sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Libertem Mandela (das grades da mentira)!

20/7/2005, [*] Tony Karon (nos 87 anos de Nelson Mandela) [excertos]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Entreouvido na Vila Vudu: Muito bom que Moon of Alabama, que é voz respeitada (“A luta tem de continuar”) tenha distribuído esse artigo de 2005. Porque ontem, na roda de conversa, a Verinha-de-Lúcia disse assim:
Não entendi. Mandela nunca foi feminista, nem “verde”, nem “ético”. Nunca foi pacifista. Nunca disse que os operários pedalarem 40 km pra ir trabalhar de bicicleta seria solução “ecológica”. Nunca lhe passou pela cabeça que a “kurrupção” fosse o pior dos crimes. Pregou que os negros sul-africanos se armassem. Foi comandante de grupos armados. Foi declarado “terrorista” pelos EUA. Passou 28 anos na cadeia, porque os EUA e os sionistas lá o meteram e lá o queriam.
E agora... virou santo? Na primeira página do Estadão, como herói? Até o Trigo, aquela besta da GloboNews, parece compungidíssimo?! Como assim?!
Por pouco a Verinha-de-Lúcia não apanhou na bunda, porque o pessoal estava no clima do luto pautado pela TV.
Agora, tá tudo explicado: a Verinha-de-Lúcia é da tribo dos verdadeiros revolucionários mandelistas!
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Winnie Mandela (E), Nelson Mandela (C) e Joe Slovo (D)
2ª-feira (18/7/2005), Nelson Mandela completou 87 anos e, cá nessas praias, eu às vezes sinto que ele continua preso, precisando de que o libertem de algumas fantasias bizarras que nada têm a ver com a história ou a política de Mandela.

Declaro aqui, para que todos saibam desde já: Nelson Mandela é o único político no qual algum dia votei; que o celebro como um gigante de nosso tempo e que mil vezes o declarei meu comandante (quase sempre, cantando, desafinado, cantos xhosa), ao longo dos dez anos durante os quais lutei no movimento de libertação dos negros na África do Sul. Por isso, provavelmente, o “Mandela” que tantas vezes encontrei nas fábulas da mitologia norte-americana me parece absolutamente irreconhecível. Comento aqui as duas das mais repetidas versões dessas fábulas:

Mandela inventado #1: “Como Gandhi, Martlin Luther King e Nelson Mandela…”

Quantas vezes ouviu-se essa frase, aplicada a algum político que, em algum canto do mundo, pregue o pacifismo contra regime assassino! Quem duvide, que pesquise no Google a exata frase (em inglês).

Compreendo a compulsão de associar figuras de grande autoridade moral, mas, aí, há erro importante. Nelson Mandela jamais foi pacifista. Quando a via da desobediência civil não violenta de Ghandi só gerou mais violência do estado, Mandela declarou:

Chega hora, na vida de qualquer nação, quando só há duas escolhas – submeter-se ou lutar. Essa hora chegou para a África do Sul. Não nos submeteremos e não nos resta escolha além de responder, pelos meios que haja, na defesa de nosso povo, nosso futuro e nossa liberdade.

Mandela teve papel de liderança na construção do braço armado do Congresso Nacional Africano, [1] e viajou pelo mundo para obter apoio e recursos; ele próprio recebeu treinamento para guerra de guerrilhas na Argélia, de comandantes da FLN que, pouco tempo antes, despachara de lá os franceses colonialistas.

Fidel Castro e Nelson Mandela
Mas Mandela nunca foi terrorista: sob o comando dele, o braço armado do movimento só atacou símbolos e estruturas do governo da minoria branca e soldados de suas forças de segurança. Jamais atacou civis brancos ou outros não combatentes. E, o mais importante, Mandela sempre viu a ala armada do movimento como diretamente e essencialmente subordinada à liderança política.

Permaneceu, consistente e orgulhoso, sempre fiel a essas ideias. Mesmo quando oposição não violenta de massas tornou-se dominante, como orientação do Congresso Nacional Africano, nos anos 1980s, Mandela reafirmou sua conexão com a ala armada. Escreveu, de uma mensagem enviada clandestinamente de dentro da prisão, que: 

(...) entre o martelo da luta armada e a bigorna da ação de massas, o inimigo será esmagado.

(Claro que nem sempre funcionou assim – a luta armada jamais foi muito efetiva, e a ação de massas, combinada com sanções internacionais fizeram mais, para derrubar o regime do apartheid).

E Mandela, como as demais lideranças do movimento, nunca deixaram passar qualquer oportunidade de adotar solução política, para benefício de todos os sul-africanos. Mas esse era o mesmo espírito com o qual embarcou em sua luta armada, como disse à corte:

Durante minha vida, dediquei-me a essa luta do povo africano. Combati contra a dominação dos brancos, e contra a dominação dos negros. Sempre acalentei o ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todos vivessem em harmonia e com oportunidades iguais. É ideal pelo qual espero viver e que espero alcançar. Mas também estou preparado para morrer por ele.

