Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Walter D. Mignolo |
Os artigos de Santiago
Zabala e Hamid
Dabashi publicados
em Al Jazeera trazem à discussão uma das questões cruciais do século 21:
a revisão dos processos de re-ocidentalização (com a volta de modos ocidentais
de pensar, do Cristianismo ao Liberalismo e ao Marxismo) e de desocidentalização
e descolonização em todas as esferas da vida, da política, economia, religiões,
estética, conhecimento e subjetividade.
A
discussão concentra-se, principalmente, nas duas últimas questões. Começou com o
artigo de Zabala sobre o papel do filósofo, no qual celebrava Slavov Zizek.
Em resposta,
Dabashi tratou do significado diferencial entre os nomes de
filósofos ocidentais e os países nos quais filósofos não europeus ou vivem ou
“estudaram em
academias dos EUA ou da Europa”.
As
respostas de Zabala a Dabashi enfatizaram o renovado, refrescante comunismo de
Zizek. De minha parte – afinal, sou pensador descolonial limítrofe –
concentro-me em questões que emergem nas fronteiras da discussão.
A
crença nas hierarquias
Hamid Dabashi |
A
resposta de Hamid Dabashi ao artigo de Zabala sobre o papel do filósofo
contribuiu para a circulação do texto em áreas da opinião pública nas quais, sem
aquela resposta, o texto não teria circulado. A resposta de Dabashi foi uma
reflexão sobre o parágrafo inicial do artigo sobre Zizek que Zabala
publicou:
Há hoje
muitos filósofos ativos e importantes: Judith Butler nos EUA; Simon Critchley na
Inglaterra; Victoria Camps na Espanha; Jean-Luc Nancy na França; Chantal Mouffe
na Bélgica; Gianni Vattimo na Itália; Peter Sloterdijk na Alemanha; e, na
Eslovênia, Slavoj Zizek, para não falar de outros que trabalham hoje no Brasil,
Austrália e China.
Santiago Zabala |
A
estratégia de Dabashi acompanha seu argumento: não menciona os nomes dos autores
dos artigos. Esse silêncio de Dabashi traz para o procênio o significado dos
nomes. Sua resposta é um signo, dentre muitos, de que nós, no planeta, vivemos
uma mudança de época, mais que uma mudança a mais numa época de mudanças.
A mudança de época é anunciada, na esfera do conhecimento, no processo de
desencadear-se de uma cadeia de efeitos longamente duradouros, de diferenças
epistêmicas coloniais e imperiais.
Nesse
quadro, os nativos norte-americanos têm sabedoria, os anglo-americanos, ciência;
os africanos têm experiência, os europeus, filosofia; o Terceiro Mundo tem
Cultura e o Primeiro Mundo tem Ciências Sociais, inclusive antropologia que
estuda as culturas do Terceiro Mundo; chineses e indianos têm tradições, os
europeus, modernidade; o Islã vive em mundo de religião; os europeus, no
secularismo.
Essas
crenças já se foram, para número crescente de intelectuais, pensadores e
ativistas não europeus. Para mim, essa é a principal afirmativa implícita no
artigo de Dabashi.
O
que pensadores não europeus pensam
Slavoj Zizek |
Li
o artigo de Zabala sobre o papel do filósofo, não porque estivesse interessado
em Zizek (que não me interessa), mas porque era artigo de Santiago. Participamos
de várias conferências nos últimos três anos, assistimos às falas um do outro,
conversamos, mantemos ativa correspondência por e-mail e trocamos
artigos.
O
que leio, da filosofia continental, não leio à procura de luzes que me auxiliem
a enfrentar questões de histórias não europeias, mas porque me interessa saber o
que “eles” estão pensando, quais as preocupações “deles”, em que “eles” andam
envolvidos.
Consumo a maior parte do meu tempo
envolvido com pensadores não europeus. É a partir da orientação e da luz desses
pensadores que, quando necessário, aproximo-me de filósofos europeus. Exemplo
desse relacionamento é meu contato com A leftist Plea For
“eurocentrism” (1998).
Li
esse artigo, não porque tivesse sido escrito por Zizek, mas porque tratava de
eurocentrismo. É problema que me interessa sempre e profundamente; em segundo
lugar, interessa-me o que tenham a dizer as pessoas que enfrentem a questão do
eurocentrismo. Como pensador não europeu, meus sentidos reagiram logo à primeira
frase do artigo de Zizek:
Quando
alguém diz eurocentrismo, qualquer intelectual pós-modernista de esquerda que se
autorrespeite tem reação tão violenta quanto a de Joseph Goebbels quando ouvia a
palavra cultura
– pega logo a pistola, urrando acusações de imperialismo cultural eurocentrista
proto-fascista. Mas será possível imaginar uma apropriação, pela esquerda, do
legado político europeu?
