16/10/2012, M K
Bhadrakumar*, Asia Times
Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Apesar
de o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha Guido Westerwelle, que estava
em visita à
China , ter-se abalado até Istambul em missão, no sábado, para
desengatilhar as tensões entre Turquia e Síria, Der Spiegel noticiava,
sem anestesia, que a informação sobre o “cargueiro não civil” (sic), que causara
a ação de interceptação de um avião sírio pela Força Aérea turca na noite da
5ª-feira anterior, havia sido passada a Ancara pela inteligência
norte-americana.
Guido Westerwelle |
Mais
que isso, Der Spiegel revelou, ao que parece sabendo do que falava, que
“Ancara só forçou o avião a pousar depois de contato próximo e demorado com seus
aliados ocidentais”.
A
questão se impõe naturalmente: foi incidente coreografado por Washington, para
mudar a dinâmica da situação síria? Há notícias, na história, de movimentos até
mais estranhos que esse, para disparar guerras. Ou os EUA teriam algum outro
motivo?
O
padrão da retórica pode dar algumas pistas. A Rússia, é claro, negou
veementemente e imediatamente que tivesse violado leis internacionais. O
Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov deu, de fato,
explicação detalhada, como se pedisse que os turcos não se deixassem levar por
alguma coisa que tivessem ouvido:
Ainda
sob o eco de todos os tipos de insinuações que se divulgaram sobre o pouso do
jato sírio, gostaria de destacar que não temos segredo algum implicado nesse
caso. Já conhecemos toda a situação e a verdade é que, obviamente e como era de
esperar, o jato não carregava nem em nenhum caso carregaria qualquer tipo de
arma.
A
carga foi vendida a cliente legal, por vias legítimas e legais. O avião
carregava equipamento eletrônico para uma estação de radar, equipamento não
proibido por nenhuma convenção internacional. Todos os documentos do despacho
aéreo foram preenchidos em estrita observância de todos os requisitos
internacionais. O transporte desse tipo de carga por aviões civis é prática
normal, o que se confirma pela evidência de que as autoridades turcas ofereceram
à tripulação a possibilidade de mudar de rota ou de aterrissar na Turquia antes
de entrar no espaço aéreo turco. O comandante decidiu pousar, porque sabia que
nada havia de ilegal, nem na carga nem na tripulação.
Curioso
é que o lado turco aparentemente se recusou a considerar o que diziam os russos.
A declaração turca, de fato, fala muito e pouco diz: que Ancara teria agido
baseada em “informações de que o avião transportava carga de um tipo que não
estaria conforme com as regras da aviação civil”.
Vladimir Putin |
Mas,
simultaneamente, Ancara e Moscou imediatamente transferiram a discussão para os
canais diplomáticos, longe dos holofotes. Resultado desses contatos, a russa Gazprom anunciou que aumentará o
fornecimento de gás para a Turquia, para compensar a diminuição dos
fornecimentos iranianos durante o próximo inverno.
E
Ancara divulgou, com quase oito semanas de antecipação, que o presidente russo,
Vladimir Putin, visitará a Turquia dia 3 de dezembro. Assim sendo, sim: em
termos diplomáticos, o evento foi satisfatoriamente encaminhado. Esse é o
primeiro ponto.
A
parte intrigante: a retórica belicista dos EUA
A
parte mais intrigante é que coube aos EUA – um terceiro, não envolvido no caso –
a retórica mais inflamada! A porta-voz do Departamento de Estado em Washington
usou linguagem extremamente dura; disse que Moscou fazia política “moralmente
corrupta” a favor da Síria.
Victoria Nuland |
Victoria
Nuland disse:
“Nenhum
país responsável deveria estar ajudando e reforçando a máquina de guerra do
regime de Assad, sobretudo países que têm responsabilidade pela paz e segurança
globais, como membros do Conselho de Segurança”. E
acrescentou: “[Os EUA] não têm dúvidas de
que se tratava de equipamento militar sério [sic]”.
Bem
claramente Nuland tinha instruções claras para “por a boca no trombone” sobre a
questão do avião sírio [e pautá-la para a mídia mundial]. Por que os EUA
estariam tão claramente dedicados a criar polêmica de tão alto conteúdo
inflamável? Esse é o segundo ponto.
