terça-feira, 9 de novembro de 2010

EUA: Comício-risadas-sanidade mental na praça central da cidade [1]

Janet Malcolm, New York Review of Books 25/11/2010, vol. 57, n. 18 – Comedy Central on the Mall - Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

31/10, Peter Clothier, escritor e professor aposentado de 74 anos, postou um artigo em seu blog – The Buddha Diaries – sobre o dia maravilhoso que ele e a esposa, Ellie, passaram no Mall em Washington, participando do comício-risadas “Comício para Restaurar a Sanidade e/ou Medo” que Jon Stewart e Stephen Colbert comandaram de um palco gigante, do meio-dia às 3h da tarde.



“Ficamos, sem conseguir dar um passo, por umas duas horas, cercados de gente que, como nós, saíra de casa para ir até lá. Não vimos nada nem ouvimos coisa alguma do que se passava no palco. Foi SENSACIONAL!”, escreveu Clothier. 

Ele e a esposa levantaram às 5h da manhã, para pegar o trem das 6h45 que os levou a Washington. O trem deveria chegar ao destino a tempo de permitir que eles nada ouvissem nem vissem desde o começo, por três horas. Mas o trem atrasou, porque todas as estações do metrô de Washington ficaram perigosa e horrivelmente superlotadas. 

“O Metrô não se preparou para tamanha invasão” – escreve Clothier. A estação parecia “cenário de filme de fim do mundo. Todos em longuíssimas filas, sorridentes, conversando. Os trens paravam, mas, de tão cheios, nem abriam as portas. Exceto um homem que se pôs a berrar e protestar furiosamente, e foi imediatamente aspirado para dentro de um vagão, para acalmar-se em movimento, todo mundo segurou a onda e ninguém se comportou mal”. 

Joseph Ward, aluno da Universidade de Illinois, viajou a noite toda, até que o ônibus o depositou no inferno do metrô em Washington. Nem lá – escreveu ele no Daily Illini, onde é editor assistente – “achei jeito de me irritar. Ninguém, naquele dia, nem que quisesse, conseguiria agir como idiota.” Descreve a multidão de “jovens, velhos, negros, brancos, yuppies e veteranos de guerra empurrando veteranos de guerra em cadeiras de rodas, gente que sabia que todos ali sabíamos por que todos estávamos ali”. 

Quando afinal Ward conseguiu entrar num vagão do metrô, “cheio tão além de qualquer conta que, às tantas, o condutor recomendou, pelo alto-falante, que ninguém empurrasse, beliscasse, bolinasse ou entrasse em pânico, porque o vagão já estava lotado acima do limite de segurança. Tive ímpetos de responder que o condutor não entrasse em pânico, porque ali viajavam cidadãos mentalmente sãos do mundo ocidental, e que nunca, nem que o trem explodisse de gente, aquele condutor conseguiria semear qualquer medo ou insanidade naquela nossa irmandade humana.” 

Depois de sair do trem, Ward revisou a opinião sobre o condutor (“Bem feitas as contas, talvez tivesse alguma razão”). “Cheguei a temer por minha vida, quando a multidão empurrou-me até 5 cm do trem que começava a ganhar velocidade, saindo da estação”. No local do comício, Ward, como os Clothiers – praticamente todos os que lá se reuniam – não conseguiu ouvir nada, nem via o que se passava no palco. (Havia apenas alguns poucos, nem de longe suficientes, pequenos monitores de televisão espalhados pela Praça.) Houve um momento em que quase lhe faltou a firme determinação de não enlouquecer e manter a sanidade, mesmo que ao preço da própria vida. (“As pessoas estiveram a um passo do pânico, apertadas umas às outras, sem conseguir mover um pé.”) Mas a história acabou em glória, com elogios aos cantores que se apresentaram e aos quadros de comédia que nem Ward nem ninguém conseguiu ver ou ouvir. 

Pessoalmente, não passei pela provação do metrô – viajei para Washington na véspera do comício-risadas-sanidade, e tive tempo de ir a pé até a praça. E sobrevivi bem ao teste mortal da multidão apertada. Depois de alguns minutos, ali, com o corpo colado aos corpos das pessoas mais radicalmente sãs do mundo ocidental, em proximidade e convivência radicalmente próxima, consegui voltar para a calçada e reuni-me a um grupo de sãos que se sentaram nos degraus da National Gallery. Dali se via a falange de banheiros químicos em torno da praça e, depois, a própria praça, um oceano de pessoas sãs que não conseguiam mover-se para lado algum. 

Todos com quem conversei durante e depois do comício-risadas-sanidade disseram que foi perfeita maravilha. Foi como se Stewart, que é homem solar, tivesse partilhado sua aura solar por toda a Praça. Nada ver e nada ouvir não mudou coisa alguma. O que importava era ter estado ali, ativamente ali: para muitos, foi “evento histórico”. Não há dúvida que, reunidos, éramos mais de 200 mil norte-americanos mentalmente sãos. 

