7/12/2013, [*] Giuseppe Cocco (entrevista) – Instituto Humanitas Unisinos
Entrevista enviada e comentada pelo
pessoal da Vila Vudu
Papim entreouvido na creche da Zilá, na Vila Vudu:
-- Tirando o tom apocalíptico de Rainha-Louca-da-Alice-no-País-das-Des-maravilhas,
a entrevista é EXCELENTE. É realmente importante que alguém diga o que aí se
diz, porque o PT é, sim, o pior partido do mundo.
-- OK, OK. A tragédia brasileira sempre foi essa boooosta de “elite”
metida a “crítica” à moda diabo, e a “radical” à moda acadêmica, seja petista,
seja udenista, seja qualquer “elite”.
-- POR SORTE -- e para tirar a discussão do impasse entre o marilenachauiísmo e coccoísmo -- que só interessa às respectivas claques acadêmicas -- o prof. Samir Amin nos mandou do Egito, para
traduzir (e já está em tradução), excelente artigo no qual ele diz:
A teoria da “via não capitalista”
imposta aos parceiros dos países não alinhados na época de [Conferência de]
Bandung – sobretudo ao Egito do nasserismo anti-imperialista radicalizado, e
que critiquei desde que foi formulada, inscrevia-se
nesse abandono da perspectiva estratégica, em benefício unicamente de uma
tática.
Caberia ao comunismo chinês e a Mao
conceber o movimento ao socialismo nas periferias do capitalismo mundial de
maneira diferente, não em ruptura e contra a herança do leninismo, mas por
ultrapassá-la. Esse é o tema de uma outra linhagem do movimento ao socialismo,
que abordaremos na sequência.
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Mas vamos à entrevista do professor Cocco:
IHU On-Line - O que as manifestações do
chamado Outubro Brasileiro nos ensinam no que se refere às possibilidades
efetivas da democracia direta?
Giuseppe Cocco - As
manifestações de outubro são a continuidade e o desdobramento daquelas de
junho. No conjunto elas ensinam muitas coisas, inclusive sobre as
possibilidades efetivas de democracia direta. Antes de tudo, elas nos ensinam
que a “democracia direta” só existe nos termos da radicalização democrática. O
movimento não apenas nos diz que a separação da fonte (o povo) vis-à-vis do
resultado (os representantes) é imoral, mas explícita, e torna visível que essa
dimensão imoral do poder está baseada na violência de suas polícias. Ou seja, o
movimento teve a capacidade de mostrar para o Brasil e para o mundo as
dimensões perversas do monopólio estatal do uso da força no Brasil; um regime
de terror de Estado que, por meio do regime discursivo sustentando pela mídia
da elite neoescravagista, é tratado como se fosse “externo” e independente dos
governos, até o ponto em que, no Rio de Janeiro, a solução seria seu
aprofundamento por meio da chamada “pacificação”.
Seria
irônico se não fosse o cúmulo do cinismo escravocrata. É que a forma espúria de
agir do Estado, ou conluio generalizado entre forças de polícias e crime
organizado, no meio da histeria repressiva contra o tráfico de drogas, funciona
como principal mecanismo de legitimação da guerra contra os pobres e contra
suas mobilizações democráticas. Como sempre fez, desde junho, o poder
multiplica os boatos sobre participação do narcotráfico nas mobilizações
democráticas. Na senzala — ou seja, nas favelas, subúrbios e periferias — o
terror anda a pleno vapor, quer a polícia seja do PSDB, do PT, do PSB ou do
PMDB. É um terror estatal com vieses classistas e, sobretudo, racistas. Os
ventos de junho continuam soprando (não apenas em outubro, mas também em
novembro), e o outono já virou uma primavera que anuncia o carnaval.
Black Bloc Brasil, junho 2013 |
O levante
de junho não foi uma explosão efêmera, mas uma potentíssima bifurcação dentro
da qual ainda estamos. Nessa bifurcação, as possibilidades de democracia direta
nos aparecem ao mesmo tempo potentes e ativamente bloqueadas, literalmente
criminalizadas por um Ministro da Justiça que transforma em crime, com apoio
entusiasta da imprensa hegemônica, os direitos constitucionais de manifestação
e livre opinião. E isso com base em relatórios da Polícia Federal sobre
atividades que não são crimes.
Ou seja, o
Ministro da Justiça se transforma em Ministro de Polícia e o Estado faz cair
sua máscara para aparecer explicitamente o que é: um Estado de Polícia.
