12-14/4/2013, George
Ciccariello-Maher, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
“Mãe: Oh, meu filho, que morte
perversa, danosa.
Rebelde: Oh, mãe, que morte
fecunda, copiosa.
Mãe: Morte feita de tanto
ódio.
Rebelde: Morte só de amor
feita.”
[1] Aimé
Césaire
George Ciccariello- Maher |
Duas
mortes, e significados diametralmente opostos, evidentes nas respostas imediatas
que provocaram. Uma foi recebida em luto, por milhões de homens e mulheres que
encheram as ruas de Caracas, à espera de um minuto para a última despedida do
comandante morto. A outra foi recebida em festa, nas ruas de Brixton e Glasgow,
e por uma avalanche de postados cômicos nas redes sociais, sobre a iminente
privatização do inferno.
Mas enquanto as multidões reuniam-se espontaneamente para celebrar o fim físico
da Dama de Ferro do neoliberalismo, Margaret Thatcher, os eleitores na Venezuela
encaminham-se para as urnas para pregar mais pregos no caixão dela e enterrar o
legado dela, elegendo um sucessor revolucionário para Hugo Chávez.
“Filhos de 1989”
A
4ª
Guerra Mundial começou na Venezuela
e foi guerra contra Thatcher e a gangue dela. Em fevereiro de 1989, Ronald
Reagan acabava de passar o bastão para George H.W. Bush, e Thatcher manobrava
para impor um seu “imposto comunitário” (orig. Poll Tax [2]),
que seria recebido com tumultos épicos em Trafalgar Square no ano seguinte.
Enquanto isso, na Venezuela, chegava ao poder um novo governo, com projeto
aparentemente diferente. O socialdemocrata de centro Carlos Andrés Pérez fora
eleito com plataforma antineoliberal, prometendo resistir ao pagamento da dívida
externa, falando contra o FMI: “é uma bomba que só mata os mais pobres”.
Mas,
chegado ao poder, mudou tudo. Pérez virou repentinamente a casaca, e instituiu o
Consenso de Washington, neoliberal, ao pé da letra: pôs-se a privatizar e
desregular; os pobres imediatamente perceberam que as coisas, dali em diante,
pelo menos para eles, só poderiam piorar. Mas enquanto nos EUA e na Grã-Bretanha
as populações iam dolorosamente engolindo a pílula amarga do neoliberalismo, sob
a ilusão de que não haveria alternativa possível, os venezuelanos
inesperadamente, puseram a saquear e pôr fogo no que encontrassem à mão, e
começaram a tornar surpreendentemente possível o tal impossível.
Foi
o chamado “Caracazo,” rebelião popular, de massa, nas ruas, que destruiu, em
dias, o mito do excepcionalismo venezuelano e sua ilusória estabilidade. O
Caracazo destruiu o sistema existente da democracia corrupta de dois partidos e
abriu espaço para Hugo Chávez, ele próprio uma cristalização de demandas
políticas jamais atendidas e aspirações nunca realizadas. Como se lia em
graffiti nos muros, em Caracas: “Somos
os filhos de 1989, em revolução”.
Hoje,
Chávez já se foi. E a guerra contra o neoliberalismo continua. Se, vivo, Chávez
só muito raramente foi respeitado pela imprensa-empresa internacional – de fato,
era personagem sobre o qual o “jornalismo” podia escrever, televisionar e dizer
literalmente o que bem entendesse – por que esperar que fosse diferente, com
Chávez morto? E lá estava: enquanto prosseguiam nas ruas as festas
post-mortem contra Thatcher e o luto popular emocionado, por Chávez, o
Guardian pressuposto muito progressista, fazia caminho inverso.
O
obituário de Thatcher foi quase polido, não tivesse Rory Carroll, perfeito
campeão “jornalístico” do absurdo, inventado um verniz de respeitabilidade para
todos que gritassem um “já vai tarde” ao recém-falecido presidente Chávez.
Carroll ainda sofre a vergonha de uma lição que Chávez lhe deu, pessoalmente.