Nos minutos finais do comício, Stewart fez um discurso (vi e ouvi no dia seguinte, pela internet, em C-SPAN) – “Acho que devemos nos conceder um momento para alguma sinceridade, se todos concordarem” –, no qual explicou o motivo pelo qual convocara aquele comício, para o caso de alguém ainda não saber. Stewart confirmou que todos ali haviam viajado até Washington e, em Washington, até a praça central da cidade, para nos festejarmos, nós mesmos, por nossa decência, nossa racionalidade humana. Estávamos, todos, numa sessão gigante de nos olhar num mesmo espelho com olhos de prazer, de nos vermos bonitos. 

Para ilustrar nossa boniteza coletiva, Stewart usou a imagem de carros entrando num túnel, um depois do outro, e os motoristas, todos gentilíssimos, cedendo a passagem: “Vá, vá, por favor! Eu espero! Vá, vá, faço questão.” “Claro que, na fila, sempre aparecerá o imbecil que atropelará quem estiver à frente e passará.” Mas o imbecil é raro, é minoria. Todos nós, os nós que não somos aquele imbecil, fazemos a coisa certa:
Sabemos instintivamente, como americanos, que, se queremos atravessar esses anos escuros e voltar a tempos mais claros, temos de trabalhar juntos. A verdade é que a escuridão não desaparecerá do mundo. Às vezes, a luz no fim do túnel não é a Terra Prometida. Às vezes, é New Jersey.”

Bela frase. Mas quer dizer o quê? Como podemos trabalhar unidos num carro, num túnel? 

O público que assiste Stewart e Colbert pela televisão é predominantemente de esquerda, mas o comício-risadas-sanidade que organizaram foi suprapartidário. “A maioria dos norte-americanos não vivem a vida só como Democratas ou Republicanos ou de esquerda ou conservadores”, disse Stewart. 

Os norte-americanos vivem a vida como quem está sempre alguns minutos atrasado para fazer alguma coisa que não quer fazer. Mas fazem. Coisas impossíveis todos os dias, que só são possíveis porque somos feitos de pequenas, razoáveis concessões. 

Que concessões? (Mas... as concessões já não nos puseram nos braços da política-zero, turva, de George W. Bush via Ralph Nader, em 2000?) 

Stewart não fez qualquer referência às eleições então próximas, nem culpou a direita pela escuridão que hoje cobre os EUA. 

Culpou a imprensa – “geradora perpétua de conflitos e de medo, que nos espanca, sem parar, 24 horas por dia, nos comentários e noticiários de política” – por tornar as coisas sempre piores do que seriam sem a imprensa. “A imprensa só faz amplificar os ruídos dos ratos. Nessa barulhada, ninguém mais ouve coisa alguma que se aproveite!” Disse e continuou falando:
“Há terroristas e racistas e stalinistas e teocratas, mas são títulos que não se podem atribuir sem mais nem menos, sem examinar os currículos! O sujeito tem de fazer por merecer! Não saber ver diferença alguma entre racistas reais e doidos de passeata de “Tea Party”, ou entre salafrários reais e Juan Williams ou Rick Sanchez é um insulto, não só a essa gente quanto, também aos autênticos racistas que tanto suam nos jornais e televisões para implantar o ódio.”

David Carr, depois de citar essas palavras de Stewart no The New York Times de 1/11, revelou uma verdade brutal: “Com todo o respeito aos Srs. Williams e Sanchez, pouca gente sabe ou tem interesse em saber quem sejam”. Lembrou também que
“A maioria dos norte-americanos não assiste aos ou não crê em canais a cabo. Mesmo em noite de boas notícias, cerca de cinco milhões de pessoas, no máximo, sentam-se para assistir à guerra entre os canais a cabo; menos de 2% dos norte-americanos. As pessoas têm medo do que veem nos canais pagos e assemelhados, não do que Keith Olbermann disse ontem, ou do que Bill O’Reilly dirá, no revide.”

Claro, as 200 mil pessoas que acorreram ao Comício para Restaurar a Sanidade e/ou o Medo estão entre as que assistem às televisões pagas – sobretudo ao “The Daily Show”, de Stewart e ao “Colbert Report”. Os roteiristas sabem disso, e o Comício estava cheio de cartazes com referências e alusões a frases dos dois programas, que só o público daqueles programas entenderia. Quem, se não assistisse regularmente ao programa de Colbert, saberia o que fazia ele lá, sobre o palco, fantasiado, falando como doido e ensinando a massa a morrer de medo? E Stewart levou ao Comício uma versão suave da persona que se conhece do “Daily Show”, onde é sempre muito mais cáustico do que se viu ‘ao vivo’.

