sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O desastroso papado de Bento XVI


12/2/2013, John Cassidy*, The New Yorker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Poupem-me de mais cobertura reverencial sobre o Papa Bento XVI e sua decisão de entregar o cargo. No plano pessoal, desejo-lhe felicidades. Aos 85 anos e cada dia mais fraco, sem dúvida merece descansar. Mas no que tenha a ver com o que fez, verdade seja dita, já vai tarde. Seu longo mandato no Vaticano, que incluiu mais de 20 anos no cargo de defensor da teologia da Igreja Católica antes de ser escolhido Papa em 2005, foi, pode-se dizer, quase completo desastre. Ao se opor declaradamente ao mundo moderno em geral, ao meter os pés pelas mãos ao não responder adequada e decentemente a um dos mais horrendos escândalos dentro da Igreja desde a Reforma, o Vaticano de Bento XVI pôs em risco o futuro da Igreja e alienou quantidades incontáveis de católicos em todo o mundo, que foram formadas pelos preceitos da Igreja. Não que faça alguma diferença, mas podem incluir meu nome nessa triste lista.

Em Leeds, West Yorkshire, as freiras da Escola Primária Sagrado Coração ensinavam o Novo Testamento, a mim e aos meus colegas de classe, usando livros bem finos, de capa dura, encadernados em azul escuro. Cada um de nós recebia quatro livrinhos: “As boas novas, segundo Lucas”, “As boas novas, segundo Mateus”, “As boas novas, segundo Marcos” e “As boas novas, segundo João”. Dos quatro evangelistas, Lucas era, de longe, o mais gasto, porque ali se liam muitas parábolas de Jesus; e também Mateus, onde se lia o Sermão da Montanha: “Abençoados os pobres de espírito: deles é o reino dos céus. Abençoados os que sofrem, porque serão consolados. Abençoados os que nada têm, porque herdarão a terra”.

Vivíamos o início dos anos 1970, era de esperança e otimismo para muitos católicos. Acompanhando de perto o que pregava o Segundo Concílio Vaticano convocado pelo Papa João XXIII em 1959, a Igreja dedicava-se empenhadamente a modernizar algumas de suas doutrinas e práticas. As missas, por muitos séculos limitadas ao latim, podiam então ser celebradas em outros idiomas. Os sacerdotes, que tradicionalmente davam as costas aos fiéis, postados de frente para o altar, foram instruídos para olhar no rosto de seus congregados e convidá-los a participar. Em vez de focar antigos dogmas e ritualizações, via-se um retorno aos verdadeiros ensinamentos de Jesus, interpretados então por vias cada vez mais igualitárias e libertárias, como nos versos de um canto popular que cantávamos na igreja, do qual ainda lembro alguns versos:

Ele enviou-me para trazer Boas Novas aos pobres.
Para dizer aos encarcerados, que estão livres
Para dizer aos cegos, que podem ver,
Para libertar todos os decaídos e humilhados.

Naquele tempo, eu não sabia, mas a preocupação da igreja com questões pão-e-manteiga vinha de cima. Em 1967, o Papa Paulo VI, sucessor de João XXIII, lançara “Populorum Progressio”, encíclica sobre “o desenvolvimento dos povos”, segundo a qual a economia devia cuidar das carências dos muitos, não só dos interesses de uns poucos. Ao atualizar os ensinamentos da Igreja, para que olhasse a miséria e a desigualdade que se alastravam, o Pontífice reconheceu o direito a salário justo, à segurança do emprego e a condições decentes de trabalho. Reconheceu até o direito do empregado a engajar-se em seu sindicato.

Gustavo Gutiérrez
Nem todos partilhavam a visão do Catolicismo como força de promoção urgente da justiça social, embora muitos, na América do Sul e em outras áreas em desenvolvimento do mundo a tenham abraçado com paixão. Em vários locais, passou a ser conhecida como “teologia da libertação” – expressão cunhada pelo padre peruano Gustavo Gutierrez. Muitos outros sacerdotes, entre os quais o venerável Canon Flynn, pastor da igreja da minha cidade, Nossa Senhora de Lurdes, pouca atenção deram às novidades. Bastava-lhes celebrar os sacramentos como sempre haviam feito, dizer missa diariamente, distribuir a extrema unção aos paroquianos moribundos e receitar “três Padre-Nosso e três Ave-Maria” aos penitentes, entre os quais eu, menino, que chegavam para confessar os pecados. Mas a energia e o futuro da igreja pareciam concentrar-se entre os modernizadores.

