Publicado em 25/10/2012 por
Urariano Motta *
Recife (PE) - No Recife, no sábado
13 de outubro, estamos no Bar Mamulengo, em um encontro que reúne os melhores
violonistas e chorões da cidade. Estamos aqui para uma confraternização com Luís
Nassif, jornalista e escritor, que ama e divulga os músicos pernambucanos lá
em São Paulo.
E quando digo estamos, e me incluo indevido numa confraria de
monstros das cordas, quero dizer: estão Beto do Bandolim, Henrique Annes, Lalão,
Racine, Ravel, o próprio Nassif, e mais músicos na plateia, nas mesas em torno,
que inibidos não vêm ao pequeno círculo onde se destacam os bambas e
microfones.
Existe uma atmosfera que faz a
gente ser bom, franco, verdadeiro, retornar amizades ou fazer amigos pelas
revelações mais sérias, como o grande Nassif me faz à mesa, como se falasse
nada, e que derrubam as defesas deste pernambucano por essência desconfiado. Ele
seria capaz de me dizer, como por outras palavras me disse: “eis porque o meu
amor percorre o mundo desta maneira”. E a gente olha para longe, para não se
trair, porque está entre a comoção e a mais irrestrita solidariedade.
As vozes ao redor ajudam a gente a
disfarçar, ninguém é louco de pedir silêncio, porque há sempre um ruído nas
manifestações coletivas, mesmo nas mais solenes.
Então vem dos jovens com Síndrome
de Down, ali presentes, o melhor. Uma bela mocinha com os seus olhinhos onde
brilha uma irreprimível simpatia, com seus olhinhos puxados que são uma nascente
de amor, beija no rosto o violonista Lalão. Ele, mulato escuro, enrubesce na
penumbra do momento. Ficou confuso, a sorrir para a mocinha. Ao que ela lhe
pede, pois grande é o cerco e cercania das atrações do sentimento: “Toca Olha
pro céu meu amor”. Ela pede e sai. Ele resmunga para mim: “olha pro céu meu
amor...”. E eu sei o que isso significa. Lalão quer apenas dizer, tocar uma
coisa tão boba, para um músico da minha altura e talento, era só o que
faltava.
Eu não sei se existe uma hora em
que a leveza toca o coração do grande artista. Eu não sei se há um instante em
que um afeto simples, singelo, idiota, como resposta a um beijo assoma e revolve
o peito de um virtuose, eu não sei, enfim, se a vaidade da gente cede o passo a
uma compreensão total, absoluta, que vem da grande arte. Sei que Lalão toca
“Olha pro céu, meu amor”. A mocinha e outros jovens começam a dançar, numa
confraternização, como se fossem a própria tradução da música em corpos e
alegria.
Pois assim como o beijo que tem
uma duração para toda a vida, que vai além do segundo em que os lábios se
encontraram, cresce mais para mim a percepção daquele instante. Ali houve uma
contaminação da doença que tem o nome de solidariedade.
No salão, em todo o bar houve uma
onda solidária, a ponto de fazer Lalão chamar Henrique Annes para tocar a seu
lado. E ficarem eles mesmos, os dois geniais violonistas, a tocar puros como
dois grandes excepcionais. Como se fossem dois meninos grandes que fazem dos
acordes olhinhos puxados.
Os jovens especiais dançam. Então
as pessoas que pensamos serem diferentes em tudo de nós, “eles veem a vida em
tons sombrios, ou de angustiado amarelo, ou de explosivo vermelho, de
melancólico azul”, então pessoas assim, para nossa descoberta, veem balões
multicoloridos subindo no céu. Talvez delas, mais do que outras, seja esse
direito.
Elas veem, dançam e se encantam,
pois grande é a procura de alegria, e com mais necessidade em quem no seu
natural não a possui. Isso deixa a gente também meio bobo, com vontade apenas de
repetir: foi numa noite, igual a esta, que tu me deste o teu coração, o céu
estava assim em festa, pois era noite de são João...
Não sei se Lalão viu. Ou se viu,
como bom artista, viu e guardou escondido no seu coração. Para ninguém ele disse
naquele minuto, pois parecia tocar alheio àquele mar de felicidade, que se
espraiava na singela composição, no modo e humildade com que ele a tocava.
Ele fez que não viu que estávamos
todos felizes ao ver a felicidade dos jovens de Down a dançar. A gente se
amarrando pra não cantar em voz bem alta os versos:
“Olha pro
céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa
noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João
Havia
balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
O momento em imagens com a duração
de um beijo ficou aqui, a seguir:
Enviado
por Direto
da Redação
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