1/10/2012, Thorsten Pattberg, “Speaking Freely Blog”, Asia Times
Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Thorsten Pattberg |
PEQUIM
– Pouca gente parece perceber que, bem francamente, a Bíblia desestimula as
pessoas a estudarem outras línguas. A história da Torre de Babel informa que há
uma única humanidade (os filhos de Deus), mas “as línguas são confusas”. De uma
perspectiva histórica europeia, isso sempre significou que, digamos, qualquer
filósofo alemão sempre podia saber exatamente o que pensa o povo chinês; o único
problema é que não entendia o que diziam. Então, em vez de buscar aprender a
língua desconhecida, o filósofo encomendava uma tradução.
Por
coincidência ou não, a História, com H maiúsculo, acompanhou a Bíblia. Ao tempo
da nação alemã sob o Sacro Império Romano, quando os intelectuais alemães ainda
falavam latim, o lógico alemão Christian Wolff pôs as mãos numa tradução latina
de Clássicos de Confúcio. Sua reação teve de cômica o que teve de perturbadora:
leu Kong Fu Zi ou K’ung-fu-tzu em Latim e concluiu alguma coisa como “Ótimo, a
coisa soa-me bem familiar. Acho que entendi perfeitamente o tal de Confúcio!”.
Wolff
ficou tão feliz com seus novos poderes mentais que passou a dar aulas sobre os
chineses, como se fosse o rei da China. Seria brilhante, não fosse tão
engraçado. Dentre suas obras inesquecíveis figuram coisas como “Os motivos dos
chineses”, ou “O objetivo final dos chineses” e assim por diante.
E,
claro, quando alguém vez ou outra perguntava ao máster por que jamais
visitara a China, o maior sinólogo alemão de todos os tempos achava meios para
valorizar ainda mais o seu grande triunfo intelectual. Respondia que “a
sabedoria dos chineses nunca foi assim tão valiosa, que justificasse a viagem”.
Ficou
assim estabelecido, entendo eu, que a “História” parou nesse Wolff, ou, no
mínimo, cansou-se, de vez; ou tornou-se cínica demais. Wolff demonstrara
satisfatoriamente que praticamente qualquer europeu podia converter-se em
“especialista em China” mesmo sem saber sequer uma palavra em chinês.
O
mesmo se aplicaria também a qualquer outra língua estrangeira. O suficiente para
que o filósofo alemão Immanuel Kant pudesse, sem que ninguém se escandalizasse,
anunciar “O fim de todas as coisas” [The End of All Things, 1794]; e
Georg Hegel proclamasse o “fim da história”. Ambos homens letrados, sabiam muito
bem que não dominavam qualquer idioma não europeu; resolveram então que, com a
história, se passaria mais ou menos a mesma coisa.
Essa
atitude no hemisfério ocidental não mudou. Resultado disso é que vivemos num
mundo perfeitamente enlouquecido. A maioria dos intelectuais europeus e
norte-americanos creem que os chineses “falam a nossa língua”. Diferente, só,
que eles “conversam” em chinês.
Tome-se
por exemplo o caso de “democracia” e “direitos humanos”. Não sei se alguém já
pensou nisso, mas são palavras europeias, que absolutamente não existem
em chinês. A
China bem poderia retribuir a gentileza e exigir da Europa mais
wenming [1]
e tian ren he Yi. [2]
A
atitude europeia reflete-se nas traduções europeias. A maioria dos ocidentais
simplesmente converte os conceitos-chave chineses, para a terminologia bíblica
ou filosófica mais conveniente. Resultado disso, os modernos estados-nação, como
a Alemanha em 2012, são virtualmente vedados, à prova de China.
A
tradução, é claro, é velho hábito da humanidade. O que não significa que não se
deva questioná-lo. Sempre foi hábito da humanidade cortar os oponentes em
pedaços, nas batalhas. Nem por isso continuamos o fatiamento (exceto no
Afeganistão e no Iraque). Por que insistimos ainda em destruir o vocabulário que
nos chegue de idiomas estrangeiros? Bem, acho que fazemos assim, em primeiro
lugar, por motivos sociológios.