Recep Endorgan |
A
geopolítica não é difícil de entender. Os EUA esperavam, provavelmente, que a
Síria seria a lâmina que cortaria os laços da parceria entre Rússia e Turquia,
que conheceu notável avanço na última década, ajudada em boa parte pelo bom
relacionamento pessoal que há entre Putin e o Primeiro-Ministro turco Recep
Erdogan.
A
Rússia expandiu muito a cooperação energética com a Turquia e já atende 2/3 das
necessidades de gás dos turcos. A Rússia vai construir o primeiro reator nuclear
turco; o projeto, de US$25 bilhões pode mudar dramaticamente o jogo em toda a
relação entre os dois países. E o gasoduto South Stream, de 63 bilhões de metros
cúbicos, deve cruzar águas turcas, para abastecer mercados europeus.
Evidentemente,
se está desenvolvendo alto nível de interdependência entre os dois países, o que
é novidade histórica, dadas as relações difíceis que sempre houve entre eles ao
longo de séculos e considerando o impacto profundo que essa interdependência
terá na geopolítica de vasta região – o Mar Negro, o Cáucaso, o Cáspio, a Ásia
Central “túrquica” e o leste do Mediterrâneo.
Isso
posto, Moscou e Ancara fizeram muito bem, até agora, ao separar o relacionamento
bilateral russo-turco e a questão síria. Resta saber se será possível preservar
essa situação confortável no futuro próximo, dado que a fase de “fechamento do
jogo” está começando na Síria.
A
retórica dos EUA obriga a lembrar que há várias armadilhas pelo caminho, prontas
para disparar a qualquer momento. Esse é o terceiro ponto.
Três
vetores de mútuo travamento
A
primeira dessas armadilhas foi plantada por mãos desconhecidas quando Erdogan
estava em Moscou, no final de julho, e preparava-se para reunir-se com Putin no
Kremlin. Foi quando chegaram notícias de ataque terrorista de grandes proporções
em Damasco, do qual resultou a morte do Ministro da Defesa e de outros altos
oficiais da segurança da Síria – notícias que sabotaram completamente a missão
de Erdogan, que tentava superar diferenças entre turcos e russos sobre a Síria e
buscar fórmula aceitável para trabalharem juntos e encontrar solução para a
crise síria.
Muito
curiosamente, o incidente com o avião sírio interditado pelos turcos também
coincidiu com visita que Putin planejara fazer a Ancara para reunir-se com
Erdogan, na qual dariam andamento à discussão sobre a proposta de Putin. Houve
vários informes de que Putin deveria visitar a Turquia nos dias 14 e 15 de
outubro.
Na
6ª-feira, Putin reuniu-se com seus assessores do Conselho de Segurança para
discutir a situação síria. Bem claramente, Moscou já percebeu que há novidades
ativas no impasse turcos-sírios, o que também é muito evidente (i) na retórica cada vez mais
beligerante contra Damasco e (ii)
nos deslocamentos de tropas operacionais turcas nas regiões de fronteira.
Há
três ou quatro vetores de mútuo travamento em operação aqui, e o modo como se
comportem uns em relação aos outros será crucial nas próximas semanas. Primeiro,
muito depende de como a situação evolua em campo. O jornal The Guardian
noticiou que Antakya, cidade turca, no Mediterrâneo leste, tornou-se ponto de
encontro de negociantes de armas do Qatar, Arábia Saudita e Líbano, e é o centro
de onde partem equipamentos e armas para os grupos que lutam contra o governo de
Assad.
Bashar al-Assad |
No
pé em que estão as coisas, o governo de Assad já enfrenta grupos armados em
praticamente todo o país, com sucesso em Damasco, mas encontrando resistência em
Aleppo e nas províncias do norte. O destino, portanto da guerra clandestina
depende fortemente da Turquia. E há crescentes sinais de que os linhas-duras
começam a prevalecer em Ancara.
Sobre
a viagem de fim de semana de Westerwelle a Istambul, Deutsche Welle
alertou, em termos muito claros, que a Turquia “corre o risco” de
“atolar-se” no conflito sírio, por ter “mal avaliado” o conflito. O comentário
criticava Erdogan:
A
entrega de armas pela Turquia continua a ser o apoio mais importante que os
opositores do regime de Assad estão recebendo, e que ajudou o Exército Sírio
Livre anti-Assad a assegurar para si uma fatia de território que entra cerca de
20 km no
lado sírio da fronteira com a Turquia.