Isso, apesar de o Papa Paulo VI ter reafirmado também muitos das tradicionais restrições do Vaticano no campo social, como contra o sexo fora do casamento, a homossexualidade e a favor do celibato forçado para sacerdotes e freiras. Paulo VI não foi papa revolucionário. Nada queria alterar das duras ordenações que vários papas romanos haviam imposto à cristandade durante a Idade Média. Mas no que tivesse a ver com paz e justiça social, com a tolerância com outras religiões nas suas muitas viagens – era chamado “o Papa Peregrino” – e em algumas reformas que introduziu no Vaticano, como o fim da coroa papal e a proibição de que cardeais com mais de 80 anos votassem nas eleições papais, Paulo VI dava sinais claros de algum interesse em reconciliar a Igreja e a realidade moderna.

Com a chegada do Papa João Paulo II, em 1979, tudo isso começou a mudar. Em vários sentidos, Karol Wojtyla fora homem admirável: participou da resistência polonesa contra os nazistas; fez ativa oposição às guerras e ao militarismo (em 2003, criticou a invasão do Iraque); apoiava o cancelamento das dívidas do mundo em desenvolvimento; e foi líder massivamente carismático. Mas em termos teológicos e práticos, foi terrível retrocesso. Com o cardeal Joseph Ratzinger, o futuro Bento XVI, ao seu lado, como principal teólogo do Vaticano, Wojtyla dedicou-se a desfazer boa parte do projeto de modernização dos 20 anos anteriores. Criou leis em que condenava ampla e enfaticamente o aborto, o controle da natalidade e a homossexualidade. Cancelou alguns movimentos de relaxamento na obrigatoriedade do celibato para padres e na autorização de ordenação de mulheres. Criticou a teoria da libertação e cercou-se de ultraconservadores, como Ratzinger. Questionar os ensinamentos tradicionais, ainda que em tom respeitoso e humilde, passou a ser marca de fim potencial de qualquer carreira dentro da hierarquia da Igreja.

Depois da morte de João Paulo, em 2005, Ratzinger assumiu; e a contraofensiva conservadora prosseguiu. De fato, intensificou-se. O Vaticano levantou a proibição à missa em latim e chamou de volta à Igreja alguns membros excomungados da Sociedade do Santo Pio X, grupo ultraconservador dedicado a fazer reverter o Segundo Concílio Vaticano. Criticando a “cultura do relativismo” nas sociedades modernas e “a liberdade anárquica que se faz passar falsamente por liberdade”, Bento XVI deixou claro que via, como sua missão fundamental, não ampliar e difundir a Igreja Católica e, sim, purificá-la; por “purificar a Igreja” ele jamais significou ter de enfrentar o escândalo da pedofilia na Igreja. Referia-se a podar os galhos não alinhados e trazer a Igreja de volta à trilha que, para ele, seria a limpa e certa. Se esse processo alienasse alguns membros atuais e passados da fé, que assim fosse. Bento XVI disse várias vezes que a Igreja bem poderia tornar-se mais saudável, se fosse menor.

Hans Küng
Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, Hans Küng, teólogo suíço dissidente, que conheceu Bento XVI quando ambos eram jovens padres na Alemanha, propôs interessante comparação entre Bento XVI e Vladimir Putin, mostrando que os dois herdaram importantes reformas políticas que decidiram reverter a qualquer custo. Putin e Bento, ambos “instalaram associados deles em posições chaves e marginalizaram os que lhes interessava marginalizar” – disse Küng. E acrescentou:

Podem-se traçar outros paralelos: o enfraquecimento do Parlamento russo e do Sínodo de Bispos do Vaticano; a degradação dos governadores das províncias russas e dos bispos católicos, que os converteu em meros executores de ordens; uma “nomenclatura” conformista; e obcecada resistência a qualquer reforma real. (...) Sob o papa alemão, uma “claque” de gente que segue o chefe, sem qualquer simpatia por qualquer tipo de reforma, foi convocada para integrar-se ao poder. São parcialmente responsáveis pela estagnação que se abateu sobre o sistema da Igreja.

