27/10/2012, David Wearing
(resenha), Al-Jazeera
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
MILNE, Seumas. The Revenge
of History: The Battle for the 21st Century, New York: Verso,
2012.
Sem tradução em português
(NT )
Em março de 2003, Seumas Milne escreveu que os EUA e seus aliados “enfrentarão guerrilha determinada, em luta de resistência [no Iraque], a partir do momento |
David Wearing |
Tema recorrente nas tragédias do
antigo teatro grego sempre foi o desamparo humano, ante o que o destino decrete.
Personagens como Laio, em Édipo Rei, de Sófocles, confrontam poderes
superiores a eles, para sempre se verem derrotados, exatamente como já previsto
no início da peça. Uma tragédia conexa, também canônica, é a de
Cassandra
[1], cujas
predições são recebidas com descrédito e zombarias e, adiante, se confirmam. Daí
deriva a metáfora vigente ainda hoje.
A
analogia não é perfeita. Mesmo assim, se pode substituir o destino, como poder
maior que o poder humano na visão de mundo grega clássica, pelo, no mundo
moderno, perpétuo desenvolvimento de relações sociais, econômicas e políticas ao
longo da história, que não tem caminho preordenado por potências divinas, mas o
qual, mesmo assim, sempre é um inescapável contexto mais amplo em que se
inscrevem nossas ações.
Seja
como for, hoje e nos mitos da antiguidade, sempre são os que estão em posições
de poder que se supõem capazes de desafiar aquelas forças superiores. E, no
mundo moderno, Cassandras são os que contradizem o poder, denunciam a húbris dos
poderosos e dizem as verdades que o poder preferiria não ouvir.
A
atmosfera triunfalista nas capitais ocidentais, imediatamente depois do colapso
da URSS produziu avaliações em que os EUA apareciam como a única
superpotência mundial, avaliações que foram da pura húbris falante à mais
absoluta irracionalidade.
Como
Bush, quando anunciou uma “Nova Ordem Mundial” baseada na supremacia militar e
econômica de Washington; ou Francis Fukuyama, ao declarar “o fim da história” –
pretendendo que o liberalismo ocidental (em sentido benigno, como o via, como
uma força pela democracia e pela prosperidade, não como imperialismo e
exploração) teria emergido vitorioso da lutas históricas, convertido em ideal
definido e não contestado ao qual todos aspiraríamos.
Fukuyama
uniu-se com outros neoconservadores sob a bandeira do “Projeto para o Novo
Século Americano”, usando mais tarde os eventos do 11/9/2001 para promover as
agressivas políticas exteriores e militares de Bush 2º.
Fracasso
catastrófico em 2008
Em
2004, um alto assessor presidencial disse a um repórter, para a coluna
“Magazine” do New York Times, que:
Agora somos um império, e quando
agimos criamos nossa própria realidade. E enquanto você estuda essa realidade
(...) nós agiremos novamente – criando outras novas realidades, que vocês também
podem estudar, e é assim que são as coisas. Somos atores da história (...) e
vocês, todos vocês, só podem estudar o que nós fazemos. [2]
No final, o “Novo Século
Americano” dos neoconservadores durou cerca de sete anos, dos ataques da
al-Qaeda em
Washington e New
York que foram o gatilho que disparou a “Guerra ao Terror”,
até a saída, da Casa Branca, de um George W Bush já muito reduzido, com o
pântano do Iraque e do Afeganistão já tendo demonstrado “os limites, não a
extensão, do poder militar dos EUA”, nas palavras de Seumas Milne. [3]
Enquanto isso, o crash dos
bancos de 2008 expôs, como fracasso catastrófico, o modelo anglo-norte-americano
de capitalismo hiper financeirizado e desregulado. Para Joseph Stiglitz, Prêmio
Nobel de Economia, a queda de Wall
Street [lit. “Rua do Muro”] foi, para o “fundamentalismo de mercado”, o que
a queda do Muro de Berlim foi para o comunismo. [4] A ideia segundo a qual o
“capitalismo democrático de mercado [seria] o estágio final do desenvolvimento
social” e que “mercados absolutamente livres, sozinhos, pode(ria)m assegurar
prosperidade e crescimento econômico” acabou, então, conclusivamente
desacreditada.
