WikiLeaks mostra que governo Bush mentiu, sabendo que mentia, aos norte-americanos e ao mundo.
1/11/2010, Ellen Knickmeyer[1], The Daily Beast - (apud Glen Greenwald, Salon; também distribuído por WikiLeaks, pelo Twitter )
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Nas primeiras horas da manhã de 22/2/2006, um comando jamais identificado bombardeou a cidade de Samarra, no norte do Iraque. As bombas destruíram a cúpula dourada de um reverenciado local de orações dos sunitas.
Poucas horas depois, dirigia pelas ruas de Bagdá e assistia ao país mergulhar na guerra civil. Era então redatora-chefe da sucursal do The Washington Post. Parti, com colegas jornalistas iraquianos e norte-americanos para Sadr City, a grande favela que cresce nos arredores de Bagdá. Vimos centenas de jihadistas sunitas mascarados e vestidos de preto, erguendo os fuzis AK 47 e gritando por vingança, no que seria o primeiro momento de uma campanha de assassinatos, tortura e vingança sectária.
Nos dois dias seguintes, estive várias vezes no necrotério de Bagdá, onde vi famílias sunitas tentando encontrar corpos de mortos pelos xiitas. O atendente, no necrotério, dizia a mim e àquelas pessoas, que tínhamos de ter paciência; mais de mil cadáveres haviam sido recolhidos depois de a mesquita ter sido bombardeada e as autopsias avançavam muito lentamente.
A versão divulgada pelo então secretário de Defesa Donald Rumsfeld e seus principais assessores foi outra. Não houve bombardeamento da mesquita, não houve mortos, não houve cadáveres. Segundo ele, os jornalistas como eu, havíamos mentido.
“Não há violência sectária no Iraque”, declarou o comandante dos EUA no Iraque, general George Casey, em programa de televisão. Disse também que nenhuma família de soldado norte-americano se preocupasse. Guerra civil? “Não vi guerra civil. Não há, com certeza, nem haverá em futuro próximo, com certeza”, disse Casey, negando o início da guerra entre grupos religiosos. [Há filme da entrevista, em : ]
Casey disse que também percorrera Bagdá, de carro, depois das explosões na mesquita de Samarra, e não vira cadáveres pelas ruas: “vi uma cidade normal, agitada como sempre, em plena atividade econômica. As lojas estão abastecidas até o teto, as ruas cheias de compradores.”
Donald Rumsfeld, em conferência de imprensa que o Pentágono convocou, disse que os relatos da imprensa norte-americana sobre mortos – como o meu, que estimei em 1.300 o número de mortes ocorridas imediatamente depois das bombas contra a mesquita, baseada no que vi no necrotério de Bagdá, em entrevistas que fiz com sunitas sobreviventes e com altos oficiais norte-americanos e iraquianos – não passavam de “matéria jornalística escrita para exagerar”, “jornalismo sensacionalista”. Disse também que “estamos com perfeito controle sobre a situação”. E tudo estaria, como disse, “acalmando-se”.
Para o então secretário de Defesa Donald Rumsfeld e seus principais comandantes, o que eu vira jamais acontecera. Nem assassinatos, nem mortos, nem cadáveres no necrotério. Nada.
Em Bagdá, os jornalistas norte-americanos eram atacados não só pelos sunitas iraquianos, mas também, pelo menos verbalmente, pelos civis e comandantes militares norte-americanos.
Depois dos ataques à mesquita, passei pela dramática experiência de assistir a reuniões semanais com jornalistas, para briefings, na Zona Verde – aquela loucura que se encenava sempre às 4h da tarde –, e vi o porta-voz militar repetir que tudo ia muito bem, o que implicava que não havia problema algum em haver pelas ruas cadáveres de pessoas executadas e mutiladas. O problema seriam os jornalistas, como eu.
Afinal, graças a WikiLeaks, conhecemos hoje a plena extensão das mentiras dos comandantes militares e políticos dos EUA. Todos mentiram, sabendo que mentiam, ao povo, aos soldados norte-americanos e ao mundo, desde o primeiro momento em que a invasão dos EUA ao Iraque começou a fracassar.
Mas os próprios soldados norte-americanos, que arriscavam a vida diariamente, também viam e sabiam o que estava acontecendo e, eles mesmos, estavam documentando o que viam.
Lidos como foram escritos, os arquivos agora divulgados por WikiLeaks mostram instantâneos quase surreais, estarrecedores, do caos que se instalou no Iraque imediatamente depois dos ataques contra a mesquita de Samarra dia 22/2. Em apenas poucas horas, já havia relatos dos soldados, sobre ataques de sunitas armados; tiroteios pelas ruas entre grupos de milícias armadas sunitas e xiitas; ataques com foguetes lança-granadas contra mesquitas; assassinatos e sequestros.
Mais tarde, no mesmo dia, uma patrulha de soldados norte-americanos surpreendeu membros de uma milícia, que empilhavam cadáveres numa calçada. Os milicianos fugiram, deixando os soldados ante a cena terrível: “corpos alvejados no rosto, ainda quentes”, como se lê num dos arquivos.
O Iraque não estava “se acalmando”, como Rumsfeld diria depois. Diferente disso, estava sendo iniciada uma terrível guerra sectária e, nos poucos meses seguintes, todos os esforços do governo Bush, para convencer o mundo de que tudo não passava de mentiras dos iraquianos, foram-se tornando cada vez mais frenéticos, enquanto o massacre prosseguia.
Segundo resumo dos arquivos vazados por WikiLeaks, no The New York Times, em apenas um mês, em 2006, chegou a haver mais de 3 mil mortos.
Ano passado, participei de um seminário na Escola de Governo John F. Kennedy, de Harvard, organizado por uma ex-comandante militar de Bush no Iraque, e ouvi-a dizer, como se fosse estatística igual a tantas outras, que só num dia, imediatamente depois do ataque à mesquita de Samarra, houve mais de 1.000 mortos.
Mas os documentos vazados por WikiLeaks mostram também que Casey e Rumsfeld sabiam, necessariamente, de tudo que estava acontecendo, posto que os relatórios que hoje conhecemos eram redigidos para eles e foram encaminhados para eles. Apesar de tudo que disseram os mais altos comandantes militares dos EUA, os jornalistas em Bagdá não mentiram.
Nota:
[1] Ellen Knickmeyer é jornalista. Foi redatora-chefe da sucursal do Washington Post em Bagdá e no Cairo. Antes, foi redatora-chefe da Associated Press para a África Ocidental. Em 2010, formou-se pela Escola de Governo Kennedy, de Harvard.