16/2/2013, Toni Negri,
Uninomade
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Antonio Negri |
Há mais de 20 anos,
aparecia a encíclica Centesimus
Annus, do papa polonês, por ocasião do centenário da Rerum Novarum – que
fora o manifesto reformista, fortemente inovador, de uma igreja que se desejava,
dali em diante, representante exclusiva dos pobres depois da queda do império
soviético. Meus camaradas parisienses da revista Futur Antérieur e eu, dedicáramos um
comentário a esse documento que era, ao mesmo tempo, reconhecimento e desafio.
Levava o título de “A 5ª Internacional de João Paulo II". [La
Cinquième internationale de Jean-Paul II].
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anos depois, o papa alemão abdica. Declara-se não apenas fatigado no corpo e
incapaz de dar conta das confusões e da corrupção da Cúria Romana, como também
impotente, na alma, para enfrentar o mundo. Mas essa abdicação só surpreenderá
os cortesãos da Cúria – todos os que prestem atenção aos assuntos da Igreja
romana sabem de outra abdicação, muito mais profunda, que aconteceu já há
tempos, já sob João Paulo II, quando, com o ardente apoio de Ratzinger, aquele
papa pos fim à abertura para os pobres e ao engajamento por Igreja renovada no
empenho pela libertação dos homens da violência capitalista e da miséria. Aquela
encíclica de 1991 teria sido pura mistificação? Hoje, é imperioso reconhecer que
é possível que sim.
Bento XVI |
De
fato, na América Latina, a Igreja católica cancelou todo o apoio à teologia da
libertação; na Europa, voltou a reivindicar a ordo-liberalismus; na
Rússia e na Ásia logo se viu incapaz de desenvolver o proselitismo que a nova
ordem mundial permitia-lhe; e nos países árabes e iranianos, a Igreja católica
viu os muçulmanos, em suas diversas seitas e frações, tomarem o lugar do
socialismo árabe (e frequentemente cristão) e do comunismo xiita, na defesa dos
pobres e do prosseguimento das lutas de libertação. Nem a aproximação com Israel
aconteceu em nome do antifascismo e da denúncia dos crimes dos nazistas, mas em
nome de defender o Ocidente.
O
paradoxo mais significativo apareceu no fato de que o grande élan
missionário (que se desenvolvera de modo autônomo depois do Vaticano II) foi
transferido para ONGs, rigidamente especializadas e desprovidas de qualquer
traço genericamente “franciscano”. Essas ONGs terminaram engajadas na prática
desses “direitos humanos” que a Igreja (e os dois papas, o polonês e o alemão)
recusou-se a reconhecer nos países da Europa ou da América do Norte, onde esses
direitos ainda manifestavam, com uma ressonância anticlerical e republicana, as
instâncias (residuais, mas eficazes) do laicismo humanista e das Luzes. Em vez
de ficar à esquerda da social-democracia, como propunha a encíclica
Centesimus Annus, o papado curvou-se à direita do quadro social e,
politicamente, na direção de uma direita que tentava seduzir os militantes dos
Tea Parties (também os europeus).
E
eis que, agora, o papa alemão abdica. É quase cômico ouvir o que diz a
imprensa-empresa em toda essa parte do mundo que ainda se interessa pelo evento
(bem limitada, é verdade, se se considera o espaço mundial). Pede que o novo
papa reconheça o ministério eclesiástico às mulheres; que torne a gestão da
Igreja burguesmente colegiada; que lhe garanta posição independente em relação à
política... Demandas banais, que, claro, passam longe do essencial. O que falta
à Igreja é a pobreza.
Seria
afinal hora de compreender que o papa não é uma espécie de rei, mas que tem de
ser pobre; só pode ser pobre. Tentarão mascarar esse problema, dessa vez,
promovendo ao papado um africano ou um filipino? Que terrível gesto racista, se
o Vaticano e seus ouros e bancos e dogmas políticos a favor da propriedade
privada e do capitalismo continuarem brancos e ocidentais! E pedem que as
mulheres ganhem o direito ao sacerdócio. É pura hipocrisia, de gente a quem não
ocorre sequer a ideia de que Deus também se declina no feminino. Querem gestão
colegiada da Igreja? Mas já Francisco de Assis ensinava, nos
seus dias, que só há colegiado, na caridade. Etc., etc..
