segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Spielberg versus Tarantino: Hollywood e o passado


17/2/2013, Gilad Atzmon, Information Clearing House
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Gilad Atzmon
Vê-se a história, quase sempre, como tentativa de produzir narrativa estruturada do passado. Dizem que nos contam o que realmente aconteceu, mas em muitos casos, não é bem assim. A história parece existir para esconder nossas vergonhas, como que para apagar do mundo os vários elementos, eventos, incidentes e ocorrências com as quais absolutamente não sabemos lidar. A história, portanto, pode ser vista como sistema de ocultamento.

Assim sendo, o papel do verdadeiro historiador é semelhante ao do psicanalista: os dois têm de desvelar o reprimido. Para o psicanalista, é o inconsciente. Para o historiador, a nossa vergonha coletiva.

Mas, cabe perguntar, quantos historiadores abraçam de fato essa tarefa? Quantos historiadores têm a coragem necessária para abrir a caixa de Pandora? Quantos historiadores têm a coragem para desafiar a verdade da História dos Judeus? Quantos historiadores têm a coragem de perguntar “por que só os judeus”? Por que os judeus padecem sempre? Será culpa dos Goyim que seriam inerentemente assassinos, ou há algo que atormenta, por dentro, o coletivismo ou a cultura dos judeus? Evidentemente, os judeus absolutamente não são os únicos: todos os passados de todos os povos são também problemáticos.

Como, afinal, os palestinos explicam a eles mesmos por que, depois de mais de um século de lutas, ainda acordam, todos os dias, para ver que sua verdadeira capital está convertida num paraíso de ONGs mantidas pela Open Society de George Soros?

Os britânicos são capazes de, de uma vez por todas, olhar a própria cara no espelho e explicar a eles mesmos por que, no seu Museu das Guerras Imperiais, meteram uma exposição sobre o Holocausto dedicada à destruição dos judeus? Não seriam mais valentes, os britânicos, se olhassem para as muitas Shoas que eles mesmos infligiram a outros? Afinal, os britânicos podem escolher qualquer uma, na monumental lista de desgraças que eles mesmos provocaram e provocam pelo mundo.

O Guardião versus Atenas

O passado é território perigoso; pode nos levar a histórias inconvenientes. Basta isso, para explicar por que o verdadeiro historiador é, não raro, apresentado como inimigo público. Mas a Esquerda inventou solução acadêmica para lidar com essa questão. O historiador “progressista” opera para produzir o conto “politicamente correto”, “inofensivo”, do passado. Com muitos ziguezagues, navega a própria rota, pagando o que lhe cobrem os eventos ocultados e criando infindáveis desvios ad-hoc que mantêm o “reprimido” sempre intactamente reprimido. O sujeito progressista aí está para produzir narrativas “não essencialistas” e “não ofensivas” do passado; e o chamado “reacionário” lá está, e paga o pato.

O jornal The Guardian é emblemático dessa abordagem. Baniu toda e qualquer crítica contra a cultura judaica ou contra a juidaicidade, e oferece plataforma televisiva para que dois sionistas obsessivos, doidos furiosos, discutam cultura árabe e islamismo. O Guardian não se incomoda com ofender “islamistas” ou “nacionalistas” britânicos, mas cuida muito atentamente de não ferir sensibilidades judaicas. Tais versões da política ou do passado são imunes à qualquer verdade, coerência, consistência ou integridade. De fato, o discurso progressista fracassa sempre que se trate de operar como “o guardião da verdade” – e aqui me refiro, em particular, ao discurso da esquerda.

Evidentemente, há alternativa à atitude “progressista” em relação ao passado. O verdadeiro historiador é um filósofo – e um essencialista – pensador que propõe a questão “o que significa estar no mundo e o que se exige para viver entre outros?”. O verdadeiro historiador vai além do singular, do particular e do pessoal. Ele ou ela vive em busca da condição de possibilidade do que comanda nosso passado, presente e futuro. O verdadeiro historiador opera entre o Ser e o Tempo; ele ou ela, em busca de uma lição humanista e de um insight ético, procurando no poema, na arte, na beleza, a razão, mas procurando também o medo. O verdadeiro historiador é um essencialista que escava em busca do ocultado, porque sabe que o reprimido é o núcleo duro da verdade.

Leo Strauss oferece insight muito útil nesse campo. A civilização ocidental, argumenta ele, oscila entre dois polos intelectuais e espirituais – Atenas e Jerusalém. Atenas – berço da democracia, lar da razão, da filosofia, da arte e da ciência. Jerusalém – cidade de Deus, na qual a lei de Deus vige. O filósofo, o verdadeiro historiador, ou, no que tenha a ver, o essencialista, é, obviamente, o ateniense. O jerusalemita, no que tenha a ver, é “o guardião do discurso”, o que vigia a entrada, só para manter a lei, à custa do êxtase, da poesia, da beleza, da razão e da verdade.

