quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Todos perfilados ante o Decididor-em-chefe

11/11/2010, Pepe Escobar, Asia Times Online - All hail the decider-in-chief - traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Se se conta mentira suficientemente ampla e repete-se sempre a mesma mentira, as pessoas acabarão por acreditar (...). A verdade é inimiga mortal da mentira e assim, portanto, a verdade é inimiga mortal do Estado. 
(Joseph Goebbels - Ministro da Propaganda Nazista)

No mesmo dia em que o presidente dos EUA Barack Obama chegou a Jacarta, Indonésia, acionando a ignição do próprio charme para reiniciar a busca (já fracassada?) de meios para “construir pontes” com países muçulmanos, o ex-presidente George W Bush – que foi o primeiro a queimar todas as pontes – chegou a uma livraria Borders a cerca de um quilômetro de sua casa em Dallas, Texas, primeira parada da longa marcha para promover as 481 páginas de seu livro de memórias Decision Points. 

Para incontáveis almas inteligentes em todo o mundo, juntar na mesma frase as palavras “Bush” e “livro” exige que se suspendam as regras da racionalidade. O impossível acontece. Independente dos méritos dessa saga escrita por não se sabe quem, esse “imperador bebezão” (copyright Gore Vidal) surfará sem dúvida a onda da adulação da mídia. Já antes de o livro ser publicado, todos foram informados – embora nem todos tenham acreditado – que o delinquente tem umiPad, surfa na internet e é ávido leitor de Deus – via a Bíblia e/ou Rupert Murdoch. A Bíblia e o Wall Street Journal; verdadeiro recorde para um homem que admitiu no ginásio que, na vida, só lera dois livros. 

Primeira coisa: telefone para o meu advogado

Alguma dúvida sobre o quão doce e sabiamente o Grande Decididor agiu dia 11/9? As linhas seguintes aplacarão qualquer angústia metafísica: “O primeiro avião podia ser acidente. O segundo foi definitivamente ataque. O terceiro foi declaração de guerra (...) Meu sangue ferveu. Descobriríamos quem fizera aquilo e chutaríamos a bunda deles (...).”
E chutar bundas, sim, ele chutou, não só como bombardeador-em-chefe; também como torturador-afogador-em-chefe. Bush falou e quem escreveu aquelas memórias anotou que mandou “os experts da CIA fazer uma lista de técnicas de interrogatório. Por ordem minha, o Departamento de Justiça e os advogados da CIA examinaram a lista, do ponto de vista da legalidade. O programa de interrogatórios estimulados está em perfeita harmonia com a Constituição e com todas as leis aplicáveis, inclusive as que proíbem a tortura.” 
Obama foi professor de Direito Constitucional. Seria maravilhoso conhecer sua opinião sobre aquela lista. Mas o mundo já sabe que o advogado de Bush, Alberto Gonzales, definiu como “antiquadas” e “obsoletas” as Convenções de Genebra de 1947 sobre direitos de prisioneiros de guerra. 
Ninguém duvide de que o imperador bebezão insistirá nessa linha de defesa ao longo de toda a avalanche de publicidade que acompanha o livro – como já se viu na primeira entrevista exibida pelo canal NBC na 2ª-feira à noite. A linha de defesa é a velha “só cumpri ordens” – nesse caso, ordens dos subordinados. 
Perguntado sobre por que tratou como legal e autorizado o afogamento-tortura de prisioneiros interrogados, disse ele: “Porque o advogado disse que era legal. Disse que não se incluía na proibição da Lei Anti-tortura [ing. Anti-Torture Act]. Não sou advogado. Você tem de confiar no que o pessoal diz. Eu confio.” 
Os norte-americanos e o mundo devem ser gratos ao advogado de Bush, John Yoo; têm de agradecer também a Abu Zubaydah. Conforme o novo evangelho do Decididor, “Sua interpretação do Islã é de que só tinha de suportar o interrogatório até certo ponto. O afogamento foi técnica escolhida para ajudar os prisioneiros a chegar logo até aquele ponto, respeitarem o mandamento religioso e, então, poderem cooperar.” Assim falou Zubaydah. Bush anotou: “É assim que se faz, em nome de todos os irmãos.” 
“Chutar a bunda deles” foi logo substituído “faça exatamente isso, puta que o pariu”, quando a CIA pediu autorização a Bush para afogar-interrogar 183 vezes Khalid Sheikh Mohammed (KSM), suposto “principal cérebro” dos ataques de 11/9. (Os cérebros da Inquisição Espanhola – inventores incontestes da tortura del agua – descansem em paz; ainda são detentores do copyright.) E há também aquela conversa segundo a qual a tortura-afogamento não seria problema, senão pelo fato de que não mudou nada. Em artigo publicado em 2008 na revista Vanity Fair, um ex-agente da CIA disse que 90% do que KSM entregou foi “só merda”; para ex-analista do Pentágono, a informação que KSM entregou “não gerou inteligência acionável”. 
Paz, sahib
A Guerra do Iraque era de tal modo já decisão tomada antes de qualquer fato gerador, que o anúncio jamais teria sonoridades e belezas de frase de Faulkner. Vejam como se saiu o infeliz que taquigrafa o que Bush fala: “Virei-me para [o ex-secretário da Defesa] Don Rumsfeld. ‘Senhor Secretário’, disse eu, ‘em nome da paz do mundo e para defender os interesses e a liberdade do povo iraquiano, ordeno-lhe formalmente que ponha em execução a Operação Liberdade Iraquiana’. Que Deus abençoe os soldados.” 

