23/10/2012, Michael Brenner, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A
verdade é que o Irã foi declarado estado pária nos EUA, e está sob sanções
pesadíssimas, apenas porque perdeu um prazo no processo de apresentar documentos
à Agência Internacional de Energia Atômica, AIEA, documentos que, embora com
atraso, foram apresentados e considerados regulares. É uma espécie de caso Al
Capone (que os EUA condenaram por evasão de impostos – não por seus muitos
crimes de assassinato, extorsão, jogo, tráfico etc.) ao contrário, porque
o Irã jamais foi acusado de outro “crime” além do “crime” de ter atrasado a
entrega de alguns documentos.
Por
tudo isso, por que os cidadãos norte-americanos nos deveríamos dar por
satisfeitos com um falso debate sobre “táticas” para derrotar um regime
suposto-bandido, suposto-criminoso, suposto-hostil e suposto
perigosíssimo?
Michael Brenner |
O
que se aprendeu ontem, do debate entre candidatos à presidência dos EUA, sobre
política exterior? Nada de específico, nada que tivesse qualquer conteúdo ou
substância. A China sequer foi lembrada durante a primeira hora de debate. Não
surpreende – por três razões. São debates mais para apresentação “coreografada”
de candidatos, que ocasião para declarações ponderadas (sequer para declarações
sinceras!) das posições e ideias de cada um sobre questões internacionais. As
palavras são usadas para projetar imagens que ressoem entre os eleitores, ou
para “ganhar pontos”, não para ilustrar, para iluminar ou para persuadir pela
inteligência. E assim se torna absolutamente impossível tratar, nas
circunstâncias desses debates-circos televisionados, com alguma consistência,
dos problemas complexos, das complexíssimas negociações e dos reais perigos aos
quais está necessariamente exposto quem se proponha como única “potência mundial
indispensável”.
Debate Romney (E) versus Obama (D) (22/10/2012) Política Exterior |
Essa
tendência é ainda mais reforçada, nas eleições de 2012, pela evidência de que
nenhum dos candidatos sente-se confortável no trato de assuntos internacionais.
Os saberes de Mitt Romney, nessa especialidade, cabem em meia casca de noz; só
repete clichês, o que é sinal sempre eloquente de falta de capacidade para
tratar temas complexos, baixa inteligência ou desinteresse – e, isso, apesar de
já se estar preparando para ser presidente há, no mínimo, seis anos. Dizer que a
Rússia seria a maior ameaça que pesa hoje contra os EUA é coisa de cabeça
petrificada, que parou no tempo há 30 anos, no mínimo.
Quanto
a Barack Obama, o tempo que habitou a Casa Branca deu-lhe a experiência de
sobreviver a quatro anos cheios de surpresas e novidades, mas deixou-o
absolutamente sem projeto estratégico ou qualquer noção ponderada do que sejam,
hoje, os interesses dos EUA. Obama é especialista em escapar, com ginga, dos
golpes. Assim prossegue, saltitando sobre a superfície das relações
internacionais dos EUA.
Assim
também, Obama reproduz o velho padrão das elites políticas norte-americanas,
inigualáveis, no planeta, quando se trata de não ver e de ocultar os fracassos
norte-americanos (Iraque, Afeganistão), sempre à procura de estrada que não leve
a lugar algum, onde as mesmas elites consigam implantar fantasias e delírios
novos ou requentados, cujos slogans novidadeiros mascaram a nenhuma novidade e o
nenhum rumo (para hoje, inventaram a Guerra Global ao Terror); sempre
impulsivas, aquelas elites, convidando para alguma próxima guerra (hoje,
convidam para a guerra ao Irã); sempre cegamente confiadas, aquelas velhas
elites políticas, na fé cega de que EUAs “excepcionais” cumprem destino traçado
por Deus e sempre liderarão o mundo.
