domingo, 10 de fevereiro de 2013

Tunísia: “Terapia de choque e estratégia do caos”


(Primeiros elementos para compreender o assassinato de Chokri Belaïd, na Tunísia)

Multidão acompanha o enterro de  Chokri Belaïd
9/2/2013, Collectif Les déconstructeurs du virtuel, Túnis
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Tunísia e Egito passam por involução paralela e similar. Aqui, alguns traços que se observam nos dois países:

1 – Uma “revolução” virtual

Chokri Belaïd
Nos dois países, tudo mudou, para que nada mudasse: os ditadores – que jamais passaram de “ditados”, mais que “ditantes” – foram derrubados; houve eleições democráticas ; “islamistas moderados” viram-se no “poder”. Mas é bem claro que o poder real não está nas cadeiras que ocupam. No Egito, o poder real continua nas mãos do Conselho Supremo das Forças Armadas, que puxa todos os fios, sempre em contato direto com padrinhos e protetores em Washington. Na Tunísia, a situação é bem menos transparente, e a resposta à pergunta sobre quem “detém o poder real” é muito mais difícil. Digamos, para começar, que o poder continua com o cartel mafioso (negocistas, burocratas, policiais)  do antigo regime, alguns pilares do qual deixaram crescer uma barbicha.

2 – Terapia de choque

Os “poderes democráticos” brotados dessas “revoluções” têm em comum que são docilmente submissos às ordens dos que “dão as ordens”: o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a União Europeia, os EUA e as petromonarquias do Golfo. O conglomerado desses dadores de ordens só tem uma preocupação: impedir que os povos árabes (e os demais, claro) façam verdadeiras revoluções, que ponham nos eixos as respectivas sociedades, promovendo a justiça social e abrindo o caminho para que se exerçam os direitos fundamentais dos cidadãos em Estado de Direito. Para começar, que garantam aos próprios povos o usufruto soberano dos recursos energéticos que transbordam do subsolo dos respectivos países, e de outros bens comuns (água, terra, patrimônio [cultural] etc.).

A terapia aplicada tem várias faces:

a. Os governos lá instalados devem pagar totalmente e nos prazos marcados o serviço da dívida odiosa que herdaram dos ditadores/ditados derrubados, única condição absoluta, imposta para que lhes cheguem “liberados” outros créditos que só servem para endividá-los cada vez mais;

b. Os governos lá postos devem prosseguir no trabalho de “limpeza” no qual já trabalhavam os predecessores: liquidar os serviços públicos e os que os defendam; mais privatizações, mais riquezas do país entregues às multinacionais, mais implantação de estruturas de controle da população rebelde, a começar pelos assalariados sindicalizados e pela juventude precarizada (os “diplomados sem emprego”). Para mascarar o dejeto dessa “limpeza”, a solução encontrada é a “caridade islâmica” em substituição aos legítimos direitos sociais;

c. A sociedade tem de ser pacificada: algumas centenas de milhões de euros jorram, enviados pela União Europeia e por fundações USAmericanas, alemãs e outras, sobre a sociedade civil organizada, com um único objetivo: dirigir a sociedade no rumo de um processo de “justiça transicional” [1] que não questione o sistema que há.

Principal objetivo: impedir que a juventude diplomada ativa chegue algum dia ao nível da política real, vale dizer, da organização do povo para satisfazer as demandas por acesso à cidadania e ao usufruto dos bens comuns.

3 – Estratégia do caos

A estratégia hoje em marcha nos dois países é fundamentalmente a mesma posta em marcha na Grécia de 1967, na América Latina e na Turquia, na Itália (a “estratégia da tensão”) e no Líbano dos anos 1970 e 1980, na Argélia nos anos 1990, com ajustes táticos para adaptá-la a cada situação particular.

As principais armas dessa estratégia são:

a. A violência armada grupuscular manipulada – o que se chama de “terrorismo” – para semear o medo, desestabilizar as pessoas e fazê-las renunciar à luta pacífica, de massas, democrática e transparente. O objetivo é quebrar todas as estruturas (partidos, sindicatos, movimentos) capazes de frear a “liberalização” da economia.

b. Polarizar as correntes “ideológicas” nas quais se força o conjunto da sociedade a dividir-se, o que leva a uma lógica “de campos” entrincheirados que se excluem mutuamente e combatem-se violentamente.

