quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A Princesinha do Carnaval




Publicado em 07/02/2013 por Urariano Motta* de Recife (PE)

A imagem da menina do último carnaval, eu pensei tê-la esquecido.

Dizem que uma imagem vale mil palavras. Bobagem, diz não. Entre tantas que cometi no carnaval que passou, do porta-estandarte de Banhistas do Pina, orgulhoso da sua tradição, ao desfile do Bloco da Saudade, com suas mulheres bonitas, mais um imenso galo ao fundo sobre a ponte, a mais bela é a que se mostra em cima desta coluna.

Ela ficou na memória, acredito, porque ela não era uma imagem. É uma pessoa. É uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha da imagem era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista.

Ela, a menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o seu almoço no prato. Talvez a mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de comer, assim como ocorre a todos nós em raras ocasiões. Quando o peito está contente, para que melhor alimento?

A princesinha, informa a foto, portava uma coroinha de lata, um vestidinho verde, umas trancinhas que caíam em graça pelos lados da coroinha.

O que a foto não diz é que as trancinhas elegantes davam na gente uma vontade de cheirar os cabelos da princesinha. Vontades assim dão na gente, de vez em quando, mas o adulto, escolado, sabe que a beleza, se tocada, pode reagir mal. Assim como um cão amarrado em corrente, que na infância enfiou os dentes na mão do colunista, bem lembro. Não que a princesinha fosse morder. Pelo contrário, ela ainda mais sorriria encabulada, penso. Mas morderiam este escrevinhador outros homens na multidão do mercado, porque deviam achar descabido um beijo em trança rebelde de uma criança negra. Coisa de pedófilo se aproveitando do carnaval, assim podia pensar a maldade do vulgo em forma de julgamento. Por isso eu a toquei com os olhos, que estavam encantados e úmidos de álcool e emoção, nessa mistura que vem no rosto e nem a disciplina mais férrea consegue esconder.

Então pedi a minha mulher, “tire por favor a foto da princesinha”. E o celular registrou. 

Eu não lembro agora o seu nome. É claro, eu lhe perguntei tudo, o nome, idade, bairro, quem eram os pais, essas perguntas idiotas de repórteres que primam pela objetividade. Ou seja, aqueles clássicos 5 burros Ws: Who, What, Why, Where, When, que traduzidos se mostram mais límpidos ainda na sua burrice: Quem, O quê, Por quê, Onde e Quando.

Meu Deus dos ateus, só não perguntei à princesinha, para minha salvação, se ela gostava de carnaval. Se gostava!... ela era um sorriso amplo, guardado, de menininha cuja beleza não é um esplendor, mas que faz a alegria e ternura da sua mãe. Isso, sim. Mas isso, sim, também, transmite felicidade e amor a quase toda a gente.

Eu queria falar tudo o que manda o coração para essa menina. Eu bem queria ser um homem feliz por dizer tudo o que ela inspira em um espaço tão breve, que será visto de passagem, entre um flash e outro da última notícia, entre a passagem de um bloco, de um maracatu, de um clube ou outro nas ruas. Por isso digo apenas, antes que esqueça, que o sorriso da princesinha era triste e feliz em um só movimento.

O triste vinha do seu modo de ser, ou da pequena experiência que ela já possuía da crueldade do mundo. E feliz, ainda assim, porque tão poucas vezes ela foi ou será princesa, uma princesinha, ainda que de mentirinha, sorrindo para alguém que a descobriu no meio da multidão. E feliz também ela era porque crianças não gostam de ser tristes, crianças retiram do maior golpe um instante para sorrir. Como agora, nesta imagem do carnaval que passou e permanece.

Então eu a vou chamar de Mariinha, quem sabe, princesinha Maricota, quando mais próprio seria chamá-la de Eutanasinha. Sim, uma pequenina eutanásia, porque no seu sorriso há um quê de matar sem dor a gente, ou de matar suave, que é uma forma de matar no coração que fala baixinho agora, enquanto o som dos clarins não toca mais alto: olha, a humanidade está na infância e ninguém vê.

É toda uma gente muito bárbara, princesinha, tão bárbara, que pensou tê-la esquecido no carnaval do ano que passou.

Dizem sempre e repetem até o cansaço que uma imagem vale mil palavras. Bobagem, princesinha. Difícil é encontrar a foto que expresse as mil palavras que o afeto dos mais bárbaros quer dizer.

Assim, façamos um acordo de paz provisória entre o que pretendia tudo falar e a tua imagem no mercado: feliz carnaval, Eutanasinha. O cheiro que não te dei vai nesta coluna.  

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Urariano Mottaé natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997).

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