M K Bhadrakumar |
9/2/2011, *M K Bhadrakumar, Asia Times Online
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
O torvelinho no Egito oferece rara oportunidade para que se avalie a linha básica das políticas regionais do Irã. Deixando de fora a retórica, o que vem à mente é a grande ironia de, hoje, Irã e EUA estarem do mesmo lado da cerca nos desenvolvimentos do Egito e, como se fosse pouco, fazendo companhia a Turquia e Síria.
Os quatro países exigem “mudança de regime”. Ainda mais estranho é o campo dos revisionistas, que procuram justificativas para uma retirada, da situação revolucionária avançada para uma posição reformista, no Egito: aí, os surpreendentes parceiros de leito são Israel, Arábia Saudita, China e Rússia.
EUA e Irã foram ambos surpreendidos pela irrupção de fúria na sociedade egípcia. O Líder Supremo do Irã Ali Khamenei admitiu sinceramente que “esse evento miraculoso (...) deixou sem fôlego dois mundos: o ocidente e o mundo islâmico”.
Teerã estima que Washington está reagindo, mais do tentando calibrar ou controlar os eventos. Pelo que se pode ver, Washington tampouco suspeita que Teerã tenha tido qualquer envolvimento em questões revolucionárias realmente sérias no Cairo.
Teerã discorda de Moscou, Pequim
O Irã distanciou-se claramente das teorias conspiracionistas que apareceram nos jornais chineses e russos, segundo as quais o que se via acontecer nas ruas do Cairo seria semelhante a mais uma revolução “de cores”. O Global Times chinês publicou editorial sobre a “nova onda de revoluções ‘coloridas’ que varre o Egito”.
O noticiário russo Novosti publicou entrevista com destacado intelectual arabista, Anatoly Yegorin, diretor do Instituto de Estudos Orientais da Academia Russa de Ciências, que não duvida de que “os americanos estão operando as manivelas [por trás dos eventos de rua no Cairo]” (...) “A situação é complicada, é claro, porque os manifestantes não são os únicos responsáveis pelos tumultos. Uma força externa, com fortes interesses no mundo árabe, tenta solucionar à sua moda os problemas da Região”.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov reagiu duramente à conclamação de Washington pela imediata renúncia do presidente Hosni Mubarak: “O Egito é nosso parceiro estratégico e país-chave no Oriente Médio. Por tudo isso, não somos indiferentes ao que acontece ali (...). Entendemos que não há utilidade alguma em produzir fórmulas externas, ou fazer conclamações. – Só as forças políticas egípcias devem manifestar-se”.
Lavrov manifestou-se um dia depois de o presidente Obama dos EUA ter dito que as reformas no Egito “devem começar agora”. Rússia e China também discordaram do secretário-geral da ONU Ban Ki-Moon, o qual, em visita a Berlin na 3ª-feira passada, exigiu “transição” imediata no Egito e disse que a agitação popular no Cairo deve levar a “reformas profundas, não a repressão”.
O embaixador da China na ONU Li Baodong reagiu, dizendo que a crise no Egito seria “assunto interno que tem de ser resolvido pelo povo egípcio”; e o embaixador russo Vitaly Churkin praticamente ‘demitiu’ Ban: “São questões extremamente delicadas que devem ser decididas pelos Estados soberanos. A ONU deveria cuidar de suas muitas obrigações, que não incluem enfiar o dedo no olho de líderes políticos.”
Outra vez, o presidente Dmitry Medvedev da Rússia telefonou a Mubarak na 4ª-feira para expressar a esperança de que “a crise política seja resolvida pacificamente” e “nos limites da lei”. Em claro contraste com a posição ‘pró-Mubarak adotada por Moscou e Pequim, Teerã abraçou com decisão a posição de que Mubarak deve deixar o poder e partir.
Diferente de Rússia e China, que tem enormes interesses investidos no Egito, o Irã nada tem a perder e muito a ganhar se acontecer uma troca de regime no Egito, consideradas as difíceis relações entre Cairo e Teerã ao longo dos últimos 30 anos, desde a Revolução Iraniana em 1979.
O Irã adota posição “secular”
Apesar de tudo, a posição iraniana é cheia de nuanças. Nas orações da 6ª-feira, Khamenei apresentou a posição do Irã. Para ele, a revolução egípcia é movimento nacionalista. E em referência surpreendente, falou do legado do ex-presidente Gamal Abdul Nasser do Egito.
Khamenei analisou o levante em termos predominantemente seculares, mais do que por algum prisma ‘islâmico’. Concluiu que os eventos no Egito terão consequências geopolíticas de longo alcance. Se, de algum modo, apontou para alguma afinidade entre as aspirações da Revolução Iraniana de 1979 e do levante no Egito, não o fez em termos de afinidades islâmicas, mas da perspectiva da experiência iraniana com táticas e estratégias revolucionárias.