Nelson Mandela e Luiz Ignácio Lula da Silva
Mandela e sua organização só suspenderam a luta armada depois que o regime do apartheid cedeu à democracia. Mas, não: nunca foi pacifista. Bem diferente disso, jamais hesitou ao pegar em armas, quando percebeu que seu povo estava obrigado a escolher entre a submissão à tirania e a resistência armada. Contudo, jamais foi militarista: sempre que pôde, preferiu a via política. Quanto a isso, também, tem muito a ensinar ao mundo.

Mandela inventado #2: O “Milagre Mandela”

Junte na pesquisa pelo Google “Mandela” e “milagre”: há pelo menos 86 mil citações. [2] Essa ideia entrou no imaginário norte-americano na seguinte versão: a África do Sul teria explodido numa guerra racial, e os brancos teriam sido afogados no mar, não fosse a “miraculosa” generosidade de espírito de Nelson Mandela, que supostamente teria contido as hordas vingativas.

Ah... Por onde começar?!

A ideia de que negros vingam-se da violência que sofram nas mãos de brancos é horrivelmente racista. (Lembrem-se da resposta demolidora de Gandhi, quando um jornalista perguntou-lhe o que pensava da civilização ocidental: “É uma boa ideia...”, mais ou menos nessas palavras).

Mas nem precisa tanto. Essa mentira racista ignora a cultura política do Congresso Nacional Africano, que Mandela ajudou a formar e que também o formou, que jamais dependeu só de Mandela ou de qualquer outro indivíduo, por mais força de caráter que tivesse.

Nelson Mandela , o ativista guerreiro
A arquitetura política básica do processo de reconciliação sempre esteve inscrita na política interna do Congresso Nacional Africano, que sempre foi movimento não racial, do qual participavam inúmeros brancos, e cujas políticas distinguiam claramente entre a minoria branca governante e os sul-africanos brancos.

Nenhum historiador de respeito poderá jamais subestimar o papel do Partido Comunista da África do Sul na constituição e no aprofundamento dessa cultura.

Já várias vezes escrevi contra o Partido Comunista da África do Sul, mas ninguém pode negar que os comunistas foram a primeira, e por muito tempo a única, organização na África do Sul, que pregava um governo da maioria negra; dentro do Congresso Nacional Africano, os comunistas tiveram papel chave na análise e na modelagem do não-racialismo e de incluir brancos na luta contra o governo colonialista da minoria branca.

Quando alguns jovens furiosos, que se haviam juntado às forças da guerrilha armada, quiseram responder com ataques terroristas aos ataques cada vez mais sangrentos do regime contra favelas e guetos da maioria negra nos anos 1980s, foram os comunistas – liderados por Chris Hani, comandante do braço militar do Congresso Nacional Africano e, depois, presidente do Partido Comunista da África do Sul – que conseguiram resgatar o Congresso Nacional Africano, então já muito próximo da beira do abismo.

Chris Hani (1942-1993) e Nelson Mandela (1918-2013) em Johannesburg, 1991
E, por paradoxal que pareça a muitos, foram os intelectuais comunistas do Congresso Nacional Africano e sua realpolitik leninista, que conseguiram encaminhar o movimento na direção de uma solução política negociada; a crítica de que seriam “rejeicionistas” foi muito fraca, praticamente desprezível. (...)

O que realmente interessa destacar aqui é que não foi alguma epifania que se teria manifestado pela boca de Nelson Mandela, o que levou a África do Sul para o bom rumo que tomou. Não havia massas de negros clamando por vingança. Todos entendiam o que significa a liberdade, e que liberdade nada teria jamais a ver com vingança. Pretender que teria acontecido outra coisa é insultar os milhões de sul-africanos do povo, que lutaram e sacrificaram-se para libertar Mandela e, depois, o levaram ao poder. (...)



Notas dos tradutores

[1] “O Congresso Nacional Africano é uma aliança entre o Partido Comunista da África do Sul (PCAS) e o Congresso dos Sindicatos da África do Sul [orig. South African Trade Unions (COSATU)]. Cada membro dessa aliança é organização independente, com estatutos, membros e programas próprios. A Aliança baseia-se no compromisso de todos com os objetivos da Revolução Nacional Democrática e na necessidade de reunir a maior frente possível de sul-africanos, alinhados com aqueles objetivos”.
O Congresso Nacional Africano foi declarado organização terrorista pelo presidente Reagan, dos EUA, em 1986.

[2] Hoje, 6/12/2013, oito anos depois desse artigo, a mesma pesquisa oferece “Aproximadamente 37.900.000 resultados (0,48 segundos)”, muitas das quais relacionadas ao filme Reconciliation: Mandela Miracle.
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[*] Tony Karon é um jornalista sulafricano e ativista pioneiro na luta anti-apartheid. Originário da Cidade do Cabo, África do Sul, vive em Nova York desde 1993. Estudou na Universidade da Cidade do Cabo e, na década de 1980, foi ativista de destaque no movimento estudantil NUSAS. Ingressou no grupo Time em 1997, onde trabalhou até o ano 2000 como comentarista internacional de política. Foi ativista dedicado do Congresso Nacional Africano na África do Sul. Em abril de 2013, passou a trabalhar como produtor executivo sênior da equipe digital da Al Jazeera América. 

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