Confesso que fiquei espantado diante da “reação” (e quero enfatizar mesmo esse
termo “reação”, pois é a raiz de outro termo: “reacionário”) da esquerda em
geral, sobretudo da esquerda de governo, em particular do PT e de alguns
dirigentes e até de alguns amigos. Meu espanto aumenta a cada dia. Se da
Presidenta Dilma (que, como disse um viral na internet de um artista carioca,
“Já foi Sininho e hoje virou Capitão Gancho”) não esperava nenhuma
sensibilidade, não digo “social”, mas sequer política, de outros esperava uma
postura diferente, pelo menos progressista e esclarecida.
O fato é
que a esquerda de poder e o PT (que me interessa) não fizeram, e não fazem,
nenhum esforço para abrir os governos que lideram à nova demanda de
participação e de “democracia real já”. Ao contrário, assistimos a uma postura
arrogante e reativa, nos moldes do Ministro da Justiça se transformando
docilmente em Ministro de Polícia. Essa postura enfatiza o que já sabíamos: que
as brechas de transformação dos governos Lula foram definitivamente fechadas
pela Dilma; que as experimentações em termos de orçamento participativo não
apenas foram encerradas faz tempo, mas foram totalmente sobrevalorizadas. O OP
(Orçamento Participativo) não deixou rastros políticos de nenhum tipo.
Democracia produtiva
De toda
maneira, apesar desse vazio político desanimador, hoje é o horizonte inovador
de uma democracia produtiva que temos diante de nós. Podemos apreender suas
dimensões em três grandes níveis:
A) a ruptura— parcial e temporária, mas
real — das dimensões totalitárias construídas em torno do consenso da
“governabilidade”;
B) a multiplicação de assembleias (muitas
delas chamadas de “populares”) e ocupações de Câmaras e Assembleias
Legislativas em muitíssimas cidades; e
C) a forma produtiva do “movimento”.
As três
dimensões fazem do levante de junho-outubro um momento constituinte. Num
primeiro nível, pelo decreto de redução das tarifas de transportes (no caso do
Rio Grande do Sul, o governo Tarso teve a coragem de promulgar o Passe Livre
para os estudantes) e uma série de outros decretos da plebe. No Rio de Janeiro,
tratou-se, sobretudo, do entorno do Maracanã e do recuo parcial do Prefeito
(embora falso) nas políticas de remoções de favelas. No segundo nível, as ocupações
de “parlamentos”, além de traduzir-se em decretos do tipo daqueles do primeiro
nível (“recuos” pontuais dos governos) visaram transformar a crítica da
representação no terreno concreto de um aprofundamento democrático, de invenção
de novas instituições.
Black Bloc e a PM do Rio de Janeiro (junho 2013) |
Recorrendo
mais uma vez ao Rio de Janeiro, as sucessivas ocupações da Câmara dos
Vereadores (e da praia do Leblon, em baixo da residência do Governador, sem
contar o sem número de manifestações na frente do Palácio Guanabara, na frente
da Alerj ou a breve ocupação na frente da residência do Prefeito Municipal)
mostraram que o movimento de junho não era efêmero, mas capaz de abraçar as
lutas mais difíceis como aquela contra a máfia dos ônibus (cobrando uma CPI
transparente e democrática). Sendo que a luta contra a máfia dos ônibus não é
apenas uma luta pela reforma urgente da gestão do sistema de transportes, mas
também pela democracia: todo mundo sabe que esses “lobbies” se constituem nos
maiores entraves ao sistema democrático, inclusive aquele representativo!
A ocupação
da Câmara do Rio mostrou toda sua potência de novo terreno de luta democrática
quando passou a ser usada e renovada pelos professores da rede municipal. Não é
por acaso que foi duramente reprimida: o poder não pode com certeza tolerar que
a democracia real se instale. Seria um exemplo insuportável.
Enfim, com
o outono virando primavera, a persistência do movimento nos mostra as dimensões
produtivas e, nesse sentido, constitutivas do horizonte democrático que ele
define. As mobilizações praticamente diárias, que se sucederam em julho, agosto
e setembro até se massificarem novamente nos dias 7 e 15 de outubro, são o
terreno de uma multiplicidade de iniciativas: advogados da OAB, grupos de
advogados ativistas, grupos de primeiros socorros, coletivo projetação,
autoformação nas ocupações, músicos e bandinhas, uma multidão de mídias
produzindo desde inúmeros streamings e documentários passando por todos os
tipos de registros fotográficos. A democracia que o movimento desenha é
constitutiva e é mesmo produtiva. O fato de um processo de subjetivação que
mostra toda a potência das redes e das ruas.