Por mais que volta e meia fale do assunto, nunca contou a história como
realmente aconteceu. [3]
Esse
bastião do liberalismo nos EUA, a revista The New Yorker não se saiu
melhor. Um jornalista da empresa, Jon Lee Anderson, viu-se envolvido em um
escândalo, quando, ao que se diz, estaria verificando fatos; mas a verdade é
muito pior. A empresa The New Yorker chegou a corrigir dois dos
principais erros de Anderson (Anderson publicou que a Venezuela seria campeã em
número de assassinatos na América Latina; e, adiante, que Chávez teria chegado à
presidência por golpe de Estado, não em eleições). Mas a empresa
jamais corrigiu o principal vício de tudo que Anderson sempre escreveu: que os
pobres, na Venezuela, seriam “vítimas de seu amor” por Chávez.
Afinal,
no que tenha a ver com o comandante morto, tudo é permitido, no “jornalismo”
atual.
Mas
se Chávez sempre foi e continua a ser esquartejado pela imprensa-empresa, todos
podemos nos consolar, porque a maioria dos venezuelanos simplesmente não toma
conhecimento, nem acredita no que publicam os jornais e as televisões. Todas as
pesquisas indicam que o candidato da direita, Henrique Capriles Radonski, será
mais uma vez derrotado (hoje) pelo candidato indicado por Chávez, o ex-motorista
de ônibus e líder sindicalista Nicolás Maduro. Os números das pesquisas refletem
também as divisões internas, dentro da oposição a Chávez, que não se entendem,
sequer, em termos de programa e estratégia.
As divisões dentro da oposição a
Chávez
Na verdade, ante a derrota anunciada e praticamente certa, muito do que a oposição faz na Venezuela não passa de encenação para o público internacional. Por exemplo: recentemente, a coalizão de partidos que apoiam Capriles convocou recentemente uma conferência de imprensa para “denunciar” irregularidades no sistema eleitoral, que “um membro do PSUV [Partido Socialista Unido da Venezuela] teria a senha para inicializar e encerrar o sistema das urnas eletrônicas”. Mas, quando jornalistas o pressionaram para que desse detalhes da “denúncia”, Ramón Aveledo, secretário-executivo da coalizão de oposição reconheceu que a senha “não põe em risco o sistema eleitoral, nada tem a ver com o software eleitoral, nem permite identificar os eleitores, nem a contagem de votos, nem a transmissão dos dados”.
O
que se conclui do “evento”? Se o objetivo era desacreditar o sistema eleitoral,
difícil imaginar fracasso mais patético. Mas a “denúncia” mostra que há divisões
irreconciliáveis dentro da própria oposição. Não tem maioria, não vence eleições
e, sem conseguir eleger-se pelos votos, a oposição na Venezuela vive tentando
desacreditar as próprias eleições, em vez de buscar meios para eleger-se
democraticamente.
Esse
tipo de falta de perspectiva e possibilidades eleitorais levou à enlouquecida
tentativa de golpe contra Chávez há exatos 11 anos, que não durou nem 47 horas,
derrotada pelas mesmas massas que os golpistas, como sempre fizeram,
subestimaram tão estupidamente. Com aquele golpe derrotado, a oposição só fez
entregar ao governo Chávez a taça de plena legitimidade democrática. Muitos
antichavistas se autocondenaram a passar anos tentando apagar o carimbo de
“golpistas” que estamparam na própria testa. Até hoje, nada conseguiram. Depois
que Chávez varreu a
oposição da cena eleitoral,
em 2006, pela primeira vez, a maioria da oposição passou a aceitar os
resultados eleitorais, rendidos à evidência de que a urna, não os golpistas, é a
melhor garantia para a democracia na Venezuela.
Mas
render-se à via eleitoral não resolve o problema de não ter votos, e enquanto
tenta silenciar os absenteístas (a parte da oposição que prega a abstenção, para
não votar em Capriles), os anti-Chavistas também trataram de caminhar alguns
passos em direção ao centro, afastando-se da extrema direita, pelo menos em
palavras, à procura de votos. Capriles e outros têm-se autoapresentado como
socialdemocratas, sugerindo que não abolirão – apenas “aprimorarão” – os
programas sociais, como as Missiones Bolivarianas. Não faz sentido e não
convence ninguém, se se vê o que acontece no estado de Miranda, onde, quando
governador, a primeira providência de Capriles foi assaltar as Missiones,
a começar pelos centros de saúde e clínicas populares onde trabalham médicos
cubanos, na Missión Barrio Adentro.
Capriles
se autoboicota, também, quando apoiadores seus ocupam e vandalizam, como fizeram
recentemente, um prédio de apartamentos em construção, parte do projeto de
moradias para os mais pobres, do projeto Misión Vivenda [Missão Moradia].
