12/2/2013, John Cassidy*,
The New Yorker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Poupem-me
de mais cobertura reverencial sobre o Papa Bento XVI e sua decisão de entregar o
cargo. No plano pessoal, desejo-lhe felicidades. Aos 85 anos e cada dia mais
fraco, sem dúvida merece descansar. Mas no que tenha a ver com o que fez,
verdade seja dita, já vai tarde. Seu longo mandato no Vaticano, que incluiu mais
de 20 anos no cargo de defensor da teologia da Igreja Católica antes de ser
escolhido Papa em 2005, foi, pode-se dizer, quase completo desastre. Ao se opor
declaradamente ao mundo moderno em geral, ao meter os pés pelas mãos ao não
responder adequada e decentemente a um dos mais horrendos escândalos dentro da
Igreja desde a Reforma, o Vaticano de Bento XVI pôs em risco o futuro da Igreja
e alienou quantidades incontáveis de católicos em todo o mundo, que foram
formadas pelos preceitos da Igreja. Não que faça alguma diferença, mas podem
incluir meu nome nessa triste lista.
Vivíamos
o início dos anos 1970, era de esperança e otimismo para muitos católicos.
Acompanhando de perto o que pregava o Segundo Concílio Vaticano convocado pelo
Papa João XXIII em 1959,
a Igreja dedicava-se empenhadamente a modernizar algumas
de suas doutrinas e práticas. As missas, por muitos séculos limitadas ao latim,
podiam então ser celebradas em outros idiomas. Os
sacerdotes, que tradicionalmente davam as costas aos fiéis, postados de frente
para o altar, foram instruídos para olhar no rosto de seus congregados e
convidá-los a participar. Em vez de focar antigos dogmas e ritualizações, via-se
um retorno aos verdadeiros ensinamentos de Jesus, interpretados então por vias
cada vez mais igualitárias e libertárias, como nos versos de um canto popular
que cantávamos na igreja, do qual ainda lembro alguns
versos:
Ele
enviou-me para trazer Boas Novas aos pobres.
Para
dizer aos encarcerados, que estão livres
Para
dizer aos cegos, que podem ver,
Para
libertar todos os decaídos e humilhados.
Naquele
tempo, eu não sabia, mas a preocupação da igreja com questões pão-e-manteiga
vinha de cima. Em 1967, o Papa Paulo VI, sucessor de João XXIII, lançara
“Populorum Progressio”, encíclica sobre “o desenvolvimento dos povos”, segundo a
qual a economia devia cuidar das carências dos muitos, não só dos interesses de
uns poucos. Ao atualizar os ensinamentos da Igreja, para que olhasse a miséria e
a desigualdade que se alastravam, o Pontífice reconheceu o direito a salário
justo, à segurança do emprego e a condições decentes de trabalho. Reconheceu até
o direito do empregado a engajar-se em seu sindicato.
Gustavo Gutiérrez |
Nem
todos partilhavam a visão do Catolicismo como força de promoção urgente da
justiça social, embora muitos, na América do Sul e em outras áreas em
desenvolvimento do mundo a tenham abraçado com paixão. Em vários locais, passou
a ser conhecida como “teologia da libertação” – expressão cunhada pelo padre
peruano Gustavo Gutierrez. Muitos outros sacerdotes, entre os quais o venerável
Canon Flynn, pastor da igreja da minha cidade, Nossa Senhora de Lurdes, pouca
atenção deram às novidades. Bastava-lhes celebrar os sacramentos como sempre
haviam feito, dizer missa diariamente, distribuir a extrema unção aos
paroquianos moribundos e receitar “três Padre-Nosso e três Ave-Maria” aos
penitentes, entre os quais eu, menino, que chegavam para confessar os pecados.
Mas a energia e o futuro da igreja pareciam concentrar-se entre os
modernizadores.
