26/2/2013, David H. Price entrevista
Marshall Sahlins,
Counterpunch
Traduzida pelo pessoal da Vila Vudu
David H. Price |
6ª-feira
passada, o conhecido e respeitado antropólogo da Universidade de Chicago, Marshall Sahlins renunciou formalmente à condição de membro eleito da Academia
Nacional de Ciências [orig. National Academy of Sciences (NAS)], a mais
prestigiada sociedade científica dos EUA.
Sahlins
declarou que renunciou porque tem graves “objeções à eleição de [Napoleon]
Chagnon e aos projetos de pesquisa militar que a Academia endossa”.
Sahlins
foi eleito membro da Academia Nacional de Ciências em 1991.
Adiante,
a declaração em que explica a renúncia:
Marshall Sahlins |
Como
seus próprios escritos comprovam, além de vários testemunhos, dentre os quais de
povos, profissionais e estudiosos da Região Amazônica, Chagnon provocou grave
dano às comunidades indígenas entre as quais conduziu suas pesquisas.
Simultaneamente, suas opiniões ‘científicas’ sobre a evolução humana e a seleção
genética que favoreceria a violência nos machos – como se lê em estudo que
publicou em 1988 no periódicoScience
– já se comprovaram rasas e sem qualquer base de comprovação, o que muito
contribuiu para o descrédito de toda a Antropologia. Para dizer o mínimo, sua
eleição para a Academia Nacional de Ciências dos EUA é grave mácula moral e
intelectual a pesar sobre todos os membros da Academia, motivo pelo qual minha
participação nessa Academia converte-se, para mim, em grave embaraço.
Tampouco
desejo ser parte da ajuda, do apoio, do conforto que essa Academia Nacional de
Ciências está dando à pesquisa nas ciências sociais dirigida para aprimorar o
desempenho em combate dos militares norte-americanos, militares os quais já
cobram preço excessivo ao povo norte-americano, em sangue, dinheiro e
felicidade, além do sofrimento que impuseram a outros povos nas desnecessárias
guerras desse século. Entendo que a Academia Nacional de Ciências dos EUA,ainda
que trabalhe para os militares, tem de estudar para promover a paz, em vez de
estudar meios para promover mais guerras.
Napoleon Chagnon |
Napoleon Chagnon ascendeu à fama depois de trabalho de campo que fez entre os Yanomami na
bacia do rio Orinoco nas florestas úmidas do nordeste da América do Sul, nos
anos 1960s e 70s. Escreveu uma etnografia best selling usada em aulas de
introdução à antropologia em todo o mundo, em que descreve o povo Yanomami como
“povo feroz”, por causa dos altos índices de disputas guerreiras intra e
entre-grupos durante seu trabalho de campo, disputas que Chagnon descreveu como
manifestação de tendência inata que representaria, de algum modo, um estado
natural imaginado.
Chagnon
está atualmente sob os holofotes, num tour nacional de lançamento de um
livro de memórias (Nobel
Savages) no qual apresenta a maioria dos antropólogos
norte-americanos como cretinos cabeça mole militantes pós-modernos empenhados em
guerra contra a ciência.
Fato
é, contudo, que, exceto no campo distorsivo do New York Times e de alguns
outros poucos agentes “midiáticos”, absolutamente não há qualquer antropologia
que faça “guerra à ciência” nos EUA. O que há é rejeição ampla e geral ao
trabalho de Chagnon – em todos os casos explicável e explicada pela baixa
qualidade da pesquisa que fez e faz. Em
seu blog Anthropomics,
o antropólogo Jon Marks falou de Chagnon como “antropólogo incompetente”, e
acrescentou:
Jon Marks |
Esclareçamos
o que digo com a palavra “incompetente”. Seus [de Chagnon] métodos para coletar,
analisar e interpretar os próprios dados estão fora dos parâmetros aceitáveis
como prática no campo da Antropologia. Sim, ele viu os Yanomamis fazendo coisas
terríveis. Mas quando concluiu, do que observou, que os Yanomami seriam inatamente e primordialmente “ferozes”, ele perdeu
toda a credibilidade antropológica, por que não há qualquer observação que
demonstre tal coisa. Chagnon tem pleno direito às suas opiniões pessoais, como
os criacionistas e os racistas, mas não há dado empírico que dê suporte à
conclusão, o que faz dele antropólogo incompetente.