Cardeal Carlo Martini |
A
Igreja do papa polonês e do papa alemão concluíram o processo de aniquilar o
Concílio Vaticano II, mas essa liquidação jamais foi uma “guerra civil” no seio
da Igreja de Roma. Não passou de disputa com florete entre prelados – até quando
se viu sangue, como no caso da neutralização do cardeal Martini, mas nem assim
jamais passou de esgrima. Pondo uma pedra sobre o Concílio, os dois últimos
papas bloquearam um impetuoso movimento e renovação religiosa. Acima de tudo,
confundiram Igreja e Ocidente; cristianismo e capitalismo: precisamente o que a
encíclica Centesimus Annus prometera nunca mais fazer, saídos nós todos
da histeria antissoviética.
Mas
não bastaria vaiar o estandarte da pobreza, para subordinar o cristianismo às
formas de vida do ocidente capitalista: seria necessário praticar a pobreza,
alimentá-la, como uma revolução. Face às crises monetárias, da produção e da
sociedade, os cristãos esperariam da Igreja nova definição adequada para
“caridade”, “amor ao próximo”, para “a potência da pobreza”. Não conseguiram. E
muitos militantes cristãos ainda se recusam a ver o declínio paralelo que o
Vaticano e o Ocidente parecem viver hoje, lado a lado.
Há
quem pense que “a renúncia de Bento poderá eventualmente conduzir a Igreja para
fora do século 19” ; outros, que produzirá reflexão
profunda e o reconhecimento de que é necessária uma reforma. Mas os que entendem
que estamos ante “a agonia de um império doente” não terão muito mais razão? E
que esse ato de Bento nada é além de álibi oportunista, tentativa desesperada
para arrancar-se da crise?
A
única coisa que se sabe é que qualquer reforma da doutrina, seja qual for, será
completamente inútil se não vier precedida, acompanhada e realizada numa reforma
radical da presença social da Igreja, de seus homens e suas mulheres. Só se
conseguirem conectar a esperança celeste e a esperança terrestre. Em outras
palavras, se voltar a falar da “ressurreição dos mortos” com atenção aos corpos,
ao alimento, às paixões dos homens vivos. Isso implica romper com a função que o
ocidente capitalista confiou à Igreja – a função de pacificar, com esperanças
ocas, o espírito dos que sofrem; de culpabilizar a alma dos que se rebelam.
A
descontinuidade produzida pela abdicação de Bento suscitará efeitos de
renovação, se vier acompanhada da recusa a representar “a Igreja do Ocidente”.
É
tempo, mesmo, de destruir essa identidade, na trilha do que propunha a encíclica
Centesimus Annus há mais de 20 anos. É tempo de reconhecer aos
trabalhadores a identidade de explorados, no ocidente, pelo ocidente. Mas, se o
papa polonês de então não conseguiu, difícil crer que alguns de seus discípulos,
sem qualquer carisma, consiga. O trabalho, então, está entregue aos cristãos. E
a todos nós.
(comentário enviado por e-mail e postado por Castor)
ResponderExcluirArtigo excelente, este, do Negri. Que não só os cristãos o leiam, mas que os católicos, mormente os dos países subdesenvolvidos o tomem a sério e lutem pelo restabelecimento das normas conciliares decididas durante os pontificados de Angelo Roncalli e Giovanni Montini, estraçalhadas por Karol Wojtyla e Joseph Aloisius Ratzinger. Há que desocidentalizar com urgência a Igreja Católica, é imperativo!
Na América do Sul, só o espírito de Medellín (1968) deve presidir a cooperação eclesial e teológica com a propagação da Fé na parte central e caribenha do Continente Americano. Unindo-se aos protestantes progressistas (não me refiro aos evangélicos de meia-tigela) e, ecumenicamente, a outras crenças, monoteístas ou não, da África, Oriente Médio e Ásia, seia possível implantarem-se forças espirituais imbatíveis no mundo da pobreza, que é o mundo da maioria.
É preciso que os católicos inteligentes ponham o óbvio na cabeça: que Jesus era um judeu oriental, asiático e subproletário.
Abraços do
ArnaC