Isso,
apesar de o Papa Paulo VI ter reafirmado também muitos das tradicionais
restrições do Vaticano no campo social, como contra o sexo fora do casamento, a
homossexualidade e a favor do celibato forçado para sacerdotes e freiras. Paulo
VI não foi papa revolucionário. Nada queria alterar das duras ordenações que
vários papas romanos haviam imposto à cristandade durante a Idade Média. Mas no
que tivesse a ver com paz e justiça social, com a tolerância com outras
religiões nas suas muitas viagens – era chamado “o Papa Peregrino” – e em
algumas reformas que introduziu no Vaticano, como o fim da coroa papal e a
proibição de que cardeais com mais de 80 anos votassem nas eleições papais,
Paulo VI dava sinais claros de algum interesse em reconciliar a Igreja e a
realidade moderna.
Com
a chegada do Papa João Paulo II, em 1979, tudo isso começou a mudar. Em vários
sentidos, Karol Wojtyla fora homem admirável: participou da resistência polonesa
contra os nazistas; fez ativa oposição às guerras e ao militarismo (em 2003,
criticou a invasão do Iraque); apoiava o cancelamento das dívidas do mundo em
desenvolvimento; e foi líder massivamente carismático. Mas em termos teológicos
e práticos, foi terrível retrocesso. Com o cardeal Joseph Ratzinger, o futuro
Bento XVI, ao seu lado, como principal teólogo do Vaticano, Wojtyla dedicou-se a
desfazer boa parte do projeto de modernização dos 20 anos anteriores. Criou leis
em que condenava ampla e enfaticamente o aborto, o controle da natalidade e a
homossexualidade. Cancelou alguns movimentos de relaxamento na obrigatoriedade
do celibato para padres e na autorização de ordenação de mulheres. Criticou a
teoria da libertação e cercou-se de ultraconservadores, como Ratzinger.
Questionar os ensinamentos tradicionais, ainda que em tom respeitoso e humilde,
passou a ser marca de fim potencial de qualquer carreira dentro da hierarquia da
Igreja.
Depois
da morte de João Paulo, em 2005, Ratzinger assumiu; e a contraofensiva
conservadora prosseguiu. De fato, intensificou-se. O Vaticano levantou a
proibição à missa em latim e chamou de volta à Igreja alguns membros
excomungados da Sociedade do Santo Pio X, grupo ultraconservador dedicado a
fazer reverter o Segundo Concílio Vaticano. Criticando a “cultura do
relativismo” nas sociedades modernas e “a liberdade anárquica que se faz passar
falsamente por liberdade”, Bento XVI deixou claro que via, como sua missão
fundamental, não ampliar e difundir a Igreja Católica e, sim, purificá-la; por
“purificar a Igreja” ele jamais significou ter de enfrentar o escândalo da
pedofilia na Igreja. Referia-se a podar os galhos não alinhados e trazer a
Igreja de volta à trilha que, para ele, seria a limpa e certa. Se esse processo
alienasse alguns membros atuais e passados da fé, que assim fosse. Bento XVI
disse várias vezes que a Igreja bem poderia tornar-se mais saudável, se fosse
menor.
Hans Küng |
Em entrevista
à revista alemã Der Spiegel, Hans Küng, teólogo
suíço dissidente, que conheceu Bento XVI quando ambos eram jovens padres na
Alemanha, propôs interessante comparação entre Bento XVI e Vladimir Putin,
mostrando que os dois herdaram importantes reformas políticas que decidiram
reverter a qualquer custo. Putin e Bento, ambos “instalaram associados deles em
posições chaves e marginalizaram os que lhes interessava marginalizar” – disse
Küng. E acrescentou:
Podem-se
traçar outros paralelos: o enfraquecimento do Parlamento russo e do Sínodo de
Bispos do Vaticano; a degradação dos governadores das províncias russas e dos
bispos católicos, que os converteu em meros executores de ordens; uma
“nomenclatura” conformista; e obcecada resistência a qualquer reforma real.
(...) Sob o papa alemão, uma “claque” de gente que segue o chefe, sem qualquer
simpatia por qualquer tipo de reforma, foi convocada para integrar-se ao poder.
São parcialmente responsáveis pela estagnação que se abateu sobre o sistema da
Igreja.
