26/12/2013, [*] Evgeny Morozov, Financial
Times
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
USA Spy & Co. |
Depois
das revelações, esse ano, sobre os excessos de Washington na espionagem, Edward
Snowden enfrenta agora onda crescente de “fadiga da novidade” da vigilância,
entre o grande público – e, isso, porque o empregado terceirizado da Agência de
Segurança Nacional que se autoconverteu em “apitador-alertador” revelou
quantidade imensíssima de verdades desconfortáveis sobre como funciona o mundo
nos nossos dias.
Infraestrutura
técnica e poder geopolítico; consumismo rampante e vigilância absoluta, total;
a retórica sublime-delirante da “liberdade da internet” e a dura realidade do
controle sempre crescente sobre a internet – todas essas são vias interligadas
que a maioria de nós nem perceberá ou considerará com atenção. Em vez disso,
nos focamos num único elemento dessa longa cadeia – o estado que nos espiona –
e ignoramos todos os demais.
Mas
o debate sobre a espionagem foi rapidamente circunscrito, estreitado, e
convertido em debate insuportavelmente técnico; questões como a consistência da
política externa dos EUA; o futuro ambivalente do capitalismo digital; a
relocação do poder, de Washington e Bruxelas, para o Vale do Silício – nenhuma
dessas questões recebeu a devida atenção.
"Os EUA nos espionam e nos roubam" |
Fato
é, contudo, que não só a Agência de Segurança Nacional dos EUA está quebrada: o
modo como fazemos – e pelo qual pagamos – as nossas comunicações também está
quebrado.
E
foi quebrado por razões políticas e econômicas, não só por razões “de lei” e
tecnológicas: muitos estados, desesperados por dinheiro e carentes de
imaginação infraestrutural, entregaram as suas redes de comunicação, rendidas,
um pouco cedo demais, a empresas de tecnologia.
Snowden
criou uma abertura para um muito necessário debate global que poderia ter
iluminado várias dessas questões. Infelizmente, esse debate nunca começou.
As
revelações de que os EUA são viciados em vigilância só receberam resposta
desbotada, unidimensional. Grande parte dessa retórica superaquecida – não
raras vezes com tintas de antiamericanismo e canalizada para modalidades
improdutivas de reformas – foi até agora inútil. Muitos governantes
estrangeiros ainda se agarram à fantasia de que basta(ria) que os EUA lhes
garantam um acordo de não espionagem, ou, pelo menos, a promessa de que pararão
de monitorar os seus equipamentos e sistemas, para fazer sumir as perversões
que Snowden revelou.
Nesse
ponto, os políticos estão cometendo o mesmo erro que o próprio Snowden comete:
em suas raras, mas sempre consistentes manifestações públicas, Snowden sempre
atribui os erros e vícios ao alcance desmesurado das agências de inteligência.
Parece que, ironicamente, nem o próprio Snowden tem consciência clara do que
encontrou e revelou.
Complexo de Espionagem e instalações da ASN em Fort Meade, Maryland |
Não
se trata de abuso por instâncias isoladas de poder, que se possa corrigir com
novas leis, mais controle sobre os espiões, novas ferramentas que zelem pela
privacidade, e com súplicas, pelo estado, às empresas de tecnologia, para que se
façam “mais transparentes”.
É
claro que tudo isso tem de ser feito: são os frutos políticos mais acessíveis,
que todos sabemos como alcançar e colher. No mínimo, essas medidas criarão a
impressão de que algo está sendo feito.
Mas
de que servirão essas medidas, para conter a tendência muitíssimo mais
perturbadora, que já mostra que informações pessoais sobre nós mesmos – muito
mais que o dinheiro – estão já convertidas em “moeda” que paga por serviços e
em breve, talvez, também, pelos bens indispensáveis à vida diária?
Não
há lei nem ferramenta que proteja os cidadãos que, inspirados pelos contos de
fadas do empoderamento do Vale do Silício, correm a converter-se em empresários
“de dados”, sempre à procura do meio mais novo, mais rápido, mais lucrativo
para monetarizar os próprios dados – seja informação sobre os próprios hábitos
de compra, ou cópias do próprio genoma. Esses cidadãos querem ferramentas que
os capacitem para abrir cada vez mais os próprios dados, não para
escondê-los.