Discuti
esse artigo com mais detalhe noutro lugar. Aqui, me interessa destacar um só
ponto. Minha resposta àquele parágrafo, publicada, é a
seguinte:
Quando
alguém diz Eurocentrismo, nenhum intelectual descolonizante que se autorrespeite
tem reação violenta como a de Joseph Goebbels à cultura – de pegar uma pistola
urrando acusações de imperialismo cultural eurocentrista proto-fascista.
Intelectual
descolonizante que se autorrespeite, recorrerá a Frantz Fanon: “Agora,
camaradas, é chegada a hora de decidir mudar de lado. Tirar de nossas costas a
imensa sombra noturna que nos envolveu e sair para a luz. Que o novo dia que
está raiando nos encontre determinados, ilustrados e resolutos. Nesses termos,
meus irmãos, como não compreender que temos coisa melhor a fazer, que seguir os
passos da Europa?”
Com
esse comentário, não quero discutir a avaliação de Zizek, como filósofo, feita
por Zabala. O que estou dizendo é que nós, intelectuais descolonizantes, mesmo
que não sejamos filósofos, “temos coisa melhor a fazer” como diria Fanon, que
nos deixar envolver nas questões debatidas pelos filósofos europeus.
Relevância
não é universal
A
questão levantada por Dabashi não é nova entre nós, pensadores do ex-Terceiro
Mundo (ainda que muitos de nós baseados nos EUA). Ao dizer que não é questão
nova, não digo, por implicação, que a resposta de Dabashi seja ultrapassada.
Quero dizer que as questões de que hoje se trata foram debatidas na África, no
Caribe e na América do Sul, no final dos anos 50s e nos anos 60s. Mas foram
discutidas “entre nós”, não “com eles”.
Kishore Mahbubani |
Agora, o diferencial de potência
epistêmica começou a ser discutido entre todos “nós”, filósofos não europeus e
filósofos europeus. A exceção no domínio da diplomacia foi Kishore Mahbubani,
que levantou a questão em seu polêmico Can
Asians
Think? [Asiáticos pensam?] (1999).
Contudo,
se queremos usar o termo “filosofia” para identificar pensadores, sejam europeus
ou não europeus, devo dizer que, ainda que Zizek possa ser o mais importante
filósofo contemporâneo, seu trabalho é menos relevante para muitos que o
trabalho do filósofo jamaicano Lewis Ricardo Gordon; ou do filósofo iraniano
Seyyed Hossein Nasr; ou do filósofo chinês Wang Hui; ou do egípcio Nawal El
Saadawi ou do filósofo latino-americano Enrique Dussel.
E
se por trás de Zizek há Derrida na filosofia continental, por trás de Gordon há
Fanon na filosofia africana; por trás de Seyyed Hossein Nasr há Ali Shariati na
filosofia muçulmana; por trás de Wang Hui há Liu Xun na filosofia chinesa; por
trás de El Sadawi, o legado da falsafa muçulmana. E por trás de Dussel há
Rodolfo Kusch na filosofia latino-americana.
A
relevância não é universal; depende do universo de significação e do sistema de
crenças sob o qual se determina a relevância. Temos aqui um mundo diverso de
pensadores e filósofos no processo de desocidentalizar e descolonizar o legado
imperial da filosofia ocidental.
A
questão da filosofia no mundo não europeu jamais foi fácil. Pensadores africanos
e latino-americanos com formação e treinamento em filosofia debateram, nos anos
1970s, essa questão crucial: “Há filosofia africana/latino-americana?” Seria
pergunta impensável na Alemanha, nos mesmos anos.
Robert Bernasconi |
Robert
Bernasconi, escrevendo sobre o filósofo afro-americano Lucius T Outlaw, resumiu
o dilema nos seguintes termos:
A
filosofia ocidental captura a filosofia africana numa dupla armadilha: ou a
filosofia africana é tão semelhante à filosofia ocidental, que não faz
contribuição significativa e, efetivamente, desaparece; ou é tão diferente que
suas credenciais para ser definida como genuína filosofia sempre estarão sob
suspeita (Bernasconi
1998, 188; Postcolonial
African Philosophy: A Critical Reader).
É
o gargalo e o quebra-cabeça que atormenta pensadores com formação e treinamento
acadêmico em filosofia na África, na América do Sul e no Caribe.
Comunismo
é uma opção
Tudo
o que acima ficou dito leva-me à questão do comunismo, foco da resposta de
Zabala, e dos quatro poderosos antagonismos que – segundo Zizek – poderiam
impedir a infinita reprodução do capitalismo:
1. “A
ameaça sempre crescente da catástrofe ecológica”.