IHU On-Line - A ausência de um projeto
político unificador das pautas dos manifestantes levou à dispersão e à
imobilidade? Foi isso o que ocorreu após a redução do preço das passagens,
principal pauta das manifestações de junho em várias cidades brasileiras?
Giuseppe Cocco - Parece
que foi exatamente o contrário o que aconteceu: não houve dispersão, mas
difusão e multiplicação de manifestações, reivindicações, assembleias e
reuniões. Pelo menos no caso do Rio, não houve sequer um dia de “imobilidade”,
mas uma mobilização diária, modulada em escalas diferentes. A multidão passou a
fazer-se pela multiplicação difusa de iniciativas de lutas novas e antigas. O
movimento de junho teve a capacidade de colocar pautas que eram tão urgentes
como inalcançáveis até então, como na questão dos transportes urbanos. Claro,
os esforços dos jovens do Movimento pelo Passe Livre (MPL) estão na base disso,
mas é a primeira vez que a luta sobre o preço das passagens e a qualidade dos
transportes se consolida nas ocupações de Câmaras e Assembleias Legislativas
para que todo o sistema de gestão seja objeto de democratização.
Black Bloc antes do início das manifestações |
O movimento
de junho foi se metamorfoseando numa constelação de movimentos e iniciativas,
conectando entre elas as lutas mais diversas: desde aquelas dos favelados
contra as remoções ou a violência policial, até aquelas dos usuários
massacrados nos transportes todos os dias, passando pelos movimentos de
categorias como a dos bancários, dos petroleiros e, sobretudo, dos professores.
Os
professores do Rio de Janeiro encontraram no levante de junho e,
principalmente, em sua persistência a inspiração para lutar. Os professores
experimentaram, nas misturas com o Ocupa Câmara e os jovens da tática Black
Bloc, novas formas de luta e organização, de tipo metropolitano: a forma
sindical (o SEPE) saiu extremamente enfraquecida (e até objeto de críticas
violentas) ao passo que, em sua última fase, o movimento foi experimentando
formas embrionárias de organização territorial, algo como novas Câmaras do
Trabalho Metropolitano que chegaram a viver nas conexões entre as diferentes
acampadas. Não dá para saber com quanto fôlego, mas as acampadas do Leblon e da
Câmara foram retomadas nesses dias.
A greve dos
professores municipais não foi mais a tradicional greve absenteísta do setor
público, mas uma luta sensacional de ocupação e resistência, inclusive diante
da repressão policial. É isso que levou, no dia 1º de outubro, a uma batalha
campal de horas e horas no centro do Rio de Janeiro (sendo a repressão policial
a única argumentação usada pelo governo PMDB-PT para “negociar” com os
grevistas) e, no dia 7 de outubro, à volta da multidão na Avenida Rio Branco.
Mais de 100
mil pessoas marcharam, numa repetição de junho que agora não tinha mais nenhum
tipo de ambiguidade. Uma grande manifestação de esquerda, atravessada e
enriquecida pelas diferenças e por milhares de jovens que aderiram — talvez
pela primeira vez — à tática Black Bloc.
No dia 15
de outubro, novamente dezenas de milhares de pessoas ocuparam a Rio Branco. A
multidão está na rua e persiste em seu fazer-se. Não uma massa homogênea e
manipulada (aquela que a mídia neoescravagista gostaria de ver na rua) e sequer
a identidade categorial e corporativa que os sindicatos (pelegos ou
supostamente “radicais”) conseguem colocar, mas uma multiplicidade de
singularidades, sem lideranças e por isso mais potentes. É a multidão que está
na frente, praticando e inovando nas formas de luta e voltando a dar
credibilidade à política, em particular junto aos jovens.
Projetos dos partidos
Lembremos
que, em junho, os partidos tradicionais (de governo e de oposição) criticavam o
movimento por não ter organicidade, lideranças e “projeto”. Caberia perguntar:
quais são, hoje, a organicidade e os projetos dos partidos? Por um lado, é
difícil defender que os diferentes partidos de governo tenham alguma
organicidade. Eles parecem funcionar como coalizões espúrias de estratégias personalistas,
grupos de interesse econômico que formam bancadas bem pouco “republicanas” a
partir do peso de determinados lobbies (agronegócio, telecomunicações,
evangélicos, etc.) que passam por cima das próprias instâncias partidárias. Que
projeto tem esses “deputados e senadores”, que não a mera ocupação do aparelho
de poder assim como ele é? E, qual seria o projeto dos partidos de esquerda?
