sábado, 9 de fevereiro de 2013

Mokhtar Belmokhtar, a nova cara da al-Qa’eda


(e por que é muito diferente de Osama bin Laden)

24/1/2013, Robert Fisk, The Independent, UK
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Robert Fisk
“E ele foi atingido pela frente?” Pergunta Siward, sobre seu filho morto, em Macbeth. Quer saber se as feridas de seu filho provam que ele combatia contra homens de Macbeth quando morreu, ou se – se foi ferido pelas costas – fugia da luta. Macbeth teria sido magnífico ditador no Oriente Médio, obcecado pelo poder, assassinando os inimigos, oprimindo o povo sob influência de alguma cruel, impiedosa, feroz primeira dama.

Osama bin Laden
A al-Qa’eda, nas batalhas contra o inimigo infiel – russos, norte-americanos, israelenses todos os potentados do ocidente e árabes que lutam ou lutaram a nossa luta – jamais foge. Os ferimentos de combate são parte da personalidade da al-Qa’eda.Osama bin Laden vangloriou-se para mim, pessoalmente, das cicatrizes que as balas russas deixaram em seu corpo no Afeganistão – no total, três –, e Mullah Omar, líder dos Talibã, que usou a túnica do Profeta em Kandahar, sempre se orgulhou do olho que perdeu para os inimigos. Agora aí está Mokhtar Belmokhtar, mais um que perdeu um olho na guerra contra os inimigos de Deus.

Esse Cíclope não usa nenhum tipo de venda para ocultar a ferida. Foi-lhe arrancado, o olho, por “mujahedin” pró-ocidente no Afeganistão, depois da retirada dos soviéticos? Ou voou-lhe do rosto quando “lidava mal” com explosivos durante a guerra, quando Belmokhtar e seu bando ainda eram heróis, o equivalente – como aos olhos de Ronald Reagan, certa vez – dos nossos Pais Fundadores?

Hoje se esconde no – ou cavalga pelo, se se acreditar no que se ouve – Mali. Al-Qa’eda está de volta à luta, mas esse argelino veterano de muitos combates, é intrigante símbolo do caminho pelo qual vaga hoje a ferida organização que Osama bin Laden criou. Porque o currículo de Belmokhtar no Afeganistão já foi obnubilado por sua viciosa participação nos conflitos cruéis dos anos 1990s contra o regime militar em seu próprio país. Belmokhtar nasceu na Argélia, na cidade de Ghardaia. Tem 40 anos. Já é, hoje, mais, filho da corrupção que tomou conta de tantas das milícias islamistas armadas do norte da África.

Mokhtar Belmokhtar posa para foto com a bandeira da al-Qaeda e sua Kalashnikov
Quando viajou para o Afeganistão, tinha só 19 anos; quando lutou contra os igualmente cruéis paramilitares pró-governo na Argélia, já havia aprendido que raramente as guerras terminam; que a vitória acontece quando se humilham os inimigos, não quando se consuma alguma conquista militar.

Mas Belmokhtar é filho também da história de seu país. Nasceu exatamente um ano depois que o exército colonial francês retirou-se da Argélia; nasceu e foi criado em francês: fala a língua dos velhos opressores. Sempre falou perfeito francês. Os raros ocidentais que o viram – quase todos seus prisioneiros – jamais esqueceram a fluência com que se expressa em francês.

O fuzil Kalashnikov aos pés, Belmokhtar lia ostensivamente o Corão – imagem especular de Bin Laden – como líder da al-Qa’eda no Magreb Islâmico. Depois, quando se separou, muito depois de uma aparente derrota na Argélia, tornou-se chefe dos al-Muwaqqiun bil Dima, pouco confortavelmente, mas muito assustadoramente traduzido como “Os que Assinam com Sangue”. Os que sobreviveram às atrocidades no campo de gás de In Amenas, semana passada – e, creio, também os que não sobreviveram – entenderam o que significa a tradução.