Surpresa, na quantidade de pessoas que acorreram ao Comício, foi que tantos tenham concordado em assistir ao comício na praça, adiando o verdadeiro prazer de assistir depois, o replay, pela televisão. O Comício também expôs todos ao risco de uma terrível decepção. Stewart e Colbert são seres de televisão, habitantes do mundo da televisão. Vê-los em carne e osso, ou num monitor precário poderia gerar alguma decepção na multidão, a suspeita de inautenticidade, talvez, mesmo, algum tipo de sensação de que os apresentadores teriam transgredido um código já bem conhecido de todos, e aceito.
“Reunião incrível, na praça, hoje!”, disse Stewart, depois de exibir clips de “histórias reais de irracionalidade momentânea”, como a do iradíssimo comissário de bordo, que, de raiva, saltou do avião depois de um passageiro tê-lo destratado. Stewart curvou-se ante a multidão e prosseguiu, “Mas acho que nós todos sabemos que pouco importa o que digamos ou façamos aqui nessa praça, hoje. O que importa é o que os jornais e a televisão digam sobre o que digamos ou façamos aqui hoje.”
 
Nos seus respectivos programas de televisão, apresentados depois do horário nobre, Stewart e Colbert satirizam brilhantemente os noticiários de televisão e os âncoras dos programas de noticiário político. No Comício-risadas-sanidade, tiveram de enfrentar, de início, a falta de comentaristas a serem satirizados. Colbet optou por encarnar, fantasiado, uma entidade que corporificava o próprio medo irracional (Stewart: “FDRoosevelt disse certa vez ‘Só temos a temer o próprio medo’” / Colbert: “Sim, mas imediatamente, doze anos depois, caiu morto.’”) De fato, o que se viu na praça foram gestos que mais sugeriam a comédia e a piada, do que a própria comédia. 

Se há coisa de que a esquerda norte-america pode orgulhar-se é o seu talento para inventar respostas irreverentes. Inesquecível, para quem tenha visto no Comício-risadas-sanidade de ontem, o cartaz em que se lia “Clinton também mentia muito e ninguém morreu por causa disso!” 

Aqui reúno alguns exemplos de outros cartazes exibidos no Comício pela Sanidade e/ou Medo:

·        Só temos a temer o próprio medo (mas cuidado com escorpiões)
·        Moderação ou Morte! 
·        Judeus Contra esse Negócio de Meter Hitler em TUDO
·        Ateus pró-Masturbação
·        Muçulmanos gays da Malásia, com Sarah Palin
·        Sabe quem torcia pelos White Sox? HITLER!
·        Pela segregação entre cabeça e cu

Dia 2/10, participei da manifestação “One Nation Working Together” [Uma só nação trabalhando unida], no Lincoln Memorial, organizada, dentre outras entidades, por sindicatos (NAACP, AFL-CIO), pelo Sierra Club e apoiada por grupos entre os quais a National Urban League, a National Baptist Convention, a Força Tarefa de Gays e Lésbicas [Gay and Lesbian Task Force] e o Partido Comunista dos EUA. Os cartazes, ali, eram diferentes:

·        Melhores empregos JÁ!
·        Fim à ganância das corporações!
·        Igualdade para gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros!
·        Pela alternativa do “único pagador” na Saúde!
·        Saiam de casa e votem em Democratas! 

A manifestação do dia 2/10 foi sóbria. Habia pouca gente (Observei várias minorias étnicas e famílias pobres com crianças.) Ouvia-se perfeitamente o que diziam os oradores (que apareciam, perfeitamente visíveis e audíveis em imensos monitores de televisão estrategicamente distribuídos); a maioria dos oradores pareciam sinceros e intimidados. Eram professores, sindicalistas, secretárias, veteranos de guerra, carpinteiros, trabalhadores da construção civil e estudantes e garçons; e alguns poucos políticos como Al Sharpton, que falou bem. Mas quando exortou o público a votar – “Melhor não descuidarmos do exame de meio de ano!” – só se ouviram aplausos muito tímidos. 

Andando de volta para a estação de trem da Constitution Avenue, meu coração encheu-se de entusiasmo ao ver um homem metido numa elegante e elaborada fantasia de Guarda do período colonial. Andei até ele e perguntei que papel representara no Comício-risadas pela Sanidade. Recebi de volta o mais espantado e incrédulo olhar que jamais vi. Explicou-me que é guia turístico, em tourspela Washington histórica (8/11/2010, 8h35).

COMENTÁRIO de um leitor:


Jonathan Rimorin 7/11/2010 02:24 PM
Minha experiência foi bem parecida com a sua, Ms. Malcolm. E também consegui lugar nos degraus da National Gallery! Disse aos meus invejosos amigos cá da Costa Oeste que eles provavelmente viram mais do Comício, do que eu, que estive lá. Mesmo assim, a experiência de passar algumas horas imerso em tanta sanidade e cercado de tantos norte-americanos sãos foi, pra mim, um tônico!

Nota:[1] Há vídeos em:


 e dentre muitos outros do YouTube

e Cat Stevens (quase) canta


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.