segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Egito em “bloco-negro”: tática anarquista de revolução de rua


2/2/2013, Mark LeVine*, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ver também
·        7/11/2011, redecastorphoto, Eduardo Febbro, Página 12 em: A praça sem chefes, ordens, capitães e hierarquias
·        2/4/2012, redecastorphoto, Al Ahram, Cairo –Egito em: Torcidas organizadas no Cairo: a Revolução dos Ultras

O bloco-negro - no Egito  dizem que eles são os defensores de manifestantes contrários ao governo do presidente Mohamed Mursi 
Da outra vez que rapazes mascarados, vestidos in black, causaram confusão equivalente no Egito, a culpa foi de Satanás. Ou, pelo menos, foi o que disseram o governo Mubarak e a Fraternidade Muçulmana, durante o caso infame que ficou conhecido como “Caso dos Metaleiros Satânicos”, em 1997, quando mais de 100 metaleiros – músicos e fãs – foram presos e ameaçados até de morte, simplesmente porque usavam roupas pretas e gostavam de música extremamente, digamos, barulhenta.

A perseguição aos metaleiros egípcios (ou “metal-aliens”, como muitos deles se autodenominam) foi constante em toda a cena underground no Egito, durante toda a década seguinte. Mas manteve-se subterrânea, sem deixar-se ver à superfície até meados dos anos 2000s, quando emergiram movimentos como Kefaaya, e ocorreram as principais greves no centro industrial de Mahallah. Nesse período viu-se nascer uma militância renovada, embora intermitente, que se manifestaria no levante revolucionário do final de 2010 e início de 2011.

Manifestante do bloco-negro hoje
 (3/2/2013) no Cairo, Egito
Não me surpreende ver que alguns dos principais organizadores dos 18 dias de protesto eram velhos amigos da cena metaleira egípcia. A aparentemente inesperada reemergência dos “blacks” entre os revolucionários remanescentes no Egito, especialmente as marcas visuais do chamado bloco-negro – o qual, embora sempre descrito como “grupo” pela mídia, por comentaristas e pelo governo, não é bloco nem grupo, mas, antes, um conjunto de táticas e estratégias – traz de volta à memória momentos ainda vivos, tanto dos sons do metal egípcio quanto da pulsação anarquista que sempre marcou o ritmo dos movimentos originais de protesto em Tahrir.

Metaleiros e anarquia – como, aliás, sempre disseram as autoridades políticas e religiosas no Egito, cada vez com mais fúria – sempre andaram juntos, pode-se dizer, naturalmente.

Na verdade, sempre houve clara, embora pouco comentada, presença anarquista no levante original em Tahrir; tradicionalmente se vendem livros anarquistas nas bancas ao longo da rua Talat Harb, onde o grupo organizou marcha e oração pública. E a própria Tahrir permanece, em vários sentidos, como exemplo das ideias de horizontalismo (horizontalidad) e autogestão que são o coração da moderna teoria e prática anarquistas.

Raízes do Anarquismo Egípcio

 Anthony Gorman
O anarquismo tem longa história no Egito e, mais amplamente, em todo o Levante. Como o demonstrou a pesquisa do professor Anthony Gorman da Universidade de Edinburgh, as raízes do anarquismo chegam aos anos 1860s, quando os primeiros refugiados políticos italianos começaram a chegar aos subúrbios hospitaleiros de Alexandria e outras cidades egípcias, onde inspiraram a criação da “Universidade Popular Livre” [orig. “Free Popular University”] em 1901.

O Egito, naquele momento, estava no auge de uma campanha sem precedentes, cada vez mais desesperada, de modernização conduzida pelo estado, que aumentou a integração do país à economia global durante a primeira e, em certo sentido a mais intensa fase da globalização. De fato, o movimento constante das comunidades do norte do Mediterrâneo para e pelos litorais leste e sul ao longo de séculos – com mercadores, escravos, piratas, operários e ativistas – é lição seminal de o quanto o Mediterrâneo sempre foi tradicionalmente integrado e, deve-se esperar, voltará a sê-lo.