Num vídeo, Belmokhtar falou da luta contra os que não creem – vale dizer, nós, o ocidente – da importância da Lei Islâmica e sobre o projeto islamista para o norte do Mali. É esperto e experiente demais para não saber que os tormentos do Mali brotam de décadas de recusa, pelos tuaregues-berberes-arabófonos do norte, a se deixarem governar por governantes negros do sul, mas foi arrastado – como Bin Laden no Afeganistão – para uma terra onde o poder centralizado era ou fraco ou inexistente. Quando grupos de direitos humanos recordavam a ferocidade das punições islamistas – amputações, execuções, opressão das mulheres; a lista que todos conhecemos bem – Belmokhtar falou de uma Xaria que deu comida aos pobres e promoveu justiça e direitos iguais entre muçulmanos.

Andrew Lebovich
Andrew Lebovich, analista que vive em Dakar e estuda a África, chamou a atenção para o fato de que o jihadismo de Belmokhtar pode ser muito genuíno, apesar de seu envolvimento com contrabando e tráfico; e que suas declarações públicas devem ser levadas a sério e estudadas com atenção. O norte do Mali foi ameaçado “pelas nações ocidentais Cruzadas, sobretudo a França” –Belmokhtar anunciou; e os agressores serão enfrentados “na casa deles”; conhecerão “o calor das feridas” em seus próprios países; terão seus interesses atacados. Aqui, de fato, havia um alerta sobre o que aconteceria em In Amenas.

Ayman al-Zawahiri
Belmokhtar saudou o Mullah Omar, líder dos Talibã e sucessor de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri, “o emir perseverante”. Em outras palavras, declarou sua lealdade aos princípios originais da al-Qa’eda.

Mas o problema – que nós, ocidentais, nos recusamos a compreender – é que a própria al-Qa’eda mudou. Longe vão os dias quando essa perigosa instituição exigia a criação de um califato islâmico mundial.

O Despertar Árabe – as massas populares árabes em revolta contra ditaduras – fizeram de Bin Laden, passado. Pela televisão à que assistia em Abbottabad dias antes de ser assassinado pelos norte-americanos, Bin Laden viu que ninguém, sequer um único manifestante – do Cairo a Damasco, ao Iêmen – erguia a bandeira negra da al-Qa’eda ou carregava imagens suas.

Tenho informação de que, dentre os últimos comunicados trocados entre Bin Laden e seus seguidores no Iêmen havia o pedido de que traduzissem um artigo que escrevi para o The Independent, no qual descrevi a al-Qa’eda – depois de seu envolvimento em eventos de suicidas-bomba sunitas para matar xiitas no Iraque – como a organização mais sectária em todo o mundo. Bin Laden sempre protestou contra o papel de sua organização no banho de sangue, sectário, no Iraque. A partir daí, começou o reposicionamento da al-Qa’eda.

Abdel Bari Atwan
Abdel Bari Atwan, do jornal Al-Quds al-Arabi – que compreende melhor que ninguém o lado escuro da alma da al-Qa’eda – falou do tom “saudoso” com que Bin Laden sempre falou das montanhas Atlas do Magreb – as  Tora Bora do norte da África – e do interesse dos EUA na própria África. Muitos dos legionários de Bin Laden partiram do Afeganistão para a Argélia, o Mali, a Mauritânia, o Chad e o Níger, até para a Nigéria.

Hoje, os EUA importam tanto petróleo da Nigéria quanto da Arábia Saudita, país do qual Bin Laden é cidadão. Como Gaddafi – que Bin Laden amaldiçoou – a al-Qa’eda sabia apreciar a importância econômica da África. O próprio Bin Laden não viveu cinco anos de perigoso exílio no Sudão?

Num sentido tortuoso mas muito claro, os resultados da terrível guerra civil argelina trabalharam a favor de Belmokhtar. O presidente Bouteflika, querido amigo da França no norte da África, convocou bem-sucedido referendum que, para todos os efeitos, perdoou os combatentes islamistas, tanto quanto os torturadores de massa e esquadrões da morte do regime. Assim aconteceu que o ramo mais fraco da revolta islamista voltou para casa; e os mais duros, os que nunca perdoam, emigraram para os desertos através da fronteira da Argélia. Belmokhtar herdou uma katiba “saneada” – e uma nova versão da batalha de Bin Laden.