Os que há tanto tempo atacam como “invasores”, os venezuelanos sem-teto que
ocuparam um prédio abandonado, ou um pedaço de terra improdutiva, agora atacam
um projeto chavista de dar casa aos pobres. E enquanto Capriles sempre evitou
criticar diretamente Chávez, e pôs-se a atacar Maduro por não seguir o exemplo
de Chávez, alguns de seus seguidores exibiam as velhas garras de sempre:
pintaram graffitis de “viva o câncer”.
Quanto
a Capriles, cujo sobrenome, só ele, já o expõe como porta-voz da elite mais
decadente (e milionária), não há o que faça que consiga apagar o próprio
passado. No segundo turno das eleições de outubro de 2012, circulou na Venezuela
um documento vazado, no qual se lia um “Plano de Governo” de um hipotético
governo Capriles. Embora tenha sido denunciado como falso por alguns, o tal
plano correspondia exatamente ao que muitos sabiam de Capriles: com ele,
voltaria à mesma selvageria neoliberal que levou ao Caracazo. Não é fácil apagar
o próprio passado.
As tropas de choque de Thatcher
Mas
o quanto da mensagem da oposição tem raízes na realidade? Talvez seja excesso de
generosidade acreditar no que Capriles diga. Não há dúvidas de que até Capriles
percebe a contradição: se critica o sistema eleitoral como injusto, desestimula
os seus correligionários, que desistem de votar. Mas não faz outra coisa além de
dizer que votem. Assim, ajuda a derrotar o próprio projeto eleitoral.
Embora
haja uma espécie de vingança histórica no fato de que essa eleição se realize no
dia do aniversário da volta triunfante de Chávez, não podemos deixar que o
triunfalismo nos impeça de ver os abutres que voam sobre a democracia socialista
da Venezuela. A imprensa-empresa internacional está mobilizada para desacreditar
o sistema eleitoral venezuelano, e setores
da oposição já começaram a manobrar,
sugerindo que algo poderá acontecer.
Na
2ª-feira à noite, circularam notícias de que um acampamento de militantes da
extrema direita, da JAVU (Juventude Ativa da Venezuela Unida), que estão em
greve de fome, teriam sido atacados por grupos de “camisas vermelhas”, em
motocicletas, rapidamente “identificados” como “Chavistas”. Para muitos, a
“armação” é evidente, dado que os chavistas nada teriam a ganhar com esse tipo
de ação, às vésperas das eleições. E a polícia de Chacao, controlada pela
oposição, não interveio.
Pelo que já
se sabe, havia chavistas de Chacaoenvolvidos no tumulto, mas foram
atacados por militantes da JAVU. O que explica, automaticamente, o motivo pelo
qual a polícia local nada fez para interromper o ataque: por que intervir, se o
seu próprio lado está atacando? Assista vídeo a seguir:
Esse
tipo de ataque exibe todas as características típicas de ações da JAVU,
organização que, ao mesmo tempo em que fala em nome da não violência
estratégica, como a Albert Einstein
Institution, tem longo passado de ações violentas (associada a um grupo de
exilados, com base em Miami, o grupo Orvex). A JAVU sempre esteve associada a
ataques violentos, de provocação, em toda a Venezuela , desde
ataque a chavistas em Mérida, até uma tentativa de incendiar o Conselho
Legislativo do estado de Miranda. Em Mérida, encontrou-se
um smartphone no qual estava gravado o manual das ações da
JAVU para
os dias seguintes: não reconhecer os resultados eleitorais e “tomar
as ruas custe o que custar”.
Na
4ª-feira apareceram notícias ainda mais preocupantes. Primeiro, o próprio
Capriles recusou-se publicamente a
assinar documento
no qual prometia respeitar os resultados das eleições, insistindo que se mudasse
a redação, para categoria mais flexível: aceitaria assinar, se o documento
falasse de respeitar “o desejo popular”. Dado que Capriles já assinara documento
semelhante antes das eleições de 2012, é caso para pensar por que teria mudado,
agora, a própria estratégia. A recusa preocupa, porque foi imediatamente
associada ao texto divulgado de um telefonema, no qual um dos
guarda-costas pessoais de Capriles
diz que o candidato da oposição não reconhecerá a derrota – fato que,
ironicamente, mostra que nem o guarda-costas de Capriles sonha com vitória
eleitoral.