A
maioria da população turca já manifesta pouca simpatia pela posição de Erdogan
no conflito sírio. Pela primeira vez em dez anos de governo, o Primeiro-Ministro
enfrenta oposição crescente. Metade do eleitorado turco votou a favor de seu
partido AKP nas eleições parlamentares do ano passado – em larga medida porque
foi visto como o partido que oferecia estabilidade ao país.
Desde
então, a Turquia gozou de altas taxas de crescimento e hoje está entre as 20
maiores economias do mundo. Com amplos setores da população já tendo alcançado
relativa prosperidade, muitos turcos temem hoje que a atitude agressiva de
Erdogan contra a Síria ameace aquela prosperidade.
Analistas
turcos ponderados também manifestaram temores semelhantes. Mehmet Ali Birand, um
dos principais e mais qualificados observadores políticos da Turquia, escreveu
no jornal Hurriyet, no final da semana:
A
guerra civil na Síria não ameaça interesses vitais da Turquia. Em outras
palavras, não é obrigação nossa. Nossa obrigação deveria ser salvar o povo
sírio, da ditadura de Assad. Vamos defender e apoiar os sírios, mas com limites.
Espera
ansiosa
Novamente,
em coluna do jornal islamista pró-governo Zaman, outro importante
analista turco, Abdullah Bozkurt, escreveu, na 6ª-feira:
O
governo [turco] parece dividido sobre até onde a Turquia deve envolver-se na
questão síria. O incansável lobby pró-guerra
está procurando algum “fato consumado” para envolver o governo e o país em
guerra permanente na Síria (...) Partidos de oposição são contrários a essa
aventura perigosa, e a opinião pública opõe-se, em ampla maioria, à simples
ideia da guerra.
Evidentemente,
Erdogan está dividido (o que também explica a decisão de Putin de reunir-se com
ele). Mas parte dessa postura é resultado da tênue esperança de que, superadas
as enervantes pressões das eleições nos EUA dia 8/11, o presidente Barack Obama
volte a pensar na questão síria.
Sim,
mas os turcos são suficientemente inteligentes para já ter ouvidos os tambores
que soam nas capitais ocidentais, todos batendo em retirada do campo de batalha
sírio, antes, até, de haver batalha “oficial”. Westerwelle disse bem claramente
em Istambul, no fim de semana, que a Alemanha conta com que a Turquia não
precipite a crise síria.
Anders Rasmussen |
É
verdade que, para garantir, o secretário-geral da Organização do Tratado do
Atlântico Norte, OTAN Anders Fogh Rasmussen manifesta solidariedade à Turquia.
Mas, em seguida, destaca que é mera questão “hipotética” a possibilidade de a
Turquia invocar o Artigo 5º da Carta da OTAN, para uma intervenção na Síria; e
acrescenta, imediatamente, que, para a Síria, só pode haver solução política.
Ironicamente,
a única coisa boa para a paz mundial, semana passada, é que a União Europeia,
está agora mais contida pelo peso adicional de um Prêmio Nobel da Paz, que
praticamente corta qualquer possibilidade residual que houvesse de optar por se
envolver numa guerra na Síria – mesmo que tivesse como arranjar dinheiro para
tanto.
Mas,
diga-se em nome da justiça, o governo Obama tem demonstrado consistentemente que
não deseja engajar-se em qualquer tipo de intervenção militar direta. A falta de
apetite pela intervenção aumentou, provavelmente, depois que transpirou que
vários grupos salafistas e afiliados da al-Qaeda já se jogaram também no
caldeirão sírio.
A
Casa Branca tem tido muita dificuldade para explicar o que realmente aconteceu
em Benghazi.
Os Republicanos abriram fogo de artilharia pesada contra o
assassinato do embaixador dos EUA na Líbia. A pressão atinge diretamente a
secretária de Estado Hillary Rodham Clinton (até há pouco tempo, a mais ardente
pregadora pró “mudança de regime” na Síria).
Além
do mais, a desunião que reina entre os grupos que lutam contra Assad na Síria
provoca total desespero em Washington. Simultaneamente, a Fraternidade Muçulmana
está em marcha na vizinha Jordânia e tudo pode acontecer naquele país, eixo
chave de transmissão da estratégia regional dos EUA.
Nouri al-Maliki |
Para
arrematar, o Primeiro-Ministro do Iraque, Nouri al-Maliki visitou Moscou, onde
concluiu negócio de $4,3 bilhões em armas. Não surpreendentemente, as
petroleiras chinesas já aparecem por todos os campos de petróleo do Iraque –
exatamente onde o “Big Oil” norte-americano esperava já estar aparecendo, depois
dos gigantescos sacrifícios em vidas e em recursos que os EUA fizeram ali.