Desse ponto em diante, a “pureza das armas” da al-Qa’eda – e, isso, jamais se admitiu – seria dirigida, não para a esperança perdida de um califato mundial, mas para lutas que visariam a fazer curvarem-se os inimigos kafir [infiéis] do Islã. As táticas de batalha de Bin Laden permaneceriam inalteradas; só sua filosofia seria paulatinamente abandonada.

Abdulhamid Abu Zeid 
Hoje, seus combatentes – nas mãos de Belmokhtar ou de seu mais recente rival, o suposto asceta Abdulhamid Abu Zeid – lutam para humilhar os exércitos ocidentais que consigam arrastar para lutar no mundo muçulmano. Assim como qualquer soldado ocidental que fosse arrastado para o Afeganistão e Iraque foi alvo vivo, assim também, agora, cada soldado francês que pise no Mali pode virar alvo vivo.

Humilhar todos os poderosos exércitos ocidentais, forçá-los a baixar a cabeça, arrastá-los para alianças pervertidas com seus amaldiçoados aliados. Essa é, hoje, a ordem de batalha da al-Qa’eda.

Quanto mais a França – e os EUA e a Grã-Bretanha – puderem ser provocadas e empurradas a aliarem-se ao feroz governo da Argélia, ou aos assassinos reunidos no exército do Mali, maior, mais ampla, a vitória da al-Qa’eda.

David Cameron
Mas o horror de franceses e britânicos ante o massacre de reféns e também de insurgentes em In Amenas já foi, rapidamente demais, apagado da memória. Ingenuamente, David Cameron – e seguindo um script que parece ter sido redigido por Belmokhtar – proclamou que “nossa determinação é mais forte que nunca, para trabalhar com nossos aliados em todo o mundo até desentocar, até derrotar a praga terrorista”.

À parte os horrendos clichês (“desentocar”, “a praga”) – em tudo semelhantes à tediosa retórica da al-Qa’eda – Cameron efetivamente subordinou o Reino Unido ao regime assassino na Argélia. O mundo encheu-se de Macbeths.

Agora, grupos de direitos humanos começam a informar sobre assassinatos-retaliação de civis tuaregues em cidades recentemente “libertadas” pelo exército do Mali. “Diplomatas ocidentais”, esse bando de charlatães sempre tão reverenciados por nós jornalistas, dizem agora que “há muito tempo alertamos para o risco de o exército do Mali envolver-se em assassinatos-retaliação.” Pena que não telefonaram há um mês!

Jean-Yves le Drian
E lá vem o ministro francês da Defesa, Jean-Yves le Drian, a nos informar que os insurgentes de Belmokhtar “diversificaram suas táticas. Podem desaparecer a qualquer momento de qualquer cidade, ou confundem-se com a população... Estamos em guerra de guerrilha urbana, além da guerra tradicional. Quero dizer... não é fácil”. Mas... andava tão calado! Por que não contou essa, há um mês?!

A Associated Press – tenho de admitir que não é minha agência favorita, em matéria de fatos realmente acontecidos – publicou essa semana matéria brilhante, notável, assinada por Rukmini Callimachi,  um relato de como o jihadista Abdulhamid Abu Zeid, parceiro de Belmokhtar, chegou à cidade maliana de Diabaly, requisitou casas de civis, com a ajuda de veteranos do Iraque e do Afeganistão, e ali se escondeu para fugir dos ataques aéreos dos franceses; distribuiu brinquedos para as crianças, ofereceu-se para pagar aluguel, distribuiu dinheiro para comprar água e, sob a proteção de cinco combatentes armados, comeu comida importada da Argélia. “Comeu spaghetti, tomou leite em pó, leu o Corão e planejou sua guerra”.

É isso. Ignorem aqueles homens e serão derrotados na “guerra ao terror”. Façam guerra contra eles e serão humilhados. O argelino Belmokhtar compreende bem o processo. O ocidente’’ não compreende. Táticas diversificadas, diz-nos o ministro francês. Confundem-se com a população. Camuflagem. A floresta de Birnam pôs-se a caminho, rumo a Dunsinane.

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