Agora,
quando cada dado ou fragmento de dado, por trivial que seja, também é capital disfarçado,
só falta encontrar o comprador certo. Ou é o comprador que encontra o dado
certo – e o respectivo proprietário – e oferece-se para criar um serviço
convenientemente pago, a ser pago com aqueles dados. Esse, aliás, parece ser o
modelo Google combinado ao g-mail, o serviço de correio eletrônico da mesma
empresa.
Edward Snowden |
O
que Snowden parece não ver – nem ele nem seus detratores e apoiadores – é que é
possível que estejamos passando por uma transformação no modo como o
capitalismo opera: dados pessoais aparecem aí como um regime alternativo de
pagamento.
Os
benefícios para o consumidor já são óbvios; os custos potenciais para os
cidadãos, esses, absolutamente não são claros. Ao mesmo tempo em que proliferam
os mercados de compra e venda de informações pessoais, também proliferam as
externalidades. E a democracia é a principal vítima.
Nada
sugere que a transição em curso, de dinheiro para dados, venha a enfraquecer o
poder & mando da Agência de Segurança Nacional dos EUA. Ao contrário! É
possível que se criem intermediários mais fortes e em maior número, todos
unidos para manter e ampliar o mesmo vício, a mesma obsessão por mais e mais
dados.
Por
isso, se quiser escapar da obscuridade do gueto legalista do debate sobre a
privacidade; e para que continue relevante e ganhe pegada (e dentes) políticos,
é indispensável que o debate sobre vigilância seja linkado ao debate sobre o capitalismo.
O CUSTO da espionagem e da NSA é ESCONDIDO do povo dos EUA |
Há
outras dimensões nisso tudo, também esquecidas ou subestimadas, e também
cruciais. Não teríamos, nós, de criticar muito mais os argumentos trazidos à
baila pela Agência de Segurança Nacional e outras agências, segundo os quais
precisa(ria)m daqueles dados que coletam, para agir preventivamente sobre os
problemas?
Não
devemos deixar passar sem criticar a ideia de que a prevenção (só porque parece
ser hoje a ideia mais barata), substitui(ria) completamente todas as tentativas
mais sistemáticas para identificar as origens do problema que temos de
resolver, muito mais do que apenas impedir que aconteça hoje.
Só
porque as agências de inteligência dos EUA tanto se empenham para um dia ter
mapeadas todas as crianças do Iêmen, porque entendem que elas manifestem
tendência inata para explodir aviões, não implica que os EUA estejamos dando a
devida atenção à fonte da insatisfação infantil iemenita: uma das quais pode
ser o uso alucinado de drones para matar os pais e mães daquelas
crianças.
Infelizmente,
essas questões não estão na agenda atual, em parte porque muitos de nós
compramos a narrativa simplória – conveniente para Washington e para o Vale do
Silício – de que só nos faltam mais leis, mais ferramentas, mais
‘transparência’.
O
que Snowden revelou ao mundo é a nova tensão nos pilares que dão/davam
sustentação ao capitalismo e a vida democrática como os conhecemos. Para resolver
os novos problemas é preciso um pouco mais de imaginação.
__________________
[*] Evgeny Morozov nasceu em 1984 na Soligorsk, Bielorrússia. Frequentou a American University na Bulgária e mais
tarde viveu em Berlim antes de se mudar para os Estados Unidos onde foi
aluno-visitante na Stanford University.
Atualmente é associado da New America Foundation
e editor colaborador-blogueiro (blog New Effect) da revista Foreign Policy. Colabora com o noticiário
do Yahoo!; é professor visitante na Georgetown University’s Walsh School of Foreign
Service; associado do Open Society Institute;
diretor de novas mídias da ONG Transitions
Online e colunista do jornal russo Akzia.
Artigos de Morozov têm sido publicados em vários jornais e revistas em
todo o mundo, incluindo The New York Times,
The Wall Street Journal, Financial Times, The Economist, The Guardian,
New Scientist, The New Republic, Corriere Della
Sera, Times Literary Supplement, Newsweek International, International Herald Tribune, Boston Review, Slate e San Francisco Chronicle.
Neste ano de 2013 está obtendo
o título de Ph.D. em História da Ciência em Harvard.
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