Italianos e gregos, que no fin de siècle estabeleceram brilhantes comunidades de dezenas de milhares nas maiores cidades das costas sul e leste do Mediterrâneo, foram-se envolvendo cada vez mais nos movimentos trabalhistas locais, para os quais trouxeram forte dose de anarquismo, inclusive de anarcossindicalismo, especificamente focado nas lutas trabalhistas mediante a auto-organização. Já há notícias de greves construídas e agitadas por anarquistas, de prisões por trabalho ilegal de organizar trabalhadores já nos anos 1890s e até antes.

O anarquismo, como qualquer outra ideologia política que concorresse contra o nasserismo, foi posto de lado durante os dias de glória do panarabismo nos anos 1950s e 60s. Mas pelo menos alguns anarquistas egípcios contemporâneos traçam as próprias raízes até os movimentos dos anos 1940s [em árabe].

O crescimento do movimento antiglobalização corporativa

O surgimento do anarquismo no Egito no século 19 é o contexto histórico que ajuda a entender que ressurja hoje, durante a grande era de luta de integração global puxada pelo sistema global neoliberal ocidental – mas já não dominada por ele. Desde que Sadat iniciou a abertura – infitah – nos anos 1970s, o Egito passou a ser profundamente – mas desfavoravelmente – incorporado ao sistema global, mediante relações de dependência com os EUA, com o FMI e com o Banco Mundial, como fora já dependente na economia global puxada pela Europa, no século 19.

Mubarak, o pai, e ainda muito mais o filho tentaram usar as políticas neoliberais para fortalecer o poder das elites econômicas dentro do Egito e globalmente. Políticas de privatização e liberalização abriram portas com as quais nem a elite egípcia jamais sonhara, ampliando muito o controle que exerciam sobre a economia. O problema foi e continua a ser sempre o mesmo: maior concentração de riqueza nas mãos dos mais ricos só acontece, se se precariza cada vez mais a posição econômica de vasta maioria da população. O processo exigiu, em seguida, não apenas repressão sempre crescente, mas também a cooptação de novos atores para a elite do poder: fosse a emergente burguesia nos anos 1990s (cujo caso exemplar é o próprio Gamal Mubarak), fosse o alto comando da Fraternidade Muçulmana, na última década.

De Marrocos à Síria, as lutas por “liberdade”, “justiça social”, “democracia”, “pão” e, especialmente “dignidade” – palavra chave para as lutas antineoliberalismo, pelo menos desde que o movimento Zapatista introduziu o conceito no centro de seu discurso político no início dos anos 1990s – são sempre, sobretudo, lutas contra o neoliberalismo. Quanto a isso, são a continuação natural das lutas dos movimentos antiglobalização corporativa da América do Norte e da América Latina e, depois, das lutas europeias dos anos 1990s e início dos anos 2000s (cujos casos exemplares são Buenos Aires, Londres, Seattle, Praga e Gênova), lutas que em seguida se converteram no movimento antiguerra que emergiu nos EUA quando da invasão do Iraque.

Teatros de violência

Muitos dos princípios anarquistas de organização que os ativistas de “bloco negro” egípcios adotaram como seus – como a autodemocracia, com organização descentralizada, e os confrontos não raras vezes violentos com as forças de segurança e outros símbolos do poder sistêmico – já foram princípios orientadores também da primeira geração de ativistas do “bloco negro”, no movimento antiglobalização e anticorporações. São ativistas que emergiram, não só de círculos anarquistas, mas também de grupos como Ya Basta!, Tutte Bianche e Attac (que já têm ramos em alguns países árabes).