Uma variante nova do “dividir para reinar”: por cima, uma burguesia “modernizante, laica, democrática” que se opõe a outra burguesia “conservadora, islamista, democrática”; por baixo, um povo “progressista, libertino, revolucionário” , que se opõe a um povo “tradicionalista,  intolerante, que se vai fascistizando”.

Em resumo: o único meio encontrado pelos aparelhos do poder real para perdurarem é a guerra civil, guerra de irmão contra irmão, de irmã contra irmã, de pais contra filhos, de “liberados” contra “os de turbante”,  mediante alianças entre exploradores e explorados, em nome de clivagens que nada têm a ver com as carências e necessidades reais ou com os interesses de classe do povo.

c. Manipular, manipulação diabólica, a dupla infernal complô-motim. No Egito, como na Tunísia, como na Argélia de 1988, a legítima revolta dos jovens precarizados é canalizada por redes mafiosas-policiais na direção de violências niilistas encapuzadas que se manifestam quando das aglomerações populares de massa. Objetivo: suscitar a demanda por um poder forte que garanta segurança. Mais recente exemplo: o surgimento de um “Bloco Negro” no Cairo, no 25/1/2013. Um “Bloco Negro” no qual a Polícia já se infiltrou, como também se infiltrou nos blocos negros de Gênova em 2011, de Montréal, de Toronto, de Londres, de Strasbourg ou de Heiligendamm.

d. Assassinatos predefinidos de personagens-chave, decididos e planejados pelas redes ocultas do poder real. Sempre simultaneamente atribuídos por uns aos outros, esses assassinatos visam a provocar clivagem irreversível na sociedade (vide “a”, acima).

O assassinato de Chokri Belaïd, como os assassinatos de Tahar Djaout, Abdelkader Hachani, Mohamed Boudiaf e tantos outros (Liabes, Boucebsi, Flici, Mahiou, Merbah, Belkaid, Alloula, Bouslimani e Cheikh Sahraoui) na Argélia, inscreve-se nessa estratégia.

Os movimentos sociais, progressistas ou revolucionários têm de estar conscientes e ter plena clareza sobre essa estratégia já posta em operação. Ou cairão, presas dessa armadilha mortal, e terão o destino do touro, que baixa a cabeça na luta contra a capa vermelha e não vê a mão do toureiro que lhe cravará a espada na nuca.
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Massacre da estação de trens de Bolonha (Itália), com 85 mortos e 200 feridos em 20/8/1980. 
Tela do pintor Carlo Carosso

Dos autores:

Parafraseando o bom velho Marx, poderíamos dizer que “Os filósofos até aqui só desconstruíram textos. Trata-se agora de desconstruir o virtual, para alcançar o real”. Esse virtual no qual estamos quase todos já imersos e no qual as jovens gerações mergulham com risco de afogar-se nele, tomando o virtual pelo real, construindo mundos imaginários nos quais são incapazes para agir. Nos propomos pois a repor no lugar o senso de realidade, reconstruindo o real ocultado por trás dos espelhos da propaganda multimídia onipresente; intervindo nos eventos que nos atingem, que nos interpelam, que nos concernem – distribuindo nossas análises e reflexões e ajudando todos a compreender o que os atinge. Nosso coletivo é aberto a todos os tipos de cooperação.

Collectif Les déconstructeurs du virtuel / Coletivo Os desconstrutores do virtual
E-mails para deconstruire@gmail.com

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Notas de rodapé
[1] Justiça transicional: processo que visa a pacificar a sociedade mediante a implantação de mecanismo que substitui a Justiça que haja, para “virar a página” do passado sombrio da ditadura ou da guerra civil e pôr “um ponto final” à demanda das vítimas que exijam justiça.

O mais afamado exemplo dessa justiça transicional é a Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul. No mundo árabe, o Marrocos foi o único país, até hoje, onde se instituiu comissão desse tipo (Instance équité et réconciliation).

Na Tunísia, o Ministério de Direitos Humanos acaba de assinar acordo de parceria com o Centro Internacional para a Justiça Transicional (CIJT, com sede em New York). “Por esse acordo, o Centro se compromete a fornecer assessoria técnica ao Ministério em matéria de justiça transicional, sobretudo para investigação dos fatos e da verdade, sobre indenizações, reparações, Justiça Penal e reforma das instituições, da Constituição e do Judiciário. O CIJT deve também prover ajuda técnica para a criação de uma Comissão da Verdade e para pôr em operação um programa de reparação dos prejuízos.”

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