Kamenei reconheceu que “Não seria realista nem lógico esperar que os eventos da grande revolução islâmica no Irã há 30 anos pudessem repetir-se exatamente no Egito, na Tunísia ou em qualquer outro país islâmico.”
Em termos gerais, Khamenei viu o levante como “movimento em busca de liberdade”, “explosão de revolta sagrada” e observou até que a posição que o exército egípcio decida tomar será decisiva. A parte mais interessante da fala de Khamenei é o que lá não apareceu: nenhuma menção à Fraternidade Muçulmana como representante da nação egípcia.
O que o Irã considera e calcula? O Irã parece ter concluído que os EUA não têm qualquer posição cristalizada, de longo prazo, para o “Novo Oriente Médio”. E cuida para não dizer nem fazer alguma coisa que Israel possa usar para acionar o espantalho de sempre, da ‘ameaça islâmica’. Em segundo lugar, o Irã parece estar satisfeito, sem alarde, por os EUA estarem tentando apostar na oposição no Egito, sem poderem mudar de posição, no curto prazo.
Em resumo, o Irã vê os EUA arrastados pelos acontecimentos, o que aumenta o nível de conforto do Irã porque, no mínimo, dá a Teerã mais tempo e espaço de manobra. Teerã não parece avaliar que haja qualquer ameaça imediata contra o regime na Arábia Saudita. Nas declarações dos iranianos vê-se bem claro o cuidado para não antagonizar os regimes árabes no Golfo Persa. Em pleno levante no Egito, o novo ministro das Relações Exteriores do Irã Ali Akbar Salehi chegou a dizer no Parlamento que sua política externa visará, como objetivo prioritário, reforçar os laços entre o Irã e os regimes árabes vizinhos.
Para o Irã, o “estado final” das manifestações no Egito ainda não está à vista. A fala de Khamenei pressupõe que o Egito esteja em fase de transição, mas ainda sem qualquer indicação confiável de como ficarão as coisas. Revolucionário experiente, Khamenei com certeza sabe que as revoluções têm o mau hábito de devorar os próprios filhos.
Contudo, o que mais interessa ao Irã nesse momento é que os atos dos EUA tenham alguma eficácia para conter Israel, cuja reação à situação no Cairo ainda não é clara, e nada impede que Israel tome o rumo da agressão bélica. E há outra questão a preocupar o Irã: a posição dos EUA em relação ao Egito será simples reação pontual, ou levará Washington a repensar toda a situação regional, sobretudo no que tenha a ver com a atitude dos EUA em relação ao Hezbollah e ao Hamás, os chamados “atores não-estatais”? De fato, o novo governo do Líbano, controlado agora pelo Hezbollah, é, muito mais, resultado do co-domínio construído por sírios e sauditas, do que resultado de ação do governo do Irã – e a influência do Irã sobre o Hamás também é limitada.
Todo o ambiente regional, em termos gerais, modificou-se a favor do Irã, muito claramente, ao longo da última quinzena. A questão nuclear saiu dos holofotes. Casualmente, o Irã ocupa agora a presidência da OPEP [Organização dos Países Produtores de Petróleo; ing. Organization of Petroleum Exporting Countries] e terá voz ativa no mercado de petróleo nesse momento volátil. Outra vez, seja qual for o “estado final” a que o Egito chegue, os eventos aproximaram muito Turquia, Síria e Irã. Os $30 bilhões em acordos comerciais entre a Turquia e o Irã assinados na 2ª-feira são estímulo importante nos esforços de Teerã para romper o bloqueio imposto pelos EUA.
O presidente Abdullah Gul da Turquia, homem muito próximo do regime saudita, visitou Teerã na 2ª-feira. O secretário-geral da Conferência Islâmica Ekmedleddin Ihsanoglu visitou Teerã semana passada. Obviamente, há ativas linhas de comunicação entre Teerã e Riad, e os sauditas e os estados do Conselho de Cooperação do Golfo têm razões para serem gratos ao Irã por não estar incentivando o fervor revolucionário na área.
Em suma, as prioridades do Irã são romper o cordão sanitário imposto pelos EUA no mutável ambiente regional e construir pontes com seus vizinhos no Golfo Persa. Na 2ª-feira, o jornal The Tehran Times reproduziu artigo do Khaleej Times (de Dubai), declarando que as causas do levante no Egito são “fatores econômicos”, não “movimentos ideológicos”. É como declarar que os países do Golfo, ricos em petróleo, com sociedades afluentes e em muito melhor situação econômica que o Egito, não correriam qualquer perigo de levante revolucionário.
Embaixador *M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira; serviu no Ministério de Relações Exteriores da Índia. Ocupou postos diplomáticos em vários países, incluindo União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.
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