2. “A
apropriação indevida da noção de propriedade privada, para a chamada
“propriedade intelectual”.
3. “As
implicações socioéticas dos novos desenvolvimentos técnico-científicos
(especialmente na biogenética)”.
4. “Novas
formas de apartheid, novos muros, novas favelas”.
Nas
últimas duas décadas, muito tenho ouvido sobre esses quatro pontos mencionados
por várias pessoas, não só filósofos mas também pensadores e militantes sérios.
Não estou dizendo que Zabala estaria dizendo que Zizek seria o primeiro a pensar
sobre essas questões, nem que seria muito importante que Zizek tivesse
trazido essas questões para o debate filosófico europeu. De fato, seria
desnecessária arrogância supor que o mundo, particularmente o mundo não europeu,
careceria de que Zizek nos informasse de que o mundo está pegando fogo.
Para Zabala,
“Ser
comunista em 2012 não é escolha política, mas questão existencial. Os níveis
globais de desigualdade política, econômica e social aos quais chegaremos esse
ano, por causa da lógica capitalista de produção, não são só “muito graves”:
eles ameaçam nossa existência”.
Ora,
reconhecer os problemas não significa que o único meio para avançar seja o
comunismo. E, como a história nos ensina, identificar o problema tampouco
significa que só haja uma solução. Ou, dito ainda de outro modo: vários podem
coincidir na prospectiva de um futuro global desejável; o que não implica que o
comunismo seria o único modo de andar até lá.
Não
há uma única solução, simplesmente porque há muitos modos de ser, o que
significa diferentes meios de pensar e de fazer. O comunismo é escolha. O
comunismo não é um universal abstrato.
Tariq Ramadan |
Ao
mesmo tempo, é necessário reconhecer que o comunismo é escolha forte, na Europa.
Talvez não seja opção para migrantes da Ásia e da África (talvez seja escolha
para migrantes da América Latina, sobretudo os que tenham ascendência europeia),
ou talvez seja ideia a ser promovida por Tariq Ramadan (europeu muçulmano e
filósofo muçulmano).
Mas
na Europa, com certeza, é escolha inescapável. Afinal, o comunismo nasceu na
Europa.
No
mundo não europeu, o comunismo é mais parte do problema, que parte da solução. O
que não significa que, se você não é comunista, no mundo não europeu, você é
capitalista.
O ponto de referência nesse debate
foi e continua a ser a Conferência de Bandung, convocada por Sukarno em 1955. O
legado de Bandung não é nem o capitalismo nem o comunismo, mas a descolonialidade
e a desocidentalização (o que significa distanciar-se tanto do comunismo
quanto do capitalismo).
Caso
a observar, hoje, pode ser a Bolívia. A fórmula “socialismo comunitarista” do
Estado da Bolívia é rejeitada pelo CONAMAQ (Conselho Nacional de Ayllus e Markas
do Qullasuyu), organização liderada por aimaras e quechuas, que trabalham para a
reorganização dos ayllus e markas de Tawantinsuyu.
Não há espaço aqui para explicar o
que significa tudo isso (e esse, precisamente, é problema do eurocentrismo:
gastar espaço, sem explicar o que não se encaixe no interesse dos europeus, de
esquerda ou de direita), mas significa, basicamente que há modo de ser baseado no
comunal, a
partir da perspectiva de harmonia baseada na história das civilizações andinas,
não na da civilização europeia.
Assim
sendo, o fato de que Zizek e outros intelectuais europeus estejam repensando
seriamente o comunismo significa que abraçam uma opção (reorientar a esquerda)
dentre várias que, hoje, marcham na direção de uma ideia de harmonia que
sobrepassa a necessidade de guerra; sobrepassa o sucesso e a competição que gera
corrupção e egoísmo, e promove a plenitude da vida, sobre o desenvolvimento e a
morte.
Frantz Fanon |
Construindo
um futuro harmonioso
Em
resumo, a troca de ideias – nessa publicação – entre Santiago Zabala e Hamid
Dabashi lança luz sobre uma questão fundamental na construção global de futuros
harmoniosos. Há um paralelo entre a crescente convicção quanto ao fracasso do
neoliberalismo no mundo não europeu, que acompanha a crescente convicção dos
limites (e ao mesmo tempo do valor) da filosofia continental.
Sartre
resumiu tudo isso no prefácio
que
escreveu para Os Condenados da Terra de
Frantz Fanon (1961), ao dizer, falando ao público francês e europeu: “Prestem
atenção, ouçam o que Fanon diz: ele já não está falando
conosco”.
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