Black Bloc na linha de frente das manifestações de junho/2013 |
Aqueles que
fazem oposição se confirmaram como fundamentais, em particular o PSOL do Rio de
Janeiro. Contudo, a “esquerda de oposição” sai muito mal desses cinco meses de
lutas. Quando ainda tem cidadania no movimento, isso não impede que o movimento
os transponha totalmente. Por outro lado, é evidente que a “esquerda de
oposição” não representa nenhuma alternativa eleitoral, e eu continuo
convencido de que até o movimento mais radical precisa de algum momento
eleitoral. Quanto ao PT, qual é seu projeto? Difícil dizer, pois não há nenhum,
a não ser “continuar no governo”. É ainda pior se perguntamos: qual projeto a
Presidenta Dilma implementou em seu mandato? Em termos de políticas públicas,
não houve nenhuma inovação.
A marca da
Dilma foi a volta do economicismo, e isso em torno de duas falácias: a primeira
foi a aposta na economia material das commodities, dos megaeventos, das
megaobras e dos global players (a grande indústria multinacional); a segunda —
complementar a essa — foi a ideia de que a mudança de modelo econômico viria de
cima para baixo, pela decisão-decreto de “baixar a taxa de juros”.
Quando
Dilma fala que gosta de engenheiros e não de advogados, ela está sendo muito
sincera, nos faz entender que ela é mesmo autoritária. Não se trata apenas de
“jeito”, do gosto pelos engenheiros que fazem os cálculos das barragens ou dos
estádios, diante dos “chatos” dos advogados que ajudam os índios e os pobres a
desconstruir essas equações para mostrar os impactos ambientais e sociais.
Trata-se mesmo de uma maneira de pensar a política como uma engenharia social,
uma teleologia do progresso a ser implementada, inclusive pela força (a
polícia, sem esquecer que se trata da polícia brasileira, que mata oficialmente
cinco pessoas por dia), como fizeram Lenin e Stalin com a “industrialização
forçada”. Só que agora, o ridículo é que o totalitarismo é para permitir a
qualquer custo que a Copa da FIFA aconteça nos moldes dos interesses da FIFA. O
nacionalismo é sempre assim: em nome do interesse nacional, abrem-se avenidas
para o neocolonialismo interno e, pois, externo.
Logo que
foi eleita, Dilma mostrou a que veio: a destruição do Ministério da Cultura foi
emblemática, mas também a afirmação de seu estilo autoritário, com a demissão
de Pedro Abramovay, justamente por ter anunciado um elemento de projeto (a
reforma — urgente e necessária — da política de repressão das drogas). Um
episódio que mostra o caráter arrogante e autoritário da Presidenta e a
submissão dócil de seus ministros — a começar pelo que deveria ter defendido o
Pedro Abramovay, o Ministro da Justiça —, que praticamente não tomaram nenhuma
iniciativa nestes três anos.
Black Bloc e os ideais |
Nada foi
produzido pelos ministros. Imaginem o que teria acontecido com Tarso Genro
quando tomou a corajosa decisão de conceder refúgio ao Battisti . O fato é que
os elementos originais do governo Dilma foram desastrosos e apagaram o pouco
que havia de “esquerda” no pragmatismo “lulista”: no plano das megaempresas,
temos a falência de Eike Batista — que envolve BNDES, CEF e FGTS — e as
dificuldades pesadas da Petrobras que levaram ao Leilão de Libra (e levarão ao
aumento do preço da gasolina porque a produção dos poços tradicionais caiu); os
megaeventos se mostraram como impopulares justamente em junho, durante a Copa
das Confederações — como se faz para gastar bilhões em embelezamento (no Porto
Maravilha) quando milhões de pessoas ao lado convivem com rios de esgoto a céu
aberto? Só mesmo por meio do conluio com a tradicional política de terror, essa
sim mascarada por trás da clivagem de raça e classe, que mantém a senzala em
“seu lugar”.
No plano da
nova política econômica (a manutenção dos subsídios à grande indústria e a
tentativa de baixar os juros), esta acabou reforçando as tendências
inflacionistas que já estavam presentes. O levante de junho foi, inicialmente,
a afirmação de que só uma mobilização democrática é capaz de romper a ciranda
mortífera que liga as duas inflações: a dos juros e aquela dos preços!
Tornando-se primavera, o outono é também a base para reafirmação da própria
noção de projeto. O “projeto” que interessa é aquele que não é unitário, mas
múltiplo, aquele que é aberto a outro processo de produção de subjetivação,
aquele que não se separa do processo de sua constituição: o único jeito de a
“política” voltar a ser ética (e crível para os jovens) é de manter a fonte e o
resultado juntos num processo continuamente aberto. O único projeto que
interessa é justamente aquele que não é projeto, ou seja, onde não há nenhuma
teleologia totalitária, mas o máximo de constituição democrática.