Leitores já cegos e obnubilados – iraquianos e outros – talvez conheçam outras interpretações para “paz” e “liberdade” nesse contexto. O imperador bebezão insiste que Saddam rejeitou “todas as chances” de evitar a guerra. A verdade é exatamente o contrário disso: Saddam Hussein propôs exilar-se sem qualquer exigência, em março de 2003; Washington rejeitou a proposta de Saddam. 

Seja como for, Saddam “tinha segredos a esconder, tão importantes que insistiu em fazer guerra para defendê-los. Assim sendo “eu não podia correr o risco de deixar que um inimigo jurado  dos EUA continuasse a ocultar suas armas de destruição em massa”. Em vez de dar um  telefonema a Hans Blix, inspetor chefe da supervisão de armas da ONU, ou informar-se sobre o depoimento de Hussein Kamel, desertor iraquiano que disse aos inspetores da ONU que não havia tais armas no Iraque desde 1995 – o decididor-mor optou por “Choque e Horror”.

Em carta que o Filho “rabiscou” para “Papai”, naquele mesmo dia, lê-se que, sim, todos sabiam que a decisão já estava tomada antes de qualquer fato gerador: “Apesar de eu já ter resolvido usar a força, se necessário, para libertar o Iraque e livrar o país das armas de destruição em massa, foi decisão emocional, na hora”. Nem interessa saber o que foi, porque foi missão que Deus lhe dera. “Rezo para que só morram poucos. O Iraque será libertado. O mundo será mais seguro.”

O imperador bebezão admite, pelo menos, que sua resposta ao furacão Katrina em 2005 pode ter parecido “não só errada, mas inaceitável”. Mas, bem feitas as contas, Ele estava certo: “O problema não foi eu ter tomado decisões erradas; o problema foi ter demorado a decidir”. Demorou tanto que o Katrina valeu-Lhe “o pior momento” de seus oito anos imperiais. Não foi o 11/9. Não foi a destruição do Iraque. O pior foi ouvir o rapper Kanye West dizer “George Bush não gosta de negros”. Ai. Magoou.

Desnecessário lembrar que, de agora em diante, todas as atrocidades – crimes capitais, infrações, transgressões e abuso de poder nos mais altos graus travestidos em parágrafos de redator evangelista não identificado – serão neutralizadas até o dia do Juízo Final, numa maratona de entrevistas, sessões de autógrafos e poses para fotógrafos; e dia 16/11 inaugura-se em Dallas o “Centro Presidencial Bush”. O New York Times, por exemplo, não se atreverá nem a sugerir que afogamento em pia poderia ser considerado tortura.

É, sim. O duplifalar é a lei da terra. Guerra é paz. Verdade é mentira. Invadir é libertar. Resistir é atacar. Não saber o que fazer é decidir. E o imperador bebezão não será visto no único cenário que, para muitos, seria o único que lhe corresponde de pleno direito: o Tribunal Internacional para Crimes de Guerra em Haia
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.