domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Populismo Antipopulista


20/2/2013, Marco Costa, Stato & Potenza (blog), Itália
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Marco Costa
Nesta campanha eleitoral italiana catatônica, metáfora perfeita e adequada para uma Itália que passa por momento tão dramático do ponto de vista econômico, quanto surreal do ponto de vista da representação institucional, vale a pena observar o modo como entrou em cena, no teatrinho desses patéticos aspirantes ao Parlamento, um tópico novo (embora sempre datado). Esse tópico – usado hoje como arma de deslegitimação recíproca – é, contudo, uma das categorias da política moderna: o populismo.

Não que seja a primeira vez que forças populistas apresentam-se nas eleições [na Itália] em décadas. Mas o que parece ter mudado é que, dessa vez, o populismo parece estar sendo acolhido, e a categoria “populismo” inscreve-se no debate diário como categoria de pleno direito, a ser ideologicamente circunscrita. Trata-se aqui de tentar compreender adequadamente, pelo menos, a origem político-linguística da expressão.

Populismo por Brian Judge

O substantivo “populismo” deriva do inglês populism, a qual, por sua vez é tradução do russo narodnicestvo; o adjetivo populist é tradução do russo narodníki. O movimento narodníki foi movimento político e cultural surgido na metade do século 19 entre intelectuais russos reunidos em torno da revista Russkoe Bogatsvo, que pregavam a emancipação dos camponeses e servos da gleba e reformas vastas e radicais do ordenamento estatal czarista, para levar a socialismo baseado na Obšcina (comunidade rural), a ser buscado inclusive por meios violentos. De fato, esse movimento é um dos fatores que levaram ao assassinato, em 1881, do czar Alexandre II.

Mas sob a categoria “populismo” sempre se reuniram partidos ou movimentos que se podiam caracterizar por atitude política genericamente favorável ao povo – conceito sob o qual se reuniriam os socioeconomicamente mais humildes e quase sempre considerados culturalmente mais atrasados, mas concebido em termos genéricos e muitas vezes irrealistas. Daí o traço predominantemente demagógico, na acepção negativa; ou popular, na acepção positiva. Na verdade, sempre se tratou de bajular o povo, como depositário de todas as virtudes políticas e sociais, e de defendê-lo contra os ardis maquiavélicos das classes dominantes.

Quem faça essa função adulatória sente-se no dever de formular propostas políticas para satisfazer o desejo de vingança do povo humilhado, contrapondo o povo humilhado às elites dominantes. Mas nem sempre essas propostas conseguem agir eficazmente no contexto dos complexos problemas das sociedades contemporâneas.

Muitas vezes, de fato, desempenham função instrumental, pois visam apenas a conquistar ou manter o poder da parte que apresenta as propostas em nome do povo. Nesse sentido então o povo é apenas assunto, num mito de volta atávica a valores indeterminados que remontam à origem da sociedade ou comunidade nacional na qual, por tradição, insere-se o povo.

Populismo, assim, é um mito a ser aceito ou rejeitado no todo. Sem definição precisa da terminologia, satisfaz-se com concepção quase irracional e emocional para definir um povo.

No populismo, o povo não é racionalizado: é intuído ou postulado apodicticamente.[1]

De fato, se se diz que o populismo é uma “síndrome”, pode-se dizer que “o populismo não corresponde a nenhuma elaboração teórica orgânica e sistemática, dado que é mais latente que teoricamente explícito” (Ludwig Gravada, 1999); e designa um amor sentimental e irrealista pelo povo, um humanitarismo de perfil vago, associado a uma sensibilidade para os problemas sociais nem sempre de extração popular. Por tudo isso, o termo “populista” designou muitas vezes os que amam o povo, com um “amor pré-existente ao marxismo ou, em parte, fora do marxismo” (Carlo Salinari, 1977).

Na substância, segundo essa interpretação, o populismo é mais próximo do fascismo, que do socialismo – e no fascismo coexistem sempre, organicamente e estavelmente, o apelo à nação e o apelo ao povo.