A
rejeição amplamente disseminada entre os antropólogos, das interpretações de
Chagnon, não se dá, portanto, por alguma oposição à ciência.
Um
dos mais empenhados críticos de Chagnon foi o antropólogo Marvin Harris, arqui
positivista e firme defensor do método científico. E Harris rejeitou o trabalho
de Chagnon e suas ideias de sociobiologia em furiosos debates acadêmicos que se
arrastaram por décadas, não porque Harris trabalhasse contra a ciência, mas
porque Chagnon trabalhava como mau cientista (entre Harris e Sahlins há
diferenças teóricas fundamentais, embora ambos façam objeções semelhantes à
militarização da antropologia e ambos rejeitem o trabalho sociobiológico de
Chagnon). (...)
Em 2000, houve houve dolorosa
crise na Associação Norte-Americana de Antropologia, depois da publicação de
Darkness
in El Dorado,
de Patrick Tierney, no qual se fazem numerosas acusações de exploração (e outras
mais graves) contra Chagnon e outros antropólogos que trabalhavam com os
Yanomami (ver o ensaio de Barbara Rose
Johnson sobre o filme de José Padilha, Os segredos da
Tribo). Sem detalhar as idas e vindas envolvidas em
estabelecer a miséria dos argumentos de Chagnon, basta dizer que oferecem a
Chagnon um dos seletos assentos da Seção 51 da Academia Nacional de Ciências do
EUA é afronta a muitos antropólogos, de várias correntes teóricas,
autoidentifiquem-se ou não como cientistas.
A
renúncia de Marshall Sahlins é atitude heroica contra a subversão da ciência por
quem fale de alguma natureza humana que seria naturalmente violenta. E é
corajosa posição, também, contra a militarização da ciência. As credenciais de
Sahlins como ativo opositor à militarização do conhecimento nos EUA são bem
conhecidas, desde que criou um curso livre [orig. teach-in], autônomo, em
fevereiro de 1965 na Universidade de Michigan. Mesmo assim, deve ter sido
extremamente difícil para ele renunciar à sua tão prestigiosa posição na
Academia Nacional de Ciência dos EUA.
No
final de 1965 Sahlins viajou ao Vietnã para observar in loco a guerra e
os norte-americanos em combate, pesquisa que resultou em seu ensaio seminal “The Destruction of Conscience in
Vietnam” [A destruição da consciência no Vietnã]. Tornou-se, a partir dali,
uma das vozes antropológicas mais claras e mais vigorosas a manifestar-se contra
todos os esforços (nos anos 1960s e 70s e, novamente, nos EUA pós-11/9) para
militarizar a antropologia.
Em
2009, participei de uma conferência na Universidade de Chicago que examinou os
renovados esforços dos militares e das agências de segurança norte-americanas
para servirem-se de dados antropológicos em seus projetos de contraguerrilha em
todo o mundo. No trabalho que apresentou àquela conferência, Sahlins disse que
“no Vietnã, a estratégia mais empregada era localizar e destruir; hoje, a
estratégia é pesquisar e destruir. Mas ainda há quem argumente que haveria algo
de positivo na apropriação, pelos militares, da teoria antropológica –
apropriação incoerente, simplista, para nem falar de o quanto não passa de
repetição tediosa e cansativa de pensamento já superado – mesmo quanto seus
protocolos etnográficos para abordar sociedades e culturas locais não passem de
delírios inoperáveis”.
Ontem,
Sahlins enviou-me um e-mail que circulou entre os membros da Seção 51
(Antropologia) da Associação Nacional de Ciência dos EUA, anunciando dois novos
“projetos de avaliação de consenso”, sob patrocínio do Instituto de Pesquisa do
Exército. O primeiro projeto é “The
Context of Military Environments: Social and Organizational Factors” [O
contexto de Ambientes Militares: fatores sociais e organizacionais]; o segundo,
“Measuring Human Capabilities:
Performance Potential of Individuals and Collectives” [Avaliação de
Capacidades Humanas: Potencial de desempenho de indivíduos e coletividades].
Quem
leia os anúncios dos novos projetos, vê logo que os militares estão buscando a
ajuda de cientistas sociais e da engenharia social, para capacitar unidades
intercambiáveis de pessoas para trabalhar em projetos militares, sem ter
problemas de interface. Essa parece ser cada vez mais a função que os americanos
veem para os antropólogos e outros cientistas sociais: facilitadores das
operações militares.