Nem
Obama nem Romney preocuparam-se com oferecer qualquer detalhe de precisão,
qualquer qualificação, qualquer nuance crítica – sequer alguma nuance
explicativa! – desse simulacro de visão histórica da história dos EUA que ensina
(ria) que os EUA “devem” governar o mundo. Obama, no “Discurso do Estado da
União”, em janeiro de 2012, anunciou, sem qualquer atenção aos fatos, que
“America is back!” [aprox. “os EUA voltaram ao jogo!” Foi frase cunhada nos
governos Reagan (1981-1989) (NTs)]. Esperava, com o anúncio, estabelecer para
sempre o seu próprio reinado indiscutível, ‘rei do pedaço’, depois de vencer
algumas escaramuças com gangues rivais em becos pelo mundo, todos bem distantes
de Washington. E assim continuamos, os EUA, a fazer exatamente a mesma coisa,
disputando escaramuças pelos becos do mundo, sempre contra adversários pobres,
até hoje. É exatamente o que estamos fazendo hoje. E nenhum dos candidatos soube
dizer sequer uma palavra sobre o quanto essa movimentação sem propósito nem
rumo, sempre bélica, arranha o status e compromete a influência que os
EUA tenham (se ainda tiverem) no resto do mundo.
Obama
jamais diz palavra, tampouco, sobre o que o tal “excepcionalismo” significa em
termos de mais sacrifícios para o povo dos EUA e outros povos, sobretudo quando
seu governo cogita de novas intervenções do Oriente Médio Expandido. Jamais diz
palavra, silêncio absoluto, sobre o quanto os norte-americanos teremos ainda de
pagar por tantas guerras.
Romney,
por sua vez, zomba do presidente pelo suposto pecado mortal de considerar a
possibilidade de negociar com governos mais fracos (no caso presente, com o Irã)
e dá seu show preventivo de músculos & armamento pesado, e fala de
como tem planos para fazer & acontecer contra a China. Mas não diz palavra
sobre o $1,2 trilhão do Tesouro dos EUA, bem guardado nos cofres chineses; finge
que não existem.
Obama
estava obrigado a não dizer mais do que o mínimo do que poderia ter dito, porque
ainda carrega a responsabilidade de conduzir as relações externas dos EUA por,
no mínimo, mais três meses. Por isso, teve de evitar respostas específicas sobre
questões hoje em curso, o que se pode entender.
Mas...
e Romney?! Romney deu-se por liberado de qualquer responsabilidade presente ou
futura. Sentiu-se livre para dizer o que lhe viesse à cabeça. Sentiu-se livre
para criticar Obama por uma suposta disposição para negociar diretamente com os
iranianos. Sequer pensou, por um segundo, que qualquer ato do governo Obama
nessa direção abriria vasta avenida para negociações futuras, que muito
beneficiariam, também, se algum dia acontecerem, algum possível governo Romney.
O
que, nesse ou em qualquer outro mundo, levaria alguém a acreditar que o que sai
pela boca de Mitt Romney quando fala em público representaria alguma convicção
refletida, se Romney é homem que se contradiz e desmente-se, que se desdiz a
cada frase, homem capaz de dizer absolutamente qualquer coisa e também o
contrário?!
Romney
tem mentalidade de investidor/batedor de carteiras, de bucaneiro sem lei, que,
hoje, só tem um objetivo: entrar na Casa Branca. Romney porá suas fichas
políticas em qualquer buraco que encontre, com ares de lhe render algum lucro,
com vistas àquele seu único objetivo.
Bill Keller escreveu na 2ª-feira,
no The New York Times, antes do debate, sobre “o que Romney pode dizer,
como comandante-em-chefe em que o país pode confiar”. [1]
Aí
está, precisamente aí, o xis do problema: para que o eleitor consiga saber se
Romney algum dia poderia ser comandante-em-chefe confiável, o eleitor teria de
ouvir manifestação clara, objetiva, sem encenações de “midia training”,
do pensamento de Romney. A ninguém interessa assistir a
manifestações-shows da capacidade de Romney para repetir frases que leia
nos jornais ou que o obriguem a decorar, em substituição a qualquer ideia
própria que Romney não dá sinais de ter.
Mas
o problema é que, nos EUA, já ninguém sabe ver qualquer diferença, nem a
importância da diferença entre mentir total e absolutamente aos cidadãos e não
mentir, não, pelo menos, tão desmesuradamente quanto Romney: nem quantidades
imensas de cidadãos, nem jornalistas afamados, supostos analistas e observadores
espertos!
Em
campanhas eleitorais, pode estabelecer-se guerra quase suicidária entre o que
pense o candidato e o que pensem os conselheiros que o cercam. Mas também pode
acontecer de a harmonia-de-repetição ser perfeita, total. Romney optou por
cercar-se de toda a caixa de Pandora das pragas que Donald Rumsfeld, antes,
oferecera a Rick Perry. São os sócios fundadores da gangue que governou os EUA
durante o governo Bush, a mesma gangue que arrastou o país à tragédia e à ruína
no Iraque.