Spielberg versus Tarantino

Steven Spielberg
Hollywood nos oferece via para assistir a essa oscilação entre Atenas e Jerusalém: entre o jerusalemita “guardião do discurso” e o opositor ateniense – o inimigo público “essencialista”. No campo esquerdo do mapa, temos Steven Spielberg, o gênio “progressista”. À direita dele encontramos a poiesis encarnada, Quentin Tarantino, o “essencialista”.

Spielberg nos supre com o mais consumado épico histórico desinfetado. Os fatos são selecionados a dedo para produzir um conto premeditadamente pseudo ético que mantém o discurso, a lei e a ordem “corretos”, mas, muito mais importante, mantém o primado do sofrimento exclusivo dos judeus (Lista de Schindler e Munique). Spielberg dá vida a uma grande visada épica, retrospectiva, do passado. A tática de Spielberg é, quase sempre, bem simples. Ele simplesmente expõe, justapostos, os termos de uma oposição binária transparente: nazistas X judeus; israelenses X palestinos; norte X sul; decência X escravidão. Sempre se sabe, de saída, quem são os bonzinhos e quem são os malvados. Sabe-se de saída, claramente, a quem se aliar.

A oposição binária, sim, é rota segura. Oferece clara distinção entre “Kosher” e “proibido”. Mas Spielberg está longe de ser mente simplória. Também permite oscilação milimetricamente calculada, premeditada. Em gesto universalista, admitirá um nazista na família dos bons. Deixará que um palestino esquisito apareça como vítima. Qualquer coisa pode acontecer, desde que a moldura básica do discurso permaneça intacta. Spielberg é claramente um arquiguardião do discurso – mestre na própria arte, sem dúvida prenderá a atenção do público, ininterruptamente, por pelo menos 90 minutos de um coquetel histórico feito de semifatos. Ao espectador, só compete seguir a trama até o final, quando então a mensagem ética pré-mastigada e pré-digerida já estará replantada, em segurança, no coração do universo de autoadoração narcísica de cada espectador.

Quentin Tarantino
Diferente de Spielberg, Tarantino não se preocupa com a factualidade; pode até rejeitar qualquer historicidade. Tarantino pode bem acreditar que a noção de “mensagem” ou de moralidade ande superestimada. Tarantino é essencialista, interessado na natureza humana, no Ser; e parece fascinado, em especial, pela vingança e a universalidade da vingança. Por razões óbvias, seu integralmente ficcional Bastardos Inglórios lança luz sobre a sede coletiva de sangue dos israelenses, claramente detectada no momento da Operação Chumbo Derretido. A criação cinemática ficcional de um comando assassino e vingativo de judeus na 2ª Guerra Mundial ali está para lançar luz e fazer ver a devastadora realidade contemporânea dos lobbies judeus sedentos de vingança, em sua sanha incansável em busca de uma guerra mundial contra o Irã e o resto todo. Mas Bastardos Inglórios pode bem ter também um apelo universal, porque o “olho por olho” do Velho Testamento já está convertido em impulso político que move os anglo-norte-americanos depois do 11/9.

Abe Lincoln versus Django

Nos trabalhos recentes, vê-se, bem claro, o choque espiritual entre o jerusalemita Spielberg e o ateniense Tarantino.

A história da escravidão nos EUA é, sim, tópico problemático, e, por razões óbvias, muitos aspectos desse capítulo ainda permanecem secretos, sob domínio do ocultado. Mais uma vez, Spielberg e Tarantino produziram relatos marcadamente diferentes do mesmo tema.

No seu épico histórico recente, Lincoln, Spielberg converteu Abraham Lincoln num neoconservador “moral-intervencionista” o qual, contra todas as possibilidades (políticas), aboliu a escravidão. Acho que Spielberg conhece o suficiente da história dos EUA para dar-se conta de que seu relato cinematográfico não passa de tentativa, nua e crua, de fugir do tema, porque a campanha política contra a escravidão nunca passou de pretexto para uma guerra sangrenta, orientada por interesses econômicos bem claros.


Como se deveria esperar, Spielberg tempera sua ficção com pitadas de passagens históricas genuínas. Com isso, paga o necessário tributo para conseguir manter a vergonha bem escondida por baixo do tapete. Seu Lincoln é apresentado como herói movido por ímpeto moral da fraternidade humana. Todo o roteiro manifesta sintomas bem visíveis do assalto que o AIPAC contemporâneo mantém em andamento dentro do Senado dos EUA. Sendo um dos arquiguardiões do discurso, Spielberg saiu-se bastante bem, da empreitada. Aplicou uma substancial camada de cinema por cima de tudo, para assegurar que a verdadeira vergonha norte-americana continue profundamente reprimida ou, pode-se dizer, intocada.

Desnecessário dizer que a visão à Spielberg, de Lincoln, foi muito elogiada pela imprensa judaica. Batizaram o presidente de Avraham Lincoln Avinu (‘'nosso pai'’, em hebraico), na The Tablet Magazine. “Avraham” – segundo a Tablet, é o bom judeu definitivo. “Como imaginado por Spielberg e Kushner, o Lincoln de Lincoln é o mensch consumado. É psicólogo naturalmente dotado, interpretador de sonhos, homem abençoado pela mais extraordinariamente lúcida e sutil alma legal”. Em resumo, o Lincoln de Spielberg combina as competências, o dom e os traços de Moisés e também de Freud; praticamente um Alan Dershowitz.

Mas alguns judeus reclamaram do filme. “Como historiador judeu-norte-americano, escreve Lance J. Sussman, “temo ter de dizer que estou desapontado, em certo sentido, com o novo filme de Spielberg. Há coisas muito boas, no filme. Mas melhorariam muito, se o diretor tivesse posto pelo menos um judeu, no filme, em algum lugar”.

Acho que Spielberg talvez encontre dificuldades para agradar a tribo toda. Já Quentin Tarantino, esse, nem tenta. Tarantino, de fato, está fazendo exatamente o contrário. Mediante um épico fantasmático que declara interesse zero por qualquer forma de historicidade ou de factualidade, sejam quais forem, ele consegue – em Django, sua mais recente obra prima – desencavar e trazer à luz os mais obscuros segredos da escravidão. Esgravata o reprimido e, a julgar-se pela reação de outro gênio do cinema, Spike Lee, não há dúvida de que consegue ir bem fundo.


Ao criar espetáculo estilístico clássico do gênero Western, consegue enfrentar todos os aspectos em relação aos quais somos adestrados para jamais tocar. Enfrenta o determinismo biológico, o suprematismo e a crueldade dos brancos. Mas não deixa passar sem registro a passividade dos escravos, a subserviência, o colaboracionismo ativo.

Diretor ateniense, constrói aqui um conjunto de deuses mitológicos gregos, à guisa de personagens. Django (Jamie Fox) é o indomável rei da vingança; e Schultz (Christoph Waltz), o dentista alemão convertido em caçador de recompensas, é o mestre da convenção, da gentileza, da humanidade, com um gigantesco dente da sabedoria divina (e cofre) balançando sobre a lona de sua carroça. Calvin Candie (Leonardo DiCaprio) é o patrão hegeliano (racista); e Stephen (Samuel L. Jackson) é o escravo hegeliano, emergindo como a personificação da transformação social. Em vários sentidos, o relacionamento entre Candie e Stephen pode ser visto como uma das representações cinematográficas mais profundas (e mais subversivas) da dialética senhor-escravo.

Na dialética hegeliana, duas autoconsciências constituem-se por espelhamento. Em Django Liberto, Stephen, o escravo, parece manifestar a mais consumada forma de subserviência, ainda que só na aparência. De fato, Stephen é muitíssimo mais sofisticado e bom observador que seu patrão Candie. Está em plena ascensão, na cadeia de comando. Difícil decidir se Stephen é colaborador, ou se é, de fato, quem dirige todo o show. Mas na obra mais recente de Tarantino, a dialética hegeliana é, em certo sentido, compartimentalizada. Django, uma vez liberto, é absolutamente imune ao feitiço da dialética hegeliana. A libertação induz nele um autêntico espírito de resistência. No que dependa dele, mata o Senhor, o Escravo e quem mais apareça pelo caminho. Rompe todas as regras, inclusive as “regras da natureza” (o determinismo biológico). Ao final do épico, Django deixa atrás de si a plantation de Candie em ruínas, símbolo em cinema do velho sul moribundo e, com ele, a “dialética do senhor/escravo”. Quando Django cavalga rumo ao sol que nasce, levando na garupa sua esposa liberta Broomhilda von Shaft (Kerry Washington), nós acordamos da fantasia cinematográfica. No “mundo real”, digo, no mundo externo ao cinema, a plantation de Candie permaneceria, com alta probabilidade, praticamente intacta, e Django, muito provavelmente, voltaria às cadeias. Na prática, Tarantino justapõe, com cinismo máximo, o sonho (a realidade do filme) e a realidade (como a conhecemos). Ao fazê-lo, consegue iluminar o mais profundo da miséria que há, entretecida firmemente, na condição humana e, em especial na América Negra.

Tarantino absolutamente não é “guardião do discurso”. Bem ao contrário, é o mais amargo inimigo da estagnação. Como em trabalhos anteriores, o mais recente espetáculo que nos oferece é assalto essencialista à correção e ao “autoamor”. Tarantino revira muitas pedras e solta muitas víboras na sala de jantar. E, ateniense devoto, não se interessa por produzir, nem resposta alguma, nem qualquer lição moral. Deixa-nos perplexos e exultantes. Para Tarantino, acho, a essência existencial é o dilema. Spielberg, por outro lado, oferece abundantes respostas necessárias. Afinal, no discurso do politicamente correto progressista, as respostas é que determinam, em retrospectiva, que perguntas somos autorizados a fazer.

Se Leo Strauss está certo, e a civilização ocidental deve ser vista como uma oscilação entre Atenas e Jerusalém, verdade seja dita: quantos mais atenienses e suas reflexões essencialistas, melhor! Dito de outro modo: vivemos desesperadora carência de mais Tarantinos, para fazermos frente a Jerusalém e seus embaixadores. 

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