A
seguir, minha conversa com Sahlins, ontem, discutindo sua renúncia, a eleição de
Chagnon para a Academia Nacional de Ciências e os laços entre a ANC e os
projetos militares.
Price:
Como Chagnon conseguiu converter os muitos ataques à sua pesquisa eticamente
incômoda e cientificamente questionável em ataque à própria ciência?
Sahlins:
Chagnon não discutiu nenhuma das questões que se levantaram contra ele,
sobretudo a crítica aos supostos dados, como se leu no artigo de 1988 [na
revista] Science, nem discutiu as críticas dos antropólogos da Amazônia
àquela etnografia rasa e oca e ao retrato distorcido que pintou dos Yanomami.
Como outros cientistas Cro-Chagnon, simplesmente se recusou a discutir os
fatos do caso etnográfico. E puseram-se a lançar ataques ad hominem.
Antes atacavam os marxistas. Agora, atacam os “humanistas de cabeça de vento”.
No entretempo, tentam inventar uma perseguição ideológica anticiência. Mais uma
vez, ironicamente, para fugir de ter de discutir as “descobertas”, os dados
empíricos. Assim, conseguem não discutir o dano grave que infligiram, física e
emocionalmente aos Yanomami; e a infame instigação à guerra, resultado de seus
métodos em campo, permanecem completamente encobertos, ignorados, em nome da
ciência. Chamei esse método, de “pesquisar e destruir”. Total desastre moral.
Price:
Quase todas as notícias sobre sua renúncia à Academia Nacional de Ciências falar
ou exclusivamente sobre a eleição de Napoleon Chagnon para a Associação, ou de
supostas “guerras científicas” na Antropologia. A mídia absolutamente não fala,
ou fala muito pouco sobre suas declarações em oposição ao laços que crescem,
cada dia mais, entre a Academia Nacional de Ciências dos EUA e projetos
militares. Como os membros da Seção 51 da Academia Nacional de Ciências dos EUA
reagiram à orientação, de outubro de 2012, para que os antropólogos da academia
orientassem suas pesquisas para aprimorar a efetividade de missões
militares?
Sahlins: A
Associação Nacional de Ciências não fará, ela mesma, pesquisa de guerra. Em vez
disso, alistará recrutas das várias sessões – como se viu, nos memorandos para a
Seção 51, de antropologia – e, provavelmente, votará para definir que trabalhos
serão publicados. O Conselho Nacional de Pesquisa organiza a pesquisa anual,
obviamente em colaboração com a Academia Nacional de Ciências. Aí está outro
tentáculo da militarização da antropologia e de outras ciências sociais, da qual
os Human Terrain Systems são exemplo
bem conhecido. É sistema insidioso, pérfido.
Price:
Houve alguma discussão interna entre os antropólogos da Seção 51 da Academia
Nacional de Ciência, quando chegaram esses “serviços encomendados” dos projetos
financiados pelo Instituto de Pesquisa do Exército?
Sahlins: Não
sei. Se houve, eu não recebi qualquer correspondência especial.
Price:
E que tipo de reação você observou entre outros membros da Academia Nacional de
Ciências? Houve reação?
Sahlins: Praticamente
nenhuma reação. Um deles disse que eu sempre sou contra sociobiologia.
Price:
Combinar questões inseridas no que Chagnon diz da natureza humana, e a Academia
Nacional de Ciências apoiar pesquisas sociais a serviço de projetos militares
norte-americanos. Você poderia comentar o papel da ciência e de sociedades
científicas numa cultura tão absolutamente dominada pela cultura militar, como
os EUA?
Sahlins: Há
alguns parágrafos de um artigo que escrevi sobre The Western Illusion of
Human Natur [A ilusão ocidental sobre a natureza humana], do qual não tenho
cópia à mão, em que cito Rumsfeld
(parafraseando Nascido para Matar [orig. Full Metal Jacket, filme
de 1987, dir. Stanley Kubrick]) sobre isso: dentro de cada muçulmano no Oriente
Médio, há um norte-americano pronto para sair, um norte-americano interessado só
na própria liberdade. Basta apertar os demônios que pregam ideias diferentes
[ver pág. 42 do artigo de Sahlins, The Western
Illusions of Human Nature]. A política global dos EUA, sobretudo
a política neoconservadora, não é baseada na confusão entre ganância capitalista
e natureza humana? Basta libertar “eles” do erro em que vivem, das ideologias
impostas de fora para dentro. Para ler sobre uma alternativa, vejam aquele
artigo (acima) e o livrinho que publiquei mês passado, What Kinship
Is–And Is Not [Parentesco: o que é e o que não é].