IHU On-Line - Que relação pode ser feita
entre aquelas primeiras manifestações e as mais recentes, que passaram a ser
identificadas pelos atos de violência? Trata-se da continuação de um mesmo
fenômeno ou são situações isoladas uma da outra?
Giuseppe Cocco - Não há
diferença entre as primeiras manifestações e aquelas que persistiram ao longo
desses meses: por exemplo, as primeiras manifestações no Rio de Janeiro, no
início de junho, tinham muita pouca gente e já eram caracterizadas pela
determinação de uma nova geração de jovens em resistir aos ataques da polícia e
dar às manifestações algum nível de efetividade. Contrariamente ao que a mídia
e os intelectuais ligados ao governo afirmam hoje, foi essa característica
marcante das manifestações que as massificou. Ao passo que os governos achavam
que o “rodo” policial teria afugentado os manifestantes, em particular aqueles
politizados de classe média que — segundo seus cálculos obsoletos — deviam
constituir o núcleo duro das mobilizações.
Não apenas
isso não afugentou, mas massificou e, dentro da massificação, foi se
construindo a capacidade de resistir e até de praticar ações diretas de tipo
simbólico. Desde o início o poder da mídia e a mídia do poder tentaram impor a
separação entre os manifestantes “ordeiros” e os “vândalos” e não funcionou.
Não funcionou porque, apesar das mistificações seguidas da mídia, as práticas
da autodefesa e das ações diretas respeitaram limites políticos precisos que
não permitiram que a elas se colasse o discurso da violência e do medo.
Black Bloc face a face com a repressão |
A maioria
da população, sobretudo da população jovem e pobre, passou a enxergar nessas
práticas uma brecha de luta efetiva. Trata-se, pois, de uma continuidade e de
um amadurecimento, como vimos na volta da multidão para a Avenida Rio Branco
nos dias 7 e 15 de outubro. Contudo, podemos e precisamos sistematizar a
questão da violência em três momentos de reflexão: a violência já existe e a
novidade foi a brecha democrática; a questão da tática Black Bloc; e a
repressão.
A violência
A mídia e o
poder sempre tentam dizer que a violência vem do protesto, ou seja, da
manifestação democrática. Trata-se de uma operação sistemática de mistificação
que assistimos em suas formas explícita e assassina nos últimos eventos de São
Paulo — ao passo que alguns jovens estão em prisão preventiva com a gravíssima
acusação de “tentativa de homicídio” de um policial (que não sofreu nenhum
ferimento grave), os policiais que assassinaram friamente dois adolescentes (em
momentos diferentes e logo depois) são indiciados por “homicídio culposo”.
Pior, jornais como O Globo (que tem uma longa e mortífera história de apologia
do arbítrio policial) chegaram a fazer manchetes que invertiam propositalmente
o sentido dos fatos: “Protesto contra morte de jovem termina em violência”. Ou
seja, a justa indignação popular contra a violência assassina do Estado sofre
uma inversão grosseira, até ofensiva à inteligência do leitor.
O que o
movimento fez e faz não é praticar a violência, mas tornar explícita e visível
a violência do poder e seus sistemas de (in)justiça, como do caso Amarildo, o
pedreiro torturado, assassinado e feito desaparecer na sede da UPP da PM da
Rocinha do Rio de Janeiro. A mesma coisa aconteceu com os mais de 10 moradores
assassinados na favela da Maré em junho, durante o movimento, pela “Tropa de
Elite” da PM do Rio e em relação à qual sequer existe um procedimento
disciplinar. O movimento mostrou que os moradores da senzala não têm cidadania
nem direito de lutar. A chacina da Maré foi um recado claro, genuinamente
neoescravagista, aos pobres: vocês não têm direito de lutar e se lutarem serão
mortos. Essa é a democracia que vivemos: não nos grotões do Brasil remoto, mas
na metrópole olímpica, o Rio de Janeiro. E isso num governo estadual do PT e do
PMDB.
A tática Black Bloc
Porém,
milhares de jovens pobres descobriram, em junho, que havia uma brecha para
lutar. O Brasil dos megaeventos, das Copas e das Olimpíadas não pode repetir
nas ruas e praças o que faz nas favelas, periferias e subúrbios todo santo dia.
Não é por acaso que isso aconteceu durante a Copa das Confederações.