Na
Alemanha, censuram-se sempre todos os termos significativos que apareçam
em idioma
estrangeiro. O povo alemão, assim, é levado a crer que só os
alemães sabem tudo que é preciso saber no mundo e – metaforicamente falando –
age como se soubesse. Esse é o motivo pelo qual a Alemanha produziu tantos
“historiadores” e “filósofos” como Georg Hegel, Max Weber ou Karl Marx. Os
intelectuais alemães chamam a isso deutungshoheit – que significa “plena
soberania para definir o pensamento”.
Talvez
soe deprimente, mas é a verdade e tem de ser dita: o ocidente sabe muito pouco
sobre a China, e a China cultural jamais é apresentada como verdadeiro fenômeno
global. Nem uma mínima porcentagem dos europeus letrados, pelas minhas contas,
sabe o que é ruxue, ou um junzi ou shengren. E são alguns
dos mais importantes conceitos chineses de todos os tempos.
Dito
de outro modo: alguém aí algum dia pensou por que há tantos “filósofos” e
“santos” pelo mundo, mas jamais houve um único shengren ou buddha
no ocidente? Pensem bem: qual a probabilidade de que surja algum? Quem é o autor
da versão de “História” que nos ensinam? O ocidente é presa e vítima e, no
momento em que escrevo, está sendo sangrado pela própria noção de originalidade
sociocultural.
Frequentemente
sinto-me embaraçado, envergonhado, ao ver professores asiáticos (que obtiveram
suas “qualificações” no ocidente) e que inauguram novos departamentos de
“filosofia chinesa” ou “religião chinesa” na China, quase sempre zombando de
empresários, missionários ou agências ocidentais de ajuda humanitária.
“Filosofia”
é conceito greco-helênico apropriado pela tradução judaico-cristã.
Rujiao, Fojiao, and Daojiao são jiao, ensinamentos.
E “religião” só há uma: a concepção ocidental de religião. Vivemos no ano 2012
de Nosso Senhor Jesus Cristo. A chamada “liberdade de religião” tem de ser
entendida como: “nesse mundo cristão, todos podem crer no que quiserem”. A China
é pressuposta evangelizada, precisamente porque “todas as religiões chinesas”
seguem a taxonomia judaico-cristã.
A
China não é caso isolado. A Índia também, aos poucos, se vai dando conta de que
há alguma coisa estranha no ar. A tradição sânscrito-indu inventou dezenas de
milhares de conceitos não europeus que estão sendo simplesmente impedidos de
entrar na História, por ação da mídia e da universidade ocidentais. Como se
bilhões de chineses e indianos, ao longo de 3.000 anos, jamais tivessem
inventado coisa alguma – como se lá tivessem ficado, só à espera de verem sua
criatividade e sua propriedade intelectual serem roubadas, assaltadas.
Comentaristas
ocidentais têm-me respondido, argumentando que precisamos de uma “linguagem
global” – e que o inglês seria hoje candidato preferencial ao posto. Costumo
responder: “Não sejam doidos! É exatamente o que fizeram os alemães! Hoje, vêm
os anglo-saxões, que fecham os livros de história “deles” e declaram “vocês
estão decifrados, já conhecemos vocês.”
Não.
A verdadeira “linguagem global” será radicalmente diferente do inglês
contemporâneo, ou não será nem linguagem, nem global. Terá de incorporar a
originalidade de dezenas de milhares de palavras que outros idiomas têm a
acrescentar ao patrimônio comum de toda a humanidade.
Qualquer
aluno de idiomas ou de tradutologia experimenta, de tempos em tempos, uma
espécie de profunda convicção, brotada do subconsciente, de que algo se perdeu
na tradução, sempre, em todos os casos. Mas todos temos medo de deixar avançar
nossa intuição.
É
provável que haja uma espécie de vício na história da Torre de Babel – vício
monstruoso, assustador. E se as línguas humanas absolutamente não estiverem
confundidas e misturadas? E se aconteceu apenas que nenhum grupo de seres
humanos foi jamais suficiente, em número, para explorar todas as possibilidades
de todas as línguas humanas? E se os chineses já tiverem inventado conceitos –
aos quais chamaram daxue, datong, wenming, tian ren he
Yi e tantos outros – sobre os quais nenhum norte-americano tem ideia alguma,
exatamente como – e, nisso, acho que todos concordamos – o ocidente sempre fez?