Viu-se em ação essa estratégia de dispor as carroças em círculo fechado e desafiar o mundo, com resultado terrível, na reação da Igreja ao escândalo das crianças vítimas de abusos por padres católicos. Como funcionário do Vaticano ao qual o Papa João Paulo II ordenou que enfrentasse aquela crise, Ratzinger teve contato direto e amplíssimo com imensa quantidade de provas de que o abuso sexual de crianças era prática disseminada e tolerada por autoridades da Igreja. Mas só vários anos depois, quando ainda mais crimes haviam sido cometidos, o já então Papa Bento XVI pediu desculpas pelos atos dos pedófilos, adotou política de tolerância zero e até se reuniu com algumas das vítimas. Mas, mesmo então – dizem alguns críticos – o Papa e vários de seus colegas no Vaticano recusaram-se a investigar, descobrir e punir os padres pedófilos.

“O currículo de omissão desse Papa é terrível” – disse ao jornal The Guardian, David Clohessy, diretor executivo da Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (12 mil membros). – “Ele conhece mais e mais detalhadamente sobre abusos sexuais cometidos por padres e acobertados pela Igreja que qualquer outra pessoa dentro da Igreja. E fez absolutamente nada para proteger as crianças”.

John Kelly
Da Irlanda, onde prosseguem as investigações de abuso sexual em larga escala em orfanatos e escolas administradas pela Igreja Católica, John Kelly, um dos fundadores da rede irlandesa de Sobreviventes de Abusados por Padres, diz:

“Lamento dizer, mas o Papa Bento XVI não deixará saudades. Mas, com ele ou sem ele, o Vaticano continuará a impedir que se investiguem os crimes de abuso sexual de crianças cometidos durante seu papado. Na nossa avaliação, o Papa prometeu e quebrou a própria promessa”.

Como resultado dos escândalos sexuais não investigados e da tola tentativa em que o Vaticano se compromete de fazer andar para trás o relógio da história, a Igreja de Bento XVI caminha de mal, a pior, fazendo papel cada dia mais lamentável. Em todo o mundo desenvolvido, o número de fiéis nas igrejas definha sem parar e faltam interessados em trabalhar como padres. Na Irlanda, e até na Alemanha de Bento XVI, os jovens desertam aos magotes da igreja. E até em países em desenvolvimento, como o Brasil, a Igreja Católica perde espaço e fiéis para outros credos.

Claro, os católicos ainda são mais de um bilhão, há ainda pontos de luz e indivíduos que nos inspiram. Em visita à minha família em Leeds, há algum tempo, soube de um jovem padre polonês, cheio e energia e entusiasmo, que assumiu a direção da igreja da minha infância e tenta salvá-la da demolição. Para fazer algum bem efetivo e levantar algum dinheiro, ele planejava converter a igreja em casa de internamento provisório para jovens delinquentes. Ouvi-o celebrar missa aos gritos, como possuído – o que me fez lembrar com saudade do Catolicismo do Sermão da Montanha e de São Francisco de Assis, que as freiras tanto fizeram para meter na minha cabeça, há décadas.

Mas em Roma, os teólogos conservadores ainda comandam o show e, infelizmente, o mais provável é que as coisas continuem como estão.

“Durante seu papado – disse Küng  – Bento XVI ordenou tantos cardeais conservadores e reacionários, que dificilmente haverá entre eles, hoje, alguém com competência e sabedoria para salvar a Igreja Católica das muitas facetas da crise em que está naufragando”.
__________________________

John Cassidy* é articulista do The New Yorker desde 1995. Autor de inúmeros artigos para a revista abrangendo desde temas de personalidades como Alan Greenspan e Ben Bernacke até assuntos como a indústria iraquiana do petróleo e economia de Hollywwod. Agita o blog Rational Irrationality. no website The New Yorker. Seu último livro, How Markets Fail: The Logic of Economic Calamities, foi publicado em novembro de 2009, por Farrar, Straus and Giroux.
Cassidy também contribui com o The New York Review of Books e é comentarista financeiro da BBC. Trabalhou como jornalista em ambos os lados do Atlântico antes de vir para o The New Yorker. Durante 3 anos (desde 1986) foi chefe do escritório do Sunday Times, de Londres em New York e editor de negócios entre 1991 e 1993. Entre 1993 e 1995 foi Business Editor do jornal New York Post.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.