A luta foi
contra, mas dentro: dentro e contra. Essa brecha é claramente democrática, pois
por meio dela os jovens pobres (mesmo que na maioria sejam os mais dinâmicos —
prounistas, reunistas, etc.) encontraram a possibilidade de lutar, fugindo ao
duplo mecanismo racista e assassino que normalmente é usado para controlá-los:
o arbítrio da polícia e aquele do narcotráfico, sendo que às vezes ele toma o
nome de “milícia”.
Ao mesmo
tempo, os jovens que encontraram essa brecha não acreditam na representação e
querem muito mais e melhor. Não querem nenhuma bandeira que não seja aquela que
eles mesmos afirmam e produzem em sua luta. Além disso, me parece, esses
jovens, e mais em geral os jovens que decidiram entrar para a política em
junho, pensam que o único modo de fazê-lo é conseguir certo nível de
efetividade, ou seja, ficando nas ruas nas maneiras mais autônomas e
determinadas possíveis.
Deve haver
outras explicações que eu desconheço, mas olhando para o Rio de Janeiro, onde a
tática Black Bloc se apresentou explicitamente (se eu não estiver errado)
apenas no dia 30 de junho, nas manifestações de protesto durante a final da
Copa das Confederações, creio que as bandeiras negras do anarquismo foram aquelas
que a grande maioria desses jovens elegeu como sendo internas a uma luta que é,
antes de tudo, uma luta contra a representação e afirma a necessidade de formas
de organização radicalmente horizontais, sem liderança.
Eu nunca
fui anarquista e não acredito no “anarquismo” porque penso que a luta é pela
invenção de novas instituições. Mas não adianta querer que a “realidade” se
encaixe nas nossas ideias. É preciso que as ideias se adéquem à realidade. A
referência (global) à tática Black Bloc parece ter respondido ou correspondido
a algumas inflexões totalmente brasileiras e cariocas.
A primeira
é a necessidade desses jovens oriundos das periferias e dos subúrbios de se
mascarar para poder lutar (há como que uma inversão: não usam máscaras por
serem Black Blocs, mas se chamam de Black Bloc para poderem usar as máscaras e
chegar mascarados nas manifestações do mesmo modo que as bandeiras pretas da
anarquia lhe parecem as únicas — mas não exclusivas — que afirmam a
horizontalidade radical de sua luta).
Black Bloc e a destruição de símbolos do capitalismo (ITAÚ) |
A explicitação
da tática Black Bloc é também — e paradoxalmente diante do processo de
criminalização do qual são objeto — a definição de uma ética da resistência e
da ação direta, ou seja, de “limites” dentro dos quais manter essas duas
práticas que o movimento de junho e seus desdobramentos, ao longo dos meses de
julho, agosto, setembro e outubro, colocaram em pauta. A tática Black Bloc foi
um sucesso midiático inesperado. São eles que chamam a atenção de todos os
tipos de mídia. De onde vem esse “sucesso”? Da percepção de que nessa tática há
uma brecha democrática capaz de colocar na rua a questão da paz e da justiça
social: é essa tática que conseguiu dar o nome de Amarildo a todos os pobres
sem nome massacrados arbitrariamente pelo Estado: cinco por dia, segundo as
estatísticas publicadas pelo O Globo.
Contudo,
parece que a tática Black Bloc tem uma dimensão estética que também pode
funcionar como uma identidade e isso, a meu ver, é um problema. Em primeiro
lugar porque pode servir para os desenhos da repressão que procura exatamente
isolar fenômenos de organização que não existem. Em segundo lugar porque pode
ingenuamente atribuir às dimensões estéticas da ação direta um peso político
que na realidade não tem. Por exemplo, a quebra dos caixas eletrônicos se
parece com a quebra dos relógios nas velhas revoluções do século XIX. Da mesma
maneira que o proletariado industrial não conseguia com isso deter os ritmos do
tempo do assalariamento, o proletariado metropolitano não conseguirá deter os
fluxos das finanças quebrando os caixas eletrônicos dos bancos (aliás, nisso os
Black Blocs estão sendo muito próximos da Dilma e de sua tentativa fracassada
de deter as taxas de juros). Ficando nessa estética, a luta corre o risco de
cair numa armadilha. Enfim, os adeptos da tática Black Bloc podem acabar
“presos” nessa dimensão estética, repetindo-a sistematicamente e ingenuamente.
Em suma, a dimensão estética corre o risco de sobredeterminar aquela política,
e penso no mote de Walter Benjamin (o filósofo comunista alemão vítima do
nazismo): a luta pela politização da arte continua atual.