Os anarquistas também foram fortemente impactados por movimentos de base latino-americanos, o principal dos quais, os Zapatistas no México, como já escrevi em meu livro Why They Don’t Hate Us [Por que não nos odeiam], de 2005, constituíram o melhor modelo a seguir, para vários movimentos políticos de jovens. O próprio instituto RAND (.pdf) já alertava  que “o levante Zapatista demonstrou  como novas tecnologias possibilitaram que “enxames” de “moscas” atacassem e eventualmente derrubassem governos”. Essas são, precisamente, as táticas que se viram em ação na fase de definição, na Praça Tahrir, da revolução egípcia.

Pode-se contra-argumentar que a “Batalha de Seattle”, no final de 1999, contra a OMC, que pela primeira vez pôs o movimento nas manchetes e no mapa do ativismo mundial, jamais teria recebido a atenção que recebeu, não fosse a violência contra propriedade privada que se viu na prática dos manifestantes; aquela violência foi e continua a ser fenômeno raro nos EUA, exceto nos “tumultos” de rua em comunidades onde vivam minorias pobres.

Mas já era bem claro, em setembro de 2000, no protesto contra o FMI em Praga, que o uso da violência revolucionária, embora teatral e limitado à propriedade e a forças de segurança, estava-se tornando contraproducente. A Polícia servia-se da ameaça de violência para usar forças cada vez maiores e mais violentas que passaram a prender e atacar violentamente também as manifestações pacíficas; além de servir-se cada vez mais frequentemente de táticas de infiltrar-se nos próprios movimentos. O clímax aconteceu no assassinato de um ativista italiano, Carlo Giuliano, em Gênova, durante protestos contra reunião do G8, em julho de 2001, apenas dois meses antes de os ataques de 11/9 deslegitimarem completamente qualquer tipo de protesto violento nos EUA e Europa, por toda a década seguinte.

Posto em fórmula reduzida, a rotinização da violência nos movimentos contra a propriedade privada, custou caro ao movimento antiglobalização; para começar, custou-lhe parte significativa do apoio nos EUA e Europa; e, isso, porque nesses países a maioria da população ainda não estava sofrendo sofrimento insuportável, sob o sistema existente; sem isso, não havia meio pelo qual a população pudesse estar preparada para ou disposta a suportar o nível de caos, de desordem e de disrupção que a violência revolucionária visava a gerar. É possível que os anarquistas e os ativistas mais hard-core dos movimentos antiglobalização corporativa realmente trabalhassem para e desejassem “o fim do sistema”, como tantos egípcios cantavam desde o início do levante (e, de fato, desde antes do levante), mas praticamente todos os demais que enchiam a Praça Tahrir desejavam apenas um processo de reformas menos doloroso.

Todos os movimentos de militância de oposição política tornaram-se ainda mais difíceis durante os anos da Guerra ao Terror de Bush, tanto porque o público estava menos tolerante com qualquer oposição, como, também, porque os governos implantaram leis antiterror, aumentaram os controles e a vigilância, perseguiram e em vários casos assassinaram militantes ativistas.

A militância de oposição reapareceria a seguir, com o crescimento dos movimentos Occupy globais, mas, sobretudo, na Grécia, Espanha e, em certo grau, também nos EUA. Mas mesmo em meio à pior crise econômica desde a Grande Depressão, as táticas de bloco-negro afastaram do movimento, no mínimo, tanta gente quanta conseguiram atrair, levando observadores normalmente sérios e sóbrios, como Chris Hedges, a definir a tática do bloco negro (de fato, como vários outros, Hedges também fala erradamente do “movimento”) como “o câncer do movimento Occupy”.

Globalização super bombada, no mundo árabe

O mundo árabe e, em termos amplos, o mundo muçulmano, constituem ambiente muito diferente para lutas contra o neoliberalismo e as várias políticas aí envolvidas, se comparados às sociedades capitalistas ocidentais avançadas. Ganhos sem precedentes gerados pelo petróleo permitiram desenvolvimento superficial muito rápido nos pequenos países do Golfo, nos últimos 20 anos; mas no que tenha a ver com a situação econômica e política em que vivem as populações da vasta maior parte da região, as coisas só fizeram piorar horrivelmente ao longo da última geração. Isso, ao mesmo tempo em que a capacidade de as populações se conectarem culturalmente – se não economicamente nem politicamente –, integrando-se aos movimentos e ideias globais, aumentou a níveis também sem qualquer precedente.