Price:Você
menciona um desejo de abandonar os fluxos de financiamento que vêm dos
militares, e buscar financiamentos de grupos que apoiem a paz. E como você
imagina que se possa trabalhar para conseguir essa mudança.
Sahlins: Ainda
não pensei sobre isso, provavelmente porque a ideia de que a Academia Nacional
de Ciências faça tal coisa é, hoje, absolutamente
impensável.
Eduardo Viveiros de Castro |
Há
crescente apoio internacional à posição de Sahlins. Marshall repassou-me
mensagem que recebeu do Professor Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional,
Rio de Janeiro, Brasil. Viveiros de Castro escreveu:
Os
escritos de Chagnon sobre os Yanomami da Amazônia contribuíram poderosamente
para reforçar os piores preconceitos contra esse povo indígena, o qual,
certamente, não carece desse tipo de antropologia estereotipada pseudo
científica que Chagnon optou por praticar a qualquer custo.
Os
Yanomamis absolutamente não são os robôs sociobiológicos viciosos e desprezíveis
que Chagnon pinta – projetando ele sobre os Yanomami, como tudo sugere, a
percepção que tem da sua própria sociedade (ou da própria personalidade).
Os
Yanomami são indígenas que conseguiram, contra todas as probabilidades,
sobreviver por seus meios tradicionais numa Amazônia cada vez mais ameaçada pela
destruição social e ambiental. São povo de cultura original, robusta e
inventiva. A sociedade dos yanomami é infinitamente menos “violenta” que a
sociedade brasileira ou que a sociedade norte-americana.
Praticamente
todos os antropólogos que trabalharam com os Yanomami, muitos dos quais com
experiência de campo muito maior com aquele povo, que Chagnon, consideram não
recomendáveis os métodos de pesquisa de Chagnon (para dizer o mínimo); e
consideram fantasiosas as suas caracterizações etnográficas.
A
eleição de Chagnon para a Academina Nacional de Ciências dos EUA não honra a
ciência norte-americana, nem a Antropologia como disciplina. E afronta também os
Yanomami.
No
que me diga respeito, considero Chagnon inimigo dos povos indígenas da Amazônia.
Resta-me só agradecer ao prof. Sahlins por sua posição firme e corajosa
em apoio aos
Yanomami e à ciência antropológica.
Somos
deixados cá, a conjecturar o que será da ciência, seja a que se pratica com “C”
maiúsculo, seja a que leva “c “ minúsculo, quando essas discussões sobre
práticas, aplicações erradas e resultados abomináveis são cada dia mais
marginalizadas, ao mesmo tempo em que se promovem e prestigiam, cada dia mais,
os produtos e resultados que mais bem se encaixem nos valores e objetivos da
guerra infinita.
A
Academia Nacional de Ciências unida na defesa de um personagem como Chagnon,
demonizando quem o critique, inventando que estariam atacando não Chagnon, suas
práticas e suas teorias, mas a própria ciência, agride frontalmente os próprios
cientistas lá reunidos. É lastimável que a Academia Nacional de Ciências dos EUA
tenha-se autoencurralado, ela mesma.
A
dinâmica desses divisionismos não é única, nem exclusiva desse pequeno segmento
da comunidade científica. Em seu ensaio de 1966, sobre “A destruição da
Consciência no Vietnã”, Sahlins escreveu que, para conseguir continuar sempre a
fazer guerra, os EUA teriam de destruir a própria consciência – porque a nação
não conseguiria suportar a visão dos destruídos pelos EUA:
A
consciência tem de ser destruída; tem de morrer à altura do fim do cano da arma.
Tem de não ver a bala. Por isso, todas as discussões periféricas morrem atrás
das cortinas, sem chegar ao palco. A guerra passa a ter objetivos transcendentes
e, em guerra desse tipo, o que se faça em nome do Bem é virtuoso e são
necessárias todas as mortes e assassinatos. O fim justifica os meios.
É
trágico quando gente de boa consciência encontra, como única via possível, a
renúncia aos próprios direitos. Mas, não raras vezes, o ato de se desassociar é
a declaração mais corajosa e mais contundente que se pode
fazer.
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