A repressão
Chegamos
assim à questão da repressão: o que está acontecendo — e em nível federal — é
escandaloso. A Polícia Federal — a mando da Presidenta e do Ministro de Justiça
— divulga na imprensa a existência de listas de “suspeitos” de praticarem
atividades totalmente constitucionais: liberdade de opinião e de manifestação,
articulações políticas e culturais internacionais. Não dá nem para acreditar.
Em junho,
dirigentes do PT e do governo chamaram para o perigo do “golpe”, falaram de
coxinhas e também de “fascismo e barbárie” nas manifestações. Tive um vivo
debate com meu amigo Tarso Genro, na presença de Boaventura de Souza Santos, em
Lisboa (em julho deste ano), durante o qual ele falava de fascismo e da “marcha
sobre Roma”. Ora, o fascismo é um fenômeno estatal, nacionalista e identitário:
totalmente o contrário dos discursos, das bandeiras e da estética destes
garotos. Quem tem ares de fascismo é Vargas, ao qual Emir Sader comparou o
Presidente Lula. Quem é ambíguo é o nacionalismo que circula na esquerda
neodesenvolvimentista (inclusive, como vimos no Leilão de Libra, faz como o
fascismo: retórica nacionalista e política entreguista).
Fascismo e
xenofobia é fazer demagogia nos vistos (bem-vindos) para os médicos cubanos e
deixar irregulares os milhares de trabalhadores bolivianos em São Paulo. Enfim,
fascistas são as polícias de qualquer estado do Brasil que podem matar e
torturar a rodo sem que o senhor Ministro de Justiça constitua força tarefa
nenhuma. Fascismo e barbárie são as condições das prisões no Brasil, para onde
o próprio Ministro disse que não gostaria de ir.
O fascismo
é um fenômeno estatal, organizado e estruturado em torno da radicalização dos
valores tradicionais: a nação, a família e até a raça (e o anarquismo diante
disso — quer a gente goste ou não dele — é uma contradição nos termos). O
fascismo já está presente e dominante no Brasil e não precisa de nenhum golpe,
a não ser aquele que o próprio governo está dando na democracia. Quem colocou o
exército na rua foi o governo federal para proteger o leilão das reservas
estratégicas de petróleo. A quebra do Estado de direito aconteceu por obra do
Estado do Rio (e surpreendente aprovação do Cardozo) na prisão indiscriminada e
em massa de 200 pessoas com o único critério de estarem na escadaria da Câmara
dos Vereadores do Rio de Janeiro, exercendo o direito constitucional de
manifestação. Essa operação sim é de “tipo” nazista: prisão indiscriminada, em
massa, por retaliação.
Não se
trata apenas de dizer que nenhuma força-tarefa foi constituída entre o Ministro
da Justiça e os Secretários de Segurança do Rio e de São Paulo para deter os
assassinatos sistemáticos de pobres (os “Amarildo”) pelas PMs de todos os
estados. Há uma outra evidência, terrível, que somente Cardozo e Dilma não
querem ver: no Rio de Janeiro, ao longo de cinco meses de mobilizações de rua e
enfrentamentos, a PM — como o próprio Secretário de Segurança José Mariano
Beltrame disse — se “segurou” e o uso das armas letais foi extremamente
limitado (embora preocupante no dia 15 de outubro). O que isso significa? Que o
uso sistemático do ato de resistência para matar, torturar e dar sumiço nos
pobres é uma prática que vigora por meio de uma autorização de fato por parte
dos governos. No caso das manifestações, para manter sua imagem externa e
evitar também uma revolta generalizada, os governos conseguiram fazer passar o
“recado” para sua PM e que não querem fazer passar no que diz respeito à sua
atuação na Maré, na Rocinha, nos subúrbios do Rio e nas periferias de São
Paulo. Só mesmo esse Ministro de Polícia para não ver a enorme brecha para a
paz que haveria, e abrir mesas de negociação. Só mesmo a arrogância
potencialmente totalitária da Presidenta e dos setores majoritários do PT de
não fazer autocrítica sobre 10 anos de (não) políticas da juventude. O melhor
da juventude brasileira está na rua. O que foi feito nos governos Lula e Dilma?
Alguém sabe?
IHU On-Line - Disso decorreria que as
manifestações recentes estão permeadas por uma cultura do ressentimento?
