoping, “emancipar a própria mente” e começar a aprender com as ideias e
práticas chinesas. Esse modelo chinês, com melhorias de que ainda precisa e
certamente virão, é o modelo que pavimentará o caminho dos chineses para mais
uma década de ascensão, até a posição de maior economia do mundo, com todas as
consequências e efeitos econômicos e políticos que daí advirão, para a China e
para todo o mundo.
*Zhang Weiwei é professor de Relações Internacionais na Universidade Fudan, de Xangai, autor do recente The China Wave: Rise of a Civilizational State. Trabalhou como intérprete para Deng Xiaoping e outros governantes chineses, em meados dos anos 1980s.
Recebe e-mails
em zhangweiweiyes@yahoo.com
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