E fato é que Romney passou o final
de semana trancado com Dan Senor seu principal mentor político de campanha.
Senor foi porta-voz de L. Paul Bremmer III na “Zona Verde”, conhecido então como
possível sucessor do “Baghdad Bob” e por seus supostos vastíssimos conhecimentos
de “política exterior”. [2]
Mas
há também razão mais profunda que explica o modo vicioso como toda a campanha
eleitoral e os dois candidatos tratam das grandes questões internacionais.
Os
dois candidatos partilham a mesma idêntica inabalável certeza de que os EUA
devem continuar a agir, pelo mundo, como se fossem a última e melhor esperança
para a salvação da humanidade. Porque creem nesse postulado de fé, os dois
candidatos dispensam-se do dever de dizer coisa com coisa aos cidadãos e
dispensam-se, inclusive, do dever de dizer claramente quais, afinal, seriam os
tais “interesses dos EUA” cuja “defesa” tanto custa, em vidas e em dinheiro, ao
povo dos EUA. Tampouco se sentem obrigados a conciliar aqueles seus tais
ambiciosíssimos interesses, apresentados aos eleitores como se fossem interesses
dos EUA, com os limitadíssimos recursos do país. Nem dão qualquer atenção à
urgente necessidade de reaprender, para voltar a usá-las, as artes da
diplomacia. São artes absolutamente indispensáveis a quem busque a paz e a
reconciliação, muito mais que guerras sem fim, miséria sem fim para os
norte-americanos e degradação diária, continuada, do mais valioso patrimônio que
os EUA algum dia tiveram para mostrar ao mundo: o prestígio da democracia
norte-americana e alguma autoridade moral.
Pois
nenhum dos dois candidatos, no debate de ontem, deu qualquer sinal de qualquer
atenção à dura nova realidade dos EUA. Provavelmente entendem que dizer coisa
com coisa e não mentir tão vasta e completamente seria suicídio eleitoral. Além
disso, nenhum dos dois refletiu, de fato, sobre qualquer coisa, sobre
implicações do que digam ou façam; nem, muito menos, cuidaram de oferecer
qualquer pensamento mais sólido aos cidadãos.
Então
lá ficaram, os dois candidatos... metendo goela abaixo dos eleitores um
amontoado de rematadas tolices; ou só frases feitas, pensadas, exclusivamente,
para nada dizerem; e nenhuma conclusão de coisa alguma. Disso se fez o debate de
ontem: de nada. Fez-se, sobretudo, de nenhum respeito decente ao pensamento e à
inteligência dos cidadãos dos EUA.
É
revelador também que o debate tenha começado com conversa sobre o ataque ao
consulado dos EUA em Benghazi, Líbia. A questão
era encontrar culpados. É fazer da política e da guerra tema de romance ou
novela, tratar assuntos de guerra e política como se fossem ficção de
entretenimento. Criar suspenses, atrair audiências. Ora essa! Os EUA meteram-se
em guerras, literalmente, em todos os pontos mais violentos do mundo, os quais,
se já não eram violentos, tornaram-se violentos depois de os EUA armados
aparecerem por lá, invadindo e ocupando. Nessas circunstâncias, é claro que
norte-americanos correm riscos, podem ser feridos e mortos. Por que alguém
esperaria que os norte-americanos que estivessem nos últimos tempos
em Benghazi,
Líbia , devessem ter ou tivessem algum tipo de imunidade? Não
temos imunidade alguma. Muitos norte-americanos estão morrendo nas guerras em
andamento. Aí está uma verdade clara, que o debate não trouxe ao palco. Ao
contrário: o debate ajudou a escondê-la.
São
profundas as implicações práticas de insistir no excepcionalismo dos EUA. No
caso do Irã, por exemplo. O fracasso (muito provável) das sanções como
instrumento para forçar a República Islâmica a ajoelhar-se e render-se ao que os
EUA desejam já praticamente sem dúvida alguma arrastará os EUA para mais guerras
– uma guerra cujas repercussões farão Iraque e Afeganistão parecer incidentes
sem importância (exceto, como sempre, para os mortos e suas famílias).
