sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Mali: “De volta a Bamako”


6/2/2013, Gamal Nkrumah, Al-Arham Weekly, Cairo
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Gamal Nkrumah
À caça da alma do Saara: As expressões de júbilo eram palpáveis quando o avião que trazia o presidente François Hollande da França pousou na pista em Timbuktu. O infiel vencedor emergiu triunfante do jato presidencial, para ser saudado à tradicional moda africana, com muita festa, exaltação, danças, cantos. Era o herói do dia. Os ignóbeis militantes islamistas, eles, em plena retirada. Hollande foi entusiasticamente elogiado no Mali por seus talentos de navegador em quadro de crise. Os malianos, a esmagadora maioria dos quais são muçulmanos, vivem cada vez mais desconfiados de islamistas de todos os naipes.

Meninas pequenas arrastavam os odiados hijabs pelo chão poeirento. Medo e frustração fervilhavam sob o chão arenoso daquela cidade milenar. O nível de ira e desespero entre os islâmicos aproximava-se perigosamente do ponto de ebulição. Ironia, mesmo, que os infiéis franceses ali estivessem, tratados como salvadores. Meninas de menos de 10 anos obrigadas a cobrir-se dos pés à cabeça com o traje tradicional da modéstia obrigatória.

É jogo bem aberto, muito às claras, no desolado Saara maliano. Comandar um oceano de cidadãos indignados provou-se impossível nas legendárias cidades medievais de Timbuktu e Gao, no Mali. Esses bastiões da civilização islâmica na Ásia Ocidental rejeitaram as rígidas estruturas do islamismo militante contemporâneo.

Simpatizantes se reúnem para saudar Hollande durante sua curta visita de duas horas em Timbuktu, Mali, sábado (2/2/2013) (Foto: AP)
Os frágeis manuscritos de Timbuktu, alguns dos quais sobreviventes de mais de 1.000 anos, sempre foram tidos como repositório da herança cultural islâmica na África Ocidental – dos mais antigos legados da grande arte literária do continente africano ao sul do Saara, tesouros de sabedoria em diversos campos, astronomia, zoologia, história cultural, geografia e lei islâmica.

Hollande desfilou para as câmeras, inspecionando os destroços de uma herança cultural desonrada. Os anfitriões malianos assistiam a tudo, com ar de horror e medo. Os ataques dos jatos franceses começados dia 11 de janeiro salvaram aqueles governantes e seus círculo de amigos-do-rei, dos salafistas e de uma linhagem de islamistas wahhabistas avessa a qualquer concessão. O povo do Mali é muçulmano, mas não são doidos fanáticos. A carnificina no norte do Mali, que irrompeu no momento em que os salafistas tomaram o poder, e a perspectiva de constituir-se ali um estado islamista, forçaram um reposicionamento ideológico e político em toda a África Ocidental.

Conspiração neocolonialista: Os malianos foram informados, em termos absolutamente claros, de que valeria a pena ouvir o que dizia Paris.

Caberá a nós, africanos, por um lado, unir os pontos entre o genuíno júbilo da população maliana ante a presença francesa em seu país predominantemente muçulmano e, por outro, a assertividade sempre crescente das antigas potências colonialistas como franceses e britânicos na região do oeste da África? Os líderes africanos saberão o que fazem e o farão seriamente, quando admitem a implantação de soldados franceses como poder militar dominante no Mali? Afinal de contas, os franceses não se cansam de repetir que sua presença no Mali é temporária.

Nas declarações públicas, políticos franceses só falam das vantagens de o Mali contar com a potência militar francesa. O presidente Hollande da França, saudado como redentor, ganhou de presente um camelo recém-nascido, dádiva de gratidão do povo do Mali, ao exército francês de intervenção. Mas Hollande cuidou de lembrar aos anfitriões que “os terroristas foram abalados, mas não desapareceram”.

Paris joga sua cartada de longo prazo, a sempre mesma velha visão da grandeur francesa. “Não podemos tolerar o que aconteceu em Timbuktu” – Hollande insistiu na referência ao inferno criado pelos islamistas armados do grupo Ansar al-Dine, que incineraram cerca de 2.000 manuscritos de valor histórico incalculável, em Timbuktu.

A França passa agora a usar força militar, além da diplomacia, como instrumento de política externa para a África. Claro: essa estratégia beligerante será levada a efeito em conjunção com potências regionais, como a Argélia, e grupamentos regionais, como a Comunidade Econômica de Estados da África Ocidental [orig.Economic Community of West African States (ECOWAS)] e seu braço armado, ECOMOG, o grupo de monitoramento da ECOWAS. Um candente ressentimento contra salafistas e todos os tipos de militantes islamistas armados irradia-se de todas as esquinas da África Ocidental.

Salafistas versus secularistas: Um dos solipsismos dos secularistas consiste em atribuir salafismo a todo o Golfo Árabe, especialmente à Arábia Saudita, como uma espécie de “dano colateral” da diplomacia dos petrodólares. Mas em tempos de ódios incontrolados, desemprego e juventude sem qualquer perspectiva de futuro político, nada mais fácil para os grupos salafistas da África Ocidental, que arregimentar seguidores.