Viu-se
em ação essa estratégia de dispor as carroças em círculo fechado e desafiar o
mundo, com resultado terrível, na reação da Igreja ao escândalo das crianças
vítimas de abusos por padres católicos. Como funcionário do Vaticano ao qual o
Papa João Paulo II ordenou que enfrentasse aquela crise, Ratzinger teve contato
direto e amplíssimo com imensa quantidade de provas de que o abuso sexual de
crianças era prática disseminada e tolerada por autoridades da Igreja. Mas só
vários anos depois, quando ainda mais crimes haviam sido cometidos, o já então
Papa Bento XVI pediu desculpas pelos atos dos pedófilos, adotou política de
tolerância zero e até se reuniu com algumas das vítimas. Mas, mesmo então –
dizem alguns críticos – o Papa e vários de seus colegas no Vaticano recusaram-se
a investigar, descobrir e punir os padres pedófilos.
“O
currículo de omissão desse Papa é terrível” – disse
ao jornal The Guardian, David
Clohessy, diretor executivo da Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (12
mil membros). – “Ele conhece mais e mais
detalhadamente sobre abusos sexuais cometidos por padres e acobertados pela
Igreja que qualquer outra pessoa dentro da Igreja. E fez absolutamente nada para
proteger as crianças”.
John Kelly |
Da
Irlanda, onde prosseguem as investigações de abuso sexual em larga escala em
orfanatos e escolas administradas pela Igreja Católica, John
Kelly, um dos fundadores da rede irlandesa de Sobreviventes de Abusados por
Padres, diz:
“Lamento dizer, mas o Papa Bento
XVI não deixará saudades. Mas, com ele ou sem ele, o Vaticano continuará a
impedir que se investiguem os crimes de abuso sexual de crianças cometidos
durante seu papado. Na nossa avaliação, o Papa prometeu e quebrou a própria
promessa”.
Como
resultado dos escândalos sexuais não investigados e da tola tentativa
em que o
Vaticano se compromete de fazer andar para trás o relógio da
história, a Igreja de Bento XVI caminha de mal, a pior, fazendo papel cada dia
mais lamentável. Em todo o mundo desenvolvido, o número de fiéis nas igrejas
definha sem parar e faltam interessados em trabalhar como padres. Na Irlanda, e
até na Alemanha de Bento XVI, os jovens desertam aos magotes da igreja. E até em
países em desenvolvimento, como o Brasil, a Igreja Católica perde espaço e fiéis
para outros credos.
Claro,
os católicos ainda são mais de um bilhão, há ainda pontos de luz e indivíduos
que nos inspiram. Em visita à minha família em Leeds, há algum tempo, soube de
um jovem padre polonês, cheio e energia e entusiasmo, que assumiu a direção da
igreja da minha infância e tenta salvá-la da demolição. Para fazer algum bem
efetivo e levantar algum dinheiro, ele planejava converter a igreja em casa de
internamento provisório para jovens delinquentes. Ouvi-o celebrar missa aos
gritos, como possuído – o que me fez lembrar com saudade do Catolicismo do
Sermão da Montanha e de São Francisco de Assis , que as
freiras tanto fizeram para meter na minha cabeça, há décadas.
Mas
em Roma, os teólogos conservadores ainda comandam o show e, infelizmente,
o mais provável é que as coisas continuem como estão.
“Durante
seu papado – disse
Küng –
Bento XVI ordenou tantos cardeais conservadores e reacionários, que dificilmente
haverá entre eles, hoje, alguém com competência e sabedoria para salvar a Igreja
Católica das muitas facetas da crise em que está naufragando”.
John Cassidy* é articulista do The New
Yorker desde 1995. Autor de inúmeros
artigos para a revista abrangendo desde temas de personalidades como Alan
Greenspan e Ben Bernacke até assuntos como a indústria iraquiana do petróleo e
economia de Hollywwod. Agita o blog Rational Irrationality.
no website The New Yorker.
Seu último livro,
How Markets Fail: The Logic of Economic
Calamities, foi publicado em novembro de 2009, por Farrar, Straus and Giroux.
Cassidy também contribui com o The New York Review of Books e é
comentarista financeiro da BBC. Trabalhou como jornalista em ambos os lados do
Atlântico antes de vir para o The New
Yorker. Durante 3 anos (desde 1986) foi chefe do escritório do Sunday Times, de Londres em New York e editor de negócios entre 1991
e 1993. Entre 1993 e 1995 foi Business
Editor do jornal New York
Post.
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