Numa sala de conferências onde havia 500 pessoas, nos protestos em Praga contra o FMI, em 2000, ninguém levantou a mão quando perguntei se havia ali gente vinda do mundo muçulmano. Mas poucos anos depois, o número de ativistas do Oriente Médio e do Norte da África já aumentava notavelmente em manifestações pela paz global e/ou por justiça global; ao mesmo tempo, beneficiavam-se também das oportunidades criadas para eles por governos e ONGs ocidentais, para se interconectarem entre eles e seus pares, nas redes, oficinas, conferências que se chamavam “da sociedade civil”, no período que se seguiu à invasão dos EUA contra o Iraque.

A internet, é claro, tornou muito mais fácil aprender sobre táticas – como a tática do bloco-negro – e permitiu que vários grupos na Região e para além e que partilhavam objetivos e atitudes similares, tomassem conhecimento da existência uns dos outros. Ao mesmo tempo, o crescimento do movimento dos Ultras – claramente inspirado em movimento de torcidas organizadas de times europeus de futebol – garantiu o laboratório de testes perfeito para experimentar e aperfeiçoar táticas agressivas, eventualmente violentas, de confronto com forças de segurança e gangues armadas por regimes ditatoriais. Essas táticas, entre os dias 28/1/2010 e 4/2/2011, literalmente salvaram a revolução egípcia.

Não surpreende que, quando foram perdendo a capacidade de modelar a situação política, nos dois anos que se passaram depois do levante, os Ultras e simpatizantes que se reuniram à volta deles tenham partido à busca de novas estratégias, novas táticas e novos símbolos para reacender a velha chama e o ímpeto inicial, e, tão importante quanto isso, para reassumir também o controle da própria narrativa nacional, caminhando na direção de terreno mais favorável.

Elemento dos blocos-negros mascarado com balaclava
Membros dos Socialistas Revolucionários, o maior grupo de anarquistas, em termos de conhecer estratégias e ter clareza dos próprios objetivos políticos (e os quais, consequentemente, foram diretamente atacados pelo Exército egípcio e, também, pela Fraternidade Muçulmana), repetidamente disseram, em longos contatos comigo desde o início da Revolução, que a chave do sucesso estaria em manter-se capaz de aprender e ensinar de/para círculos cada vez mais amplos da população.

A explosão da discussão sobre a tática de blocos-negros no Egito – que se vê hoje muito mais entre o governo, os apoiadores e a mídia de língua árabe, além dos grandes jornais egípcios, no que na mídia do resto do mundo – é prova de o quanto a estratégia política dos Socialistas Revolucionários sempre esteve corretamente orientada.

Se se examina a proliferação de páginas na internet de e sobre os blocos-negros (dentre muitas outras, aqui, aqui e aqui), videopronunciamentos de ativistas [ver também aqui], tuítes e os muitos que adotam o visual e os logotipos dos blocos-negros, e discussões com amigos dentro do movimento mais amplo dos Ultras (dentre outros que muito têm aprendido com as mudanças estratégicas introduzidas pelos blocos-negros), é bem claro que, embora a adoção das táticas de blocos-negros tenha um centro de irradiação a partir dos Ultras, de modo algum se limita às torcidas organizadas, uma vez que nem todos os que adotaram as balaclavas negras para cobrir o rosto são ou algum dia foram membros de qualquer das duas principais torcidas organizadas de equipes de futebol no Egito, Zemalek ou Ahly.