Leopold Senghor
Os militantes islamistas armados supuseram que teriam desmontado todo o establishment político secularista na África Ocidental, ou que, no mínimo, estariam a um passo de desmontá-lo. Digam e pensem o que disserem ou pensarem os apressados arrogantes, o secularismo é tradição perfeitamente respeitável na África Ocidental. O primeiro presidente do Senegal, o falecido Leopold Senghor, foi católico romano devoto e secularista; apesar disso, governou nação predominantemente muçulmana. O Senegal e o Mali já foram governados como nação única. E Senghor era conhecido por consultar e ouvir intelectuais muçulmanos e autoridades religiosas muçulmanas.

Para Senghor era normal e lógico cultivar a amizade de clérigos muçulmanos da África Ocidental e os líderes venerados de diversas ordens sufis. Foi traço que redimiu o secularismo aos olhos dos locais – o talento para acomodar-se ao Outro. Essas são as políticas ainda corretas e adequadas, de fato, são políticas imperativas, ainda hoje e aqui, no mundo contemporâneo.

Faz sentido, pois, para Hollande e seus contrapartes da África Ocidental, perseguir políticas de acomodação. Mas o problema é que esse ideal de viver-e-deixar-viver é anátema, no que tenha a ver com militantes islamistas armados. Os salafistas da África Ocidental têm seus campos de caça entre massas assoladas pela miséria em estados falidos, com medidas que interferem na vida diária, como códigos de conduta e vestuário, tanto quanto nos valores culturais e nas práticas sociais, que são parte fundante de seu discurso de proselitismo.

O ocidente ganha terreno: Os muçulmanos moderados da África Ocidental sonham com manter terreno no campo intermediário. Os militantes islamistas armados, em agudo contraste, demonstraram o quanto são falhadas as suas estratégias de engenharia e controle sociais. No Mali, é indispensável uma autoridade centralizada na capital Bamako, que se encarregue de buscar solução para os problemas de subdesenvolvimento, analfabetismo, miséria e periferialização das massas empobrecidas.

Mas Bamako carece desesperadamente de dinheiro para operar como deve operar, se ainda resta esperança de evitar o futuro trágico de converter-se em mais um estado falhado. Os pobres são em larga medida ignorados pela opinião pública ocidental, sobretudo nos corredores do poder em Paris e nas novas cortes francesas que se vão instalando na África Ocidental.

Hollande junta as mãos com Traore do Mali na Independence Plaza, em Bamako, Mali, sábado (2/2/2013) (Foto: Reuters)
Contra esse pano de fundo, entende-se que a França seja amplamente vista como força benéfica. No quadro duríssimo da política real na África, os líderes africanos são subservientes aos patrões ocidentais. Hollande enfeitiçou as multidões no Mali. Bem diferente disso, o digno e respeitável presidente interino Dioncounda Traore teve gélida recepção em seu próprio país. Só a França conta. Só a França interessa. Isso ficou impressionantemente claro. No que tenha a ver com complacência com os lacaios neocolonialistas, as massas, nas neocolônias, entendem que a implantação do capitalismo, da democracia e o respectivo desenvolvimento dependem da generosidade ocidental.

Mobutu Sese Seko
O ocidente pode facilmente isolar líderes da África Ocidental e mantê-los distantes do que acontece em seus próprios países. Caso exemplar de homem forte da África neocolonizada nos anos 1970s e 1980s foi Mobutu Sese Seko, do Zaire. Dioncounda Traore é ator muitíssimo menos importante do que foi Mobutu em seus dias de glória.

O presidente do Mali dá-se por muito satisfeito se puder andar à sombra do presidente francês. A França e a Europa padecem sob a húbris econômica, mas a África vive sob desespero sem limites. Os anos de ouro da diplomacia árabe do petrodólar na África já são passado. O último prego do caixão foi o assassinato de Muammar Gaddafi, da Líbia. A pergunta mais óbvia que os africanos se fazem é se os árabes ainda poderiam promover qualquer mínima prosperidade. A resposta é um simples “não”.

Apesar do quase sempre descrédito que os árabes geram na África, ainda há os que se arrastam sob a noção nostálgica e surreal de um estado salafista no Saara. O ocidente não tolerará tal ultraje. As potências ocidentais não cederão o urânio do Níger, país que fornece 40% do combustível nuclear que faz funcionar as usinas nucleares francesas. Nem o ocidente sequer considera a possibilidade de vir a perder o controle sobre a fabulosa riqueza, em petróleo, que há na Argélia e na Líbia.

O primeiro-ministro britânico David Cameron fez a jogada do policial “bonzinho”, ao fazer uma visita surpresa à Líbia, depois de rápida visita a Argel. “O povo britânico quer estar com vocês e ajudar a suprir a maior segurança de que a Líbia carece” – disse Cameron aos seus anfitriões líbios. “Por isso oferecemos treinamento e apoio da nossa polícia e dos nossos exércitos. Esperamos trabalhar juntos nos anos que virão” – Cameron lançou a isca, para relacionamento de longo prazo.