Giuseppe Cocco - O único
ressentimento que eu vi (e vejo) é o que se encontra nas análises desses
“acadêmicos” que estão paradoxalmente desarmados teoricamente para entender o
que acontece e aconteceu. Descobrem que as categorias que usavam não servem
para nada e tentam desqualificar o que acontece e tentam exorcizar os trabalhos
teóricos que os anteciparam. O caso mais triste é o da Marilena Chauí. Numa
entrevista na Revista CULT, ela faz uma série de considerações infundadas sobre
o pensamento de Foucault, Agamben e Negri e começa declarando “ter levado um
susto quando descobriu que os meninos do MPL tinham usado as redes para chamar
pelas mobilizações”. Como se as redes fossem uma opção e não a nova base
material do trabalho e das lutas, a condição ontológica dentro da qual vivemos.
Esse descolamento entre o pensamento e a análise material (ou seja, o fato de
que quando ela fala de “classes” mobilize uma mistura estranha de sociologia
marxista ortodoxa com moralismo psicológico que pouco tem a ver coma teoria
spinozista dos afetos) explica talvez o fato de que ela não tenha se tocado
quando criminalizou os jovens que estão na rua, logo para a máquina mortífera
que é a PM do Rio (em agosto).
IHU On-Line - Como este quadro se relaciona
com o conceito de multidão, de Antonio Negri?
Giuseppe Cocco -
Totalmente. Os conceitos de trabalho imaterial e de multidão se mostram
totalmente adequados diante do que está acontecendo e confirmam a dimensão
pioneira dessas teorizações. O que temos nas ruas, sociologicamente, é o
trabalho imaterial metropolitano que luta sobre a mobilidade e a democracia ao
mesmo tempo. E essas lutas “fazem” multidão, constituem uma multidão de
singularidades que cooperam entre si, se mantendo tais. A “multidão” não é
positiva em si (como diz de maneira infundada a historiadora da filosofia
falando de Negri), mas é afirmação, constituição. Fora disso, o que observamos
é a fragmentação social, a perda de direitos. O movimento de junho nos mostra
que não precisamos voltar às grandes massas fabris para lutar. Pelo contrário,
“nunca antes na história deste país” houve um movimento tão forte e tão
autônomo, muito mais do que o novo sindicalismo do qual veio Lula.
Black Bloc ataca a repressão |
Do mesmo
jeito, quando publicamos, em 2005, GlobAL: biopoder e lutas em uma América
Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005), dizíamos que os novos
governos eram interessantes na medida que seriam atravessados pelos processos
de subjetivação — quer dizer, pelas lutas — capazes de construir uma
alternativa ao neoliberalismo e ao neodesenvolvimentismo. Dessa maneira, Negri
e eu antecipamos, por um lado, que as brechas do governo Lula teriam produzido
essa nova subjetividade e que esta não teria se reduzido ao lulismo. Por
incrível que pareça, o regime discursivo hegemônico no PT foi aquele de
comparar Lula a Vargas e, de maneira totalmente bipolar, de reduzir a
mobilização social à mobilidade estatística (a emergência de uma Nova Classe
Média). Pelo visto, quem é chamado a preencher esse vazio da teoria e da
política hegemônica no PT e no governo é a Polícia Federal.
_______________
[*] Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università
degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers
e em História Social pela Université de
Paris I (Panthéon-Sorbonne). É
doutor em História Social pela Université
de Paris I (Panthéon-Sorbonne).
Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. Coordena a
coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).
Black Bloc um movimento sem inserção nenhuma na massa, daí teorizar democracia direta....
ResponderExcluirNão tenho dúvida, se em 2014 o PT perder as eleições, eles desaparecem, os BB.
A relação do PT com os Black Bloc é ZERO. Aliás, o PT fez/faz intensa campanha CONTRA os Black Bloc por acreditar que sejam "massa alienada aparelhada/financiada pela oposição". Dizem até que é aparelhada por oposição EXTERNA também, o que não seria novidade... É só dar uma espiada nos posts sobre "mudança de regime"aqui no bloguinho. No Egito, p. ex., mesmo após o recente golpe militar apoiado pelos Black Bloc, eles voltaram às ruas para combater a Fraternidade Muçulmana que protesta CONTRA o golpe do qual foi vítima. Na Ucrânia a oposição interna e externa importou milhares de Black Bloc POLONESES para participar da "mudança de regime" via manifestações públicas. No Brasil a tentativa de "mudança de regime" certamente será do tipo "golpe paraguaio" só que via JUDICIÁRIO (STF) e esse movimento já começou com a FARSA das condenações de ZD e Genoíno na AP 470
ExcluirPortanto a existência e/ou desaparecimento dos Black Bloc não tem NADA a ver com o PT ganhar ou perder eleição 2014.