É também bem claro que, embora os ativistas que apareceram com a ideia de identificar-se publicamente com a tática conhecessem bastante bem sua história recente, seria errado assumir que partilhassem (ou, sequer, que algum dia tenham construído debate consistente sobre) alguma agenda ou filosofia política anarquista consequente; tampouco se deve supor que todos conhecessem em profundidade o discurso anarquista histórico que sempre modelou o movimento Occupy global mais amplo. Esse, vale a pena lembrar, é que foi diretamente inspirado pelos 18 dias históricos de resistência popular na Praça Tahrir – se não nasceu ali, integralmente, do estilo-fundamento anarquista de auto-organização revolucionária.

Por outro lado, alguns ativistas autoidentificados dos blocos-negros egípcio informam, como sua “universidade de origem” a UNAM (Universidad Autónoma de México), que tem longa história de parentesco e afiliação com os Zapatistas; além disso, se observa também um retorno a algumas das análises sobre as táticas de bloco negro que se escreveram antes de 2001, as quais mostram forte semelhança entre os desafios que o movimento enfrentava no ocidente, naquele momento, e enfrenta hoje no Egito.  

A revolução como destruição criativa

Imediatamente depois das vitórias eleitorais da Fraternidade Muçulmana e do Partido Fraternidade e Justiça, o desempenho anêmico da “oposição” oficial, representada pela Frente de Salvação Nacional, e uma população desesperadamente carente de qualquer tipo de recuperação econômica empurraram as forças revolucionárias, num primeiro momento, para uma posição defensiva. Mas os protestos de massa e, em seguida, a violência que cercou o veredito de Port Said, além do segundo aniversário do início do levante de 25 de janeiro, ofereceram condições para recalibrar todos os relógios e projetos políticos. O bloco-negro tornou-se símbolo público da oposição militante que está, sim, literalmente, em marcha contra uma ordem emergente e ainda instável.

Difícil exagerar os perigos que um movimento popular de protesto bem organizado (mesmo que auto-organizado e descentralizado) pode impor à elite do poder político no Egito. O chefe militar, Abdel Fatah al-Sissi, não erra quando diz que os protestos em curso ameaçam levar ao colapso do Estado; tampouco erram os juízes e procuradores em definir como terroristas  os especialistas nas táticas do bloco-negro. Mas o que, afinal, seria uma revolução, se não tiver como objetivo o colapso do Estado que há? E como esperar que os que ocupam hoje aquele poder em disputa não se sintam aterrorizados pelos que hoje confrontam aquele poder?

Todas as revoluções verdadeiras implicam um ato supremo de destruição criativa – um impulso anárquico de reordenamento, que destrói a velha ordem, ao mesmo tempo em que já vai criando algo novo que tomará o lugar da velha ordem. O motivo pelo qual muitas revoluções perdem o rumo ou são sequestradas por forças quase sempre diferentes e não raras vezes opostas às que lhes deram origem é, precisamente, o fracasso nessa passagem revolucionária decisiva: da fase e dos discursos destrutivos, para a fase e os discursos criativos gerativos. Vale para as revoluções religiosas axiais, inclusive nas fés abraâmicas, tanto quanto vale para as modernas revoluções políticas no México, na Rússia, na China ou no Irã.

O impulso anárquico tem raízes diretas no fato de que nasce do sistema existente. Mas se um Estado – vale dizer, o arranjo e a rede das relações de poder vigentes – tiver de ser substituído por outro, um novo sistema tem de substituir o velho que se desintegra. Assim também uma verdadeira revolução é combinação potentíssima do que o sociólogo Manuel Castells chama de identidades de “resistência” e de “projeto”; a primeira é estreita, fechada, hostil ao diferente; a segunda é aberta, receptiva e orientada para o futuro.

Sem essas duas identidades, não se pode “pôr abaixo o sistema” e criar outro mundo que o substitua. Assim também, não se pode manter dezenas de milhões de pessoas em apoio cerrado à destruição, se ninguém consegue sequer entrever qualquer visão positiva de futuro.

O problema é que, embora as duas metades da “destruição criativa” revolucionária sobreponham-se quase perfeitamente durante boa parte do período revolucionário, em algum momento futuro a destruição tem de ceder; e a criação tem de ocupar os espaços como processo dominante; ou a revolução torna-se autodestrutiva, niilista, é cooptada ou acaba por ser redirecionada (quase sempre por forças militares já organizadas, nos fenômenos que se conhecem como “bonapartismo” ou “cesarismo”). Nessa situação, os apoiadores resistentes desistem facilmente da resistência e passam a apoiar ativamente qualquer estabilidade que qualquer antigo regime restaurado (mesmo que não passe do que havia antes, metido em novos uniformes ou ternos) lhe ofereça.

O que fez de Tahrir evento realmente revolucionário durante 18 dias, mas, infelizmente, poucas vezes desde então, foi que, naquela praça, se via, sentia-se a possibilidade de um novo Egito, um Egito diferente, um Egito capaz de realizar os melhores sonhos dos seus filhos. Jovens e velhos, ricos e pobres, muçulmanos e coptas, metaleiros e sufis, todos irradiavam silmiyya – a alegria da paz – por mais que berrassem sem parar, o mais alto e forte possível, dia e noite, incansáveis.

Viveu-se ali uma experiência limítrofe, paradoxal, experiência que Adel Iskandar, professor de Georgetown e coeditor de Jadaliyya, relembrou em conversação recente sobre a situação atual. Para ele, foi “fenômeno de duas fases: a primeira, de 25/1 a 4/2, foi violenta, confrontacional, disputada à moda do bloco-negro (...); a segunda, de 4-11/2, foi a Tahrir do imaginário utópico... Essas duas fases continuam a existir e manifestam-se em frequência alternada”. 

A questão chave é, claro, como controlar a oscilação, sobretudo se não se pode jamais ter certeza de qualquer ponto de virada, nem se está virando, nem para que lado viraria. Já há dois anos, o “estado” egípcio vive em curto circuito; a estrutura mais interna – o estado profundo onde operam os senhores do poder e por cujas mãos fluem toda a riqueza e todo o poder no Egito – permaneceu aparentemente estável, e está crescendo um pouco, com a Fraternidade Muçulmana e suas próprias redes de poder e patrocínio já sendo absorvidas, embora com alguma dificuldade, naquela velha elite. Mas, fora daquele núcleo mais duro, o estado continua gelatinoso e poroso; e se a oposição pode arrancar dali algum poder e alguma legitimidade, é verdade, também, que o próprio sistema pode andar, como alertou o general al-Sissi, diretamente para o colapso.

Milhões, se não dezenas de milhões de egípcios compreendem que se a estrutura do Estado re-enrijecer-se na forma que parece ter hoje, todos estarão mais ou menos recongelados em mais ou menos o mesmo lugar em que viviam sob Mubarak, ou serão empurrados ainda mais para as margens; ou serão completamente cuspidos para fora do estado. De fato, o “estado de emergência” mais uma vez declarado, agora por presidente democraticamente eleito, e os ataques contra mulheres organizados por forças claramente alinhadas ao velho regime, refletem essa necessidade desesperada de desarticular o maior número possível de redes de poder popular, antes de que o novo sistema endureça novamente.

É quando entram em cena as táticas de combate dos blocos-negros

As táticas dos blocos-negros são hoje uma das mais criativas, das mais imaginativas respostas ao endurecimento geral no Egito. Os “especialistas” que a desqualificaram como soluções idiotas não conhecem, nem compreendem, a história das táticas anarquistas e o quanto já se provaram produtivas no Egito revolucionário.

A questão é como a maioria dos egípcios, que não estão diretamente envolvidos nos combates de rua (mas são diretamente afetados por eles) compreenderão essa dinâmica. Como reagirão ao tipo de violência tática produtiva de que são prova e instrumento os princípios anarquistas e as táticas de bloco negro, se continuarem ativas nas ruas e o governo responder com violência ainda maior?