Diz-se
sempre que a língua é a chave para entender a cultura e as tradições chinesas. O
problema é: que língua?
____________________________________
Tradução
de alguns COMENTÁRIOS
Abhishek
Singh
Excelente
artigo. Muitos conceitos indianos, como dharma, maya,
mithya são sempre mal traduzidos. Por exemplo, “jagat mithya hai” é
traduzido por “o mundo é irreal”, quando, de fato, deveria ser traduzido por “o
mundo está sempre mudando”. A confusão começa quando indianos letrados que nada
sabem sobre a própria cultura aceitam a tradução errada. Historiadores
ocidentais pintam a filosofia indiana como coisa de gente espiritualizada, sem
qualquer ambição pelo ganho material. Quem dera fosse! Ninguém entende a
diferença entre sat, asat e mithya. Desculpe o comentário
longo demais, mas esse artigo mexeu comigo.
“Sat”
= constante, duradouro.
“asat”
= falso, não existente.
“mithya”
= o que antes não era mas agora é mas não permanecerá, i.e, está sempre
mudando.
Finn McMillan · University of South Australia
Excelente
comentário, Abhishek. Tendo a pensar que o próprio conceito de “religião” no
ocidente tende a ser mal entendido e gera confusão, simplesmente porque
traduzimos mal os textos das “grandes religiões” – escritos em sânscrito, pali,
chinês, árabe, aramaico, etc. Você fala de dharma. Pode-se falar também
do conceito budista de dukkha – conceito fundacional, em vários sentidos,
do budismo – traduzido como “sofrimento”, quando há muitos outros modos, mais
nuançados, de traduzi-lo.
Klaus Lee · Hong Kong Technical College
Artigo
muito interessante. Lembrei que a palavra chinesa zongjiao (traduzido por
“religião”) significa, de fato, “diferentes modos de ensinar”, o que está em
direta contradição com a ideia cristã de “só há um Deus”. Assim, quando um
cristão chinês refere-se às próprias crenças como zongjiao, melhor faria
se parasse e pensasse: “mas, afinal, o que estou
dizendo?!”
Gina
Chang · Vancouver, British Columbia
Por
isso mesmo, muitos cristãos chineses [oh! Eu também ;-)] nunca falamos do
Cristianismo como “religião”.
Finn McMillan · University of South Australia
Excelente
artigo. A “tradução” de conceitos chineses em falas ocidentais é sempre um risco
de potencial tragicomédia. Basta ler as muitas traduções deDao De Jing ou
de Yi Jing [em português, “Livro das Mutações”, I Ching] para
constatar as muitas absolutas diferenças de terminologia e de
conceitos.
Notas
dos tradutores
[1] Em artigo intitulado
“Traduções
ocidentais distorcem a realidade na China” (1/5/2012, Korea Herald),
Thorsten Pattberg discute o uso da palavra “civilização” como tradução do chinês
wenming: “Wenming é em geral traduzido como “civilização”, mas há
aí distorções graves. Em conferência recente na Universidade de Pequim
(Civilization
Cessation, Wenming Winning?)
,
o renomado linguista Gu Zhengkun explicou que wenming implica alto padrão
ético e extrema gentileza; enquanto a palavra civilization [ing.
“civilização”] designa o controle que o povo de uma cidade tenha sobre materiais
e tecnologia, algo como a capacidade para construir mísseis e obras
arquitetônicas.
[2]
Segundo
o professor Ji Xianlin, em “Harmony
of Man with Nature”,
cada um dos quatro caracteres chineses em tian ren he Yi simbolizam
respectivamente “natureza”, “seres humanos”, “compreensão mútua” e “amizade”.
Juntos, significam a consciência de que os seres humanos são parte (e pequena)
do mundo, conectados ao mundo. É um conceito arraigado na cultura chinesa. Por
exemplo, o aparelho tradicional de chá é composto sempre de três itens: o bule
tampado, a xícara e a bandeja, simbolizando o céu, as pessoas e a terra.
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