Não
há dúvidas de que tudo sugere fortemente que um governo Maduro terá de enfrentar
tentativa pós-eleitoral de golpe. Outro telefonema também vazado sugere que há
esquadrões da morte, vindos de El Salvador, que planejam ataques durante a
eleição, e que parecem ter laços diretos com o
próprio Capriles.
Foram presas 17 pessoas, acusadas de tentar sabotar redes elétricas, para
provocar blecautes. Se se considera que até o governo Obama já disse que
suspeita de que as eleições na Venezuela não sejam “limpas e transparentes”,
todos esses são sinais preocupantes, para dizer o mínimo.
Uma aurora
pós-neoliberal
Frantz
Fanon disse certa vez, em frase que ficou famosa, que “Para o colonizado, a vida
só pode brotar do cadáver apodrecido do colonizador”. Festejar a morte
necessária do inimigo leva consigo, embora pela via negativa, um programa
político positivo, e os britânicos que festejam nas ruas espontaneamente a morte
de Thatcher festejavam, de fato, a morte do neoliberalismo.
Mas
infelizmente para os que se reuniram em Brixton, o neoliberalismo e seu parceiro
ideológico, a “austeridade”, estão hoje na ofensiva na Grã-Bretanha e em grande
parte do núcleo do planeta global. A morte de Thatcher de modo algum indica a
destruição, sequer o declínio, de seu legado ideológico. Nesse sentido, a
celebração dos britânicos é tão catártica quanto prematura.
Só
lá, do outro lado do globo, é que começam a ser dados os grandes passos para
destruir o legado de Thatcher. Onde se constrói uma intransigência firme que é,
de fato, uma alternativa ao neoliberalismo.
Como
escrevi em “Nós criamos Chávez” [We
Created Chávez],
muito mais interessantes que Chávez, o homem, são as décadas de luta
revolucionária que o precederam, cristalizada em torno de Chávez como símbolo
de um mecanismo para empurrar adiante a luta contra o neoliberalismo. Vivo,
Chávez sempre foi mais que a soma de seus atos, era como um barco no qual
embarcaram os setores populares da Venezuela, depositando ali suas aspirações
pós-neoliberais. Mas o formato do barco logo foi determinado pelo conteúdo, e
Chávez converteu-se em vela socialista impulsionada por forças que já não
controlava. Parafraseando o que C.L.R. James escreveu de Toussaint L’Ouverture,
Chávez não fez a revolução: a revolução fez Chávez.
Do
cadáver
apodrecido de Thatcher,
florescerá o mundo pós-liberal. A Revolução Bolivariana perdeu algo
poderosamente importante, com a morte de Hugo Chávez, mas talvez seja melhor que
tenha partido fisicamente, na grande onda do movimento histórico que incorporou,
e ao qual continua a emprestar a força de sua imagem, para ajudar a luta a
avançar. Com certeza, essa é morte que se deve preferir.
Notas
dos tradutores
[1]
Aimé Césaire (1913-2008). “Talvez eu morra”, dedicado à mãe de Raj Kumar, indiano, dalit, morto e
não socorrido pela polícia, em 2008, na Índia. Ver Lyric And Dramatic
Poetry.
[2]
“O Poll Tax (imposto
comunitário) foi imposto regressivo (a alíquota diminuía conforme aumentava
a renda do cidadão), criado pelo governo de Margaret Thatcher em 1989 na
Escócia, e em 1990 no restante do Reino Unido, para custear os governos locais
(“councils”, semelhantes a prefeituras) por meio de uma taxa única a ser cobrada
por habitante. Ele substituiria o sistema anterior, no qual o imposto era
calculado de acordo com o valor dos imóveis, de forma semelhante ao IPTU
brasileiro. A população britânica resistiu fortemente à implantação desse
imposto, se recusando a fornecer os dados necessários ao governo, se recusando a
pagar, e dificultando a punição dos inadimplentes. A impossibilidade de
implantar este imposto, e a derrota do governo frente à população, foi a
principal razão da queda de Margaret Thatcher como
Primeira-Ministra”.
[3]
Assiste-se ao episódio, que foi ao ar no programa “Alô, Presidente” (n. 291,
26/8/2007, em 23’10), a seguir:
É
em tudo semelhante a outro, em que Chávez espinafra um “jornalista” da Rede
Globo, em 2010, e que se vê a seguir:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.