A tentação do paganismo: Hoje, o alto establishment religioso islâmico na África ocidental veste cinto e suspensórios. As regras dos jogos religiosos mudaram radicalmente. Os malianos são muçulmanos, mas atraí-los para as mesquitas só se os militantes islâmicos forem impedidos de usar o púlpito para arregimentar novos seguidores. Muitos malianos, e não só da elite, veem a intervenção militar francesa como primeiro passo forte para reformar a cultura islâmica no país.

O resultado das incursões de militantes islamistas armados no Mali foi o pior possível. Por mais de mil anos, o Mali viveu sob um robusto código islâmico de conduta. Relações entre diferentes grupos étnicos baseavam-se em valores tradicionais de confiança mútua. O povo do Mali não precisou de muito tempo para compreender como funcionam os militantes islamistas armados. Mas o problema não começa e termina com os salafistas. As ideias que os militantes islamistas armados promovem perderam o apoio e a confiança populares.

A presença militar dos franceses no Mali levou a visível aumento do otimismo entre a população. Não raras vezes, é muito difícil definir o que seja “cultura”. Mas o retorno a modos culturais de vida pré-islâmica é perceptível. O cristianismo jamais deitou raízes no Mali, em boa parte porque os colonizadores franceses, eles mesmos, eram indiferentes à religião. Mesmo assim, que os franceses neocolonialistas não contem com vitória fácil sobre os salafistas do Saara.

Iyad Ag Ghaly
Os grupos salafistas no Mali são absolutamente todos eles desmembramentos do Grupo de Salafistas da Argélia Para Pregação e Combate [orig. Algerian Salafist Group for Preaching and Combat (GSPC)], a organização que lançou a guerra civil da Argélia na “Década Perdida” dos anos 1990s, que levou à morte 250 mil argelinos. Outros grupos malianos de islamistas militantes armados emergiram daquelas cinzas, inclusive o violentíssimo “Batalhão Assinado em Sangue” [orig.Signed-in-Blood Battalion]. Outros são o Movimento por Unidade e Jihad na África Ocidental (MUJAO) e o Movimento Islâmico pela Libertação do Azawad, uma milícia tuaregue salafista. Evidentemente, Iyad Ag Ghaly, o líder tuaregue étnico do temido grupo Ansar al-Dine – milícia responsável por muitas das atrocidades cometidas durante a ocupação salafista do norte do Mali – só fez, infelizmente, endurecer o comportamento de muçulmanos malianos não tuaregues e não árabes contra esses dois grupos étnicos, facilmente identificáveis pelo tom de pele acentuadamente mais claro. Malianos de pele mais escura já ameaçam com retaliações.

Ninguém sabe com razoável certeza a extensão do poder desses grupos dentro do Mali. No momento, dispersaram-se pelo deserto. Os malianos dizem hoje aos militantes islamistas armados: “Se não apreciam nossos valores culturais, sumam daqui”. Foi o que eles fizeram. Ou, pelo menos, é o que dizem os franceses e a neocorte francesa local.

Retaliações racistas: A bem visível tensão racial no Mali, hoje, é sinal alarmante de uma espiral descendente rumo ao caos político e social no país, em escala jamais vista. Há luta racial latente desde a independência do Mali, da França, em 1960. Os tuaregues, de tempos em tempos, tentaram declarar-se independentes e criar um estado exclusivamente Azawad no norte do Mali. Nos vizinhos Mauritânia e Senegal, houve confronto racial nos anos 1990s. Infelizmente, talvez seja, agora, a vez do Mali.

Mas Bamako tem fracassado repetidamente na tentativa, se houve, de articular alguma alternativa, e há sinais de que alguns políticos no sul do Mali já tentam beneficiar-se do revide contra árabes e tuaregues, apadrinhados pela França.

O que esperar depois da partida dos franceses? As tensões aumentam em torno de territórios disputados no deserto, onde se escondem imensas reservas minerais; deve-se esperar que militantes islamistas armados ressurjam de seus esconderijos nas montanhas, com força militar para lutar contra o governo central do Mali em Bamako?

Em vez de todos se concentrarem na fragilidade psicológica pressuposta nos adversários que hoje se espalham pelas vastidões desérticas do Mali na parte norte do país, a sociedade civil maliana teria de ser fortalecida e capacitada para implantar, ela mesma, a democracia no país, de tal modo que nem os tuaregues secularistas nem os islamistas armados tenham espaço para, novamente, levantar-se contra o governo central em Bamako.

O que emergiu bem claramente, como guia e eixo para o futuro político do Mali é que, se os dois campos – árabes e tuaregues, por um lado; e africanos nativos, por outro – não conseguirem construir algum consenso, não apenas mergulharão todos, sem dúvida, num mesmo poço sem fundo, como, também, o Mali se condenará ao destino de ser mais um estado falhado, na cena política africana.

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