Pois
nem a ameaça de nova guerra e guerra terrível que pesa sobre os EUA foi
suficiente para que um – um só dos candidatos, que fosse, um, pelo menos! –
introduzisse, no debate, o tema da paz: os dois candidatos só fizeram repetir e
repetir frases feitas sobre “a ameaça iraniana” e o risco de “os mulás” virem a
ter bomba atômica. O que se viu no debate foi absoluta concordância a favor de
mais guerra – embora haja diferenças “espetacularizadas”, quase que só
cenográficas, nas táticas.
É
compreensível que assim seja, porque essa foi a visão construída e divulgada
para os EUA pela máquina de propaganda dos dois presidentes – de Bush e de Obama
– já há uma dúzia de anos. Essa máquina de propaganda domina completamente a
imprensa, todos os veículos e meios, os centros de estudos e pesquisas, os
think tanks e os políticos em geral. Quando reina a opinião única,
praticamente já ninguém se dá conta de que a tal opinião única pode não passar
de um amontoado de tolices ou de um amontoado de mentiras.
Debates
políticos televisionados têm de ser tratados como coisa mais séria. Também os
postulados de fé da opinião única (que é opinião única também entre jornalistas
e especialistas acadêmicos) têm de ser objeto de discussão.
Afinal,
depois do desastre que foram as “conclusões técnicas” e as “opiniões de
especialistas” e as “avaliações jornalísticas” que arrastaram os EUA para o
Iraque, já parece mais que justo, adequado e oportuno que os cidadãos exijam
melhores debates, que se alimentem de e ofereçam ao público melhores “conclusões
técnicas”, melhores “opiniões de especialistas” e melhores “avaliações
jornalísticas”. Por que tantos ainda insistem em arrastar os EUA para mais
guerra? O que se viu no debate de ontem prova que essa pergunta permanece sem
resposta.
Os
dois candidatos concordavam 100% com a ideia de que o Irã “é” estado criminoso.
Isso é delírio! Não há lei em lugar algum do mundo, nem da ONU nem de qualquer
organização reconhecida, segundo a qual o Irã pudesse ser definido como estado
criminoso.
Até hoje, o Irã só
foi acusado e condenado por uma infração técnica de algumas das obrigações que
teria como signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear, quando o Irã
deixou de informar a Agência Internacional de Energia Atômica sobre uma etapa de
suas atividades nucleares – e eram atividades civis. Logo depois de autuado, o
Irã atualizou as informações que devia à AIEA; e sua situação voltou a ser
absolutamente regular.
A
verdade é que o Irã foi declarado estado pária nos EUA, e está sob sanções
pesadíssimas, apenas porque perdeu um prazo no processo de apresentar documentos
à AIEA, documentos que, embora com atraso, foram apresentados e considerados
regulares. É uma espécie de ‘'caso Al Capone'’ (que os EUA condenaram por evasão
de impostos – não por assassinato, extorsão, jogo, tráfico etc.) ao contrário –
porque o Irã jamais foi acusado de outro “crime” além do “crime” de ter atrasado
a entrega de alguns documentos.
Por
tudo isso, por que os cidadãos norte-americanos nos deveríamos dar por
satisfeitos com um falso debate sobre “táticas” para derrotar um inexistente
regime suposto-bandido, suposto-criminoso, suposto-hostil e suposto
perigosíssimo?
Muito
melhor do que nos pormos a discutir aquela encenação, é tratarmos de discutir o
que se pode ainda fazer para evitar guerra cataclísmica. Entre as poucas
possibilidades que ainda restam sempre há a possibilidade de tentar um acordo,
em termos que satisfaçam os dois lados e não apaguem do mundo as legítimas
preocupações do Irã com sua própria segurança. Por que essa solução não poderia
ser sequer citada?! Por que não serviria?!
Ninguém
que entenda que líderes de repúblicas democráticas têm o absoluto dever de ser
claros e explícitos sobre os porquês e os para quês de arrastarem os EUA para
novas guerras que não interessam a nenhum cidadão norte-americano pode
declarar-se satisfeito com o que foi impingido ontem à noite a toda a nação
norte-americana, como se fosse debate sobre política externa.
Notas
de rodapé
[1] 21/10/2012, NYTimes, Bill
Keller em: “Presidential
Mitt”
[2] Há vídeo-matéria
sobre ele, de 22/9/2012, Crooks & Liars, em: “Mrs. Greenspan Gives Bush's Baghdad
Bob, Dan Senor Time to Pretend He's Credible on Foreign
Policy” [NTs] a
seguir:
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