É muito difícil tentar uma tipologia do populismo hoje, depois de tantas categorizações ocas. Mas os traços originais do populismo podem ser acompanhados a partir de três percursos históricos:

1) o movimento populista dos EUA nas últimas três décadas do século 19, que manifestava a ansiedade e os temores generalizados numa porção agrária do Oeste e do Sul, nos confrontos com o capital industrial e financeiro, e que usava tons milenaristas para invocar, contra o poder do dinheiro, o retorno a uma sociedade harmônica recriada e renovada, de pequenos proprietários de terra;

2) o populismo russo, do qual já falamos rapidamente;

3) o conceito de democracia direta, sem intermediações, saído de algumas fases da Revolução Francesa, como antítese da democracia representativa de talhe britânico, a partir do qual se projeta, do sorelismo, pelo socialismo maximalista, até o fascismo.

Para resumir, há fundamento histórico para que se fale em três segmentos: o “nacionalpopulismo”, os populistas revolucionários e os populistas democráticos, ou pluralistas” (Incisa).

No grupo do nacionalpopulismo incluem-se todos os movimentos de tipo fascista ou militarista, do nacional-socialismo alemão talvez, até, o peronismo na Argentina e o getulismo no Brasil.

No grupo dos populistas revolucionários incluem-se todos os movimentos filo-Stalinistas, nos quais o elemento dominante é quase sempre social-patriótico, mais que algum coletivismo. São partidos criados por imitação, a partir do Partido Populista Americano (1891-1912), antiprotecionistas, pluralistas dentro do partido, nacionalistas na imagem que projetam para fora dele. Exemplos, aqui, são os partidos que tradicionalmente governaram na Índia, em Israel, no México. Nesses casos, o elemento nacionalista aparece fortemente associado ao populismo. Mas, periodicamente, também as grandes democracias ocidentais conheceram fases populistas-imperialistas, como sob Disraeli, na Grã-Bretanha e Crispi na Itália.

Nos nossos dias, e voltando à misérrima cena política na Itália, hoje, Marco Tarchi parece ser um dos mais atentos estudiosos dos fenômenos do populismo italiano. Em seu livro L’Italia populista (Il Mulino, 2003), Tarchi cuida de depurar o termo populismo (já convertido em palavrão, na linguagem política contemporânea, em termo, por si só, de desqualificação), de todos os preconceitos:

...tirar do conceito de populismo as conotações valorativas quase todas negativas que o acompanham no uso corrente, para devolver ao conceito a função descritiva que já teve, cuidando para não ser apanhado na armadilha da demagogia antipopulista.

Essa atitude parece absolutamente apropriada para descrever a grande trampa “mediática” que se vê hoje. A imprensa-empresa argumenta pela força [da repetição], sempre parcialmente, sempre homologando a retórica do “politicamente correto” nos mais diferentes campos, aproximando termos disparatados (política econômica comunitária, soberania monetária, etc.). E todos os disparates vêm sempre acompanhados do adjetivo “populista”, como adjetivo de desqualificação.

Pelo que se vê hoje, agitar a bandeira do antipopulismo parece ser o recurso mais acessível aos populistas. Essa parece ser a última trincheira ideológica ainda ereta – embora precariamente ereta – de uma classe dirigente (política, industrial, financeira, judiciária) que arrastou a Itália à ruína e à miséria, à humilhação de ser hoje a última e mais desesperada das províncias do império, em ocaso acelerado.

O antipopulismo é o último argumento dos que passaram 60 anos, de fracasso em fracasso, em todos os tópicos possíveis de discussão política



Nota dos tradutores

[1] Apodíctico. adjetivo (1789)
1 fil que exprime uma necessidade lógica, e não um fato empírico, apresentando uma natureza evidente e indubitável (diz-se de proposição) [ex.: 2 + 2 = 4]
2 p.ext. que não pode ser refutado, contradito, contestado; indiscutível
3 p.ext. que se mostra convincente em função das evidências, que convence; evidente f. geral não pref.: apodítico 

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