Maliki, além do mais, está convidando as empresas russas de petróleo, para que
retomem os cordões, do ponto em que foram deixadas ao final da era Saddam
Hussein.
O
que já se lê claramente é que a crise síria está “fazendo água”. As pesquisas
indicam que a opinião pública nos EUA apoia mais sanções contra o regime sírio e
até uma zona aérea de exclusão, mas não apoia qualquer tipo de intervenção
direta, nem que os EUA armem a oposição a Assad.
Claro
que, para fazer o advogado do diabo, há a considerar a opinião dos falcões
linha-dura nos EUA. O influente especialista linha-duríssima, Anthony Cordesman,
do Center for Strategic and International
Studies em Washington, argumenta que Obama deveria ser capaz de livrar-se
dos dilemas políticos e da “atitude rasa” e “ajudar ativamente a completar o
serviço” – ou seja, que deveria adotar estratégia semelhante à dos anos 1980s,
quando os EUA distribuíram os famosos mísseis Stinger (“equalizadores”) aos
mujahedin afegãos.
Anthony Cordesman |
Cordesman
escreveu semana passada que só se os EUA oferecerem “equalizadores” similares
aos rebeldes sírios poderão garantir que os rebeldes “inflijam baixas mais
sérias” às forças do governo Assad e ajudá-los, assim, a expandir suas próprias
zonas seguras, o que levaria a “obter real vantagem de zonas “sem avião” e “sem
ação” que podem sem implantadas com uso de forças limitadas, ou aliadas ou
norte-americanas, e que rapidamente se tornariam efetivas no local, sem exigir
mais que rápido treinamento pelas forças dos EUA ou outras Forças Especiais”.
Os
lances para fechar o jogo
Cordesman
pode bem estar ecoando opinião que circula no establishment dos EUA. Mas,
para Obama, o clinch parece ser outro, noutro ponto.
Entretecido
na intrincada tessitura da tapeçaria que é a Primavera Árabe, um outro fio
ameaça dominar “o grande quadro” – a divisão entre os próprios árabes, sobre a
crise síria.
Já
surgiram diferenças de posição entre, por exemplo, Omã e Kuwait por um lado, e
Arábia Saudita e Qatar por outro lado; ou entre Arábia Saudita e Egito e entre
Arábia Saudita e Iraque.
Lakhdar Brahimi |
Quando
o enviado da ONU, Lakhdar Brahimi visitou Riad recentemente, o rei Abdullah
queixou-se tanto do presidente do Egito, Mohammed Mursi quanto do presidente da
Síria, Bashar al-Assad. Não surpreende que o presidente do Irã esteja sendo
esperado no Kuwait essa semana. O ministro de Relações Exteriores do Irã, Ali
Akbar Salehi acaba de visitar o Qatar.
Já
é impossível ignorar o isolamento dos sauditas.
O
influente diário pró-sauditas Al-Hayat escreveu no sábado, com
amargura:
Os
países do CCG [Conselho de Cooperação do Golfo] já não têm hoje a possibilidade
de recorrer à Liga Árabe e depois ao Conselho de Segurança [da ONU] (...) Esse
bloco de seis partes dissociadas talvez já não possa sequer recorrer à OTAN e
pedir que intervenha (...). De fato, talvez já não seja possível, sequer, algum
acordo unânime nem entre os seis países membros, tais as diferenças de posições
que se veem.
Em
resumo, todos os aliados regionais dos EUA esperam ansiosos, até agora em vão,
como os dois personagens da peça de Samuel Beckett, pela chegada de alguém
chamado Godot, que deve chegar logo depois do dia 8 de novembro. Para se
ocuparem, enquanto esperam, comem, dormem, discutem, cantam, jogam jogos, trocam
os chapéus e consideram a via do suicídio – qualquer coisa, afinal, “para manter
à distância o terrível silêncio”. Podem até, parece, obrigar um avião ou dois, a
pousar.
Na
Síria, já começaram os lances para fechar o jogo.
MK
Bhadrakumar* foi
diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em
questões do
Afeganistão e
Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações,
dentre as quais The
Hindu, Asia
Online e Indian Punchline. É o
filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista,
tradutor e militante de Kerala.
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