Será que perceberão o aspecto projetivo e criativo dos protestos e os aceitarão como tática necessária e único meio não apenas para concluir o serviço de derrubar o velho sistema, mas, também, para construir economia social e política realmente nova para o Egito? Ou se concentrarão só no elemento destrutivo, de resistência destrutiva que há neles – como se aí estivessem para acelerar a desintegração social, política e econômica e gerar o caos, de tal modo que qualquer sistema religioso-autoritário, por impalatável que pareça ao primeiro trago, logo parecerá melhor alternativa?

Em todos os casos, temos de analisar o trabalho tático dos blocos negros, antes de julgá-los. A lealdade desses grupos militantes aos demais manifestantes já foi várias vezes posta à prova. Semana passada, quando mulheres foram brutalmente atacadas na Praça Tahrir, e já nem grupos como Operação Antiabuso Sexual conseguiam protegê-las ou afastá-las de onde estavam, ativistas de blocos negros surgiram não se sabe de onde e, com porretes e lança-chamas dispersaram grupos de atacantes armados e conseguiram levar as mulheres e outros ativistas para local seguro, de onde foram retiradas em segurança da Praça.

Sucesso limitado, futuro melhor?

Vale a pena observar que o sucesso do Zapatismo sempre foi muito limitado à própria região. Os Zapatistas conseguiram criar uma zona autônoma – embora constantemente ameaçada – para grupos indígenas mexicanos que vivem na região de Chiapas. Não alteraram fundamentalmente a economia mexicana, nem derrotaram, nem lhe impuseram ameaça significativa, ao “neoliberalismo global”, contra o qual o movimento abriu guerra dia 1º de janeiro, há 19 anos.

Subcomandante Marcos
A frase que o subcomandante Marcos disse a turistas desapontados por não poderem visitar ruínas maias em Chiapas, no dia em que a revolução começava – “Perdoem, mas hoje estamos fazendo uma revolução aqui” – também já foi ouvida por muitos turistas impedidos de visitar o Museu de Antiguidades da Praça Tahrir durante a revolução.

De fato, embora conter a marcha brutal do neoliberalismo nas montanhas Lacondonas de Chipas seja, sem dúvida, grande vitória, a revolução egípcia não se implantará se se limitar só a uma região ou só a um grupo social. O sucesso inicial e a vitória final dependem, precisamente, de que se infiltre por toda a sociedade e alcance todo o país. Não há revolução parcialmente vitoriosa, nem pequenos territórios “libertados”, como Tahrir, conseguirão sobreviver cercados por um oceano de autoritarismo neoliberal da Fraternidade Muçulmana protegido pelos militares.

É bem visível que as táticas de bloco-negro e os militantes anarquistas revolucionários não conseguirão no Egito muito mais do que os Zapatistas conseguiram em Chiapas.

Mas se os revolucionários anarquistas de blocos negros no Egito conseguirem manter em desequilíbrio os donos do poder, enquanto vão injetando novo ânimo na oposição que os jovens já comandaram em Tahrir, oferecendo-lhes visão positiva criativa de resistência e estratégias que permitirão levar a revolução egípcia para o seu terceiro ano de lutas, convencendo números crescentes de cidadãos comuns a não desistirem e a manter ativada a luta por liberdade real, dignidade e justiça social, terão cumprido muito dignamente um papel de máxima importância nessa torturada transição pela qual passa o Egito, de governo autoritários para, afinal, algum sistema realmente democrático.





Mark Levine* é professor de História do Oriente Médio na UC Irvine, e professor-visitante emérito do Centro de Estudos do Oriente Médio na Lund University, Suécia. É autor de The Five Year Old Who Toppled a Pharaoh  [O pequeno de cinco anos que derrubou um Faraó] (no prelo).

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