Em
The Revenge of History [A Vingança da História], coletânea das colunas
que publicou no jornal britânico The
Guardian ao longo de 10 anos, Milne observa que as Cassandras que
previram o grande crash financeiro, pareciam falar – como Paul Krugman,
Ann Pettifor, David Harvey ou Steve Keen – de algum ponto da esquerda do
espectro político.
Milne
também lembra as denúncias histéricas disparadas contra ele, por sua temeridade,
ao publicar, como editor do The Guardian, imediatamente depois do
11/9, críticas ao aventureirismo militarista de Bush e Blair, e por questionar a
narrativa simplória do “choque de civilizações” dominante naquele momento. Mais
uma vez, a história vingaria as Cassandras da esquerda, que haviam previsto as
mais catastróficas consequências para o novo militarismo de George Bush e Tony
Blair.
Poucos
dias depois do 11/9, Milne alertou que “a determinação de Blair, de associar
cada vez mais intimamente a política externa britânica à política externa dos
EUA [só conseguiria] aumentar o risco contra as cidades britânicas [e] alimentar
o sentimento antiocidente”. No final de 2002, Milne escreveu que a então
iminente invasão do Iraque “serviria como combustível ao terrorismo em todo o
mundo e aumentaria o risco de ataques terroristas em todos os países que
apoiassem aquela invasão”.
Dia
7/7/2005, suicidas-bomba da al-Qaeda assassinaram 52 cidadãos inocentes e
feriram mais de 700 no centro de Londres, apresentando, como uma das
justificativas para a aquela ação, a invasão e a ocupação do Iraque. Como Milne
e outros haviam previsto, a “guerra ao terror” chegara como uma dádiva aos
terroristas e aos seus agentes recrutadores.
Em
março de 2003, Seumas Milne escreveu que os EUA e seus aliados “enfrentarão
guerrilha determinada, em luta de resistência [no Iraque], a partir do momento
em que Saddam
Hussein for derrubado” e, provavelmente, “serão expulsos”.
Em
2004, previu que as então próximas eleições para eleger o Conselho Legislativo
na Palestina mostrariam “deriva na direção de maior radicalização”, como
resultado de Israel continuar a negar quaisquer direitos humanos básicos às
populações nos Territórios Ocupados da Palestina. E, para grande choque de
Israel e do Fatah, partido aliado do ocidente, o Hamás conquistou maioria dos
assentos no Parlamento palestino, apenas um ano depois.
Recessão
e “repique” [orig. “Double-dip recession”
[5]
E
o mesmo que se via acontecer aos neoconservadores acontecia também aos
neoliberais. A quebradeira de 2008 e as subsequentes depressão e austeridade
apenas confirmaram o que diziam os críticos inadequadamente chamados de
“antiglobalização” já há muitos anos; o neoliberalismo, citando Milne, “estava
dando poder a bancos tecnicamente quebrados (...) fazendo aumentar a miséria e a
injustiça social [e] esquartejando a democracia”.
Nos
anos pós-quebradeira, Milne foi das raras figuras destacadas da imprensa-empresa
a dar à nova obsessão com a disciplina fiscal o nome correto: audacioso golpe
“de mão” para obter que o fracasso do modelo de livre mercado fosse rapidamente
esquecido, com os holofotes, a partir de então, voltados exclusivamente para os
déficits do setor público (sempre resultantes, em vasta medida, da quebradeira
do mercado financeiro).
Milne chamou atenção, antes de a
direita chegar ao poder na Grã-Bretanha com o Partido Conservador, em 2010, que
a austeridade fiscal criava o risco de “recessão e repique (...) [e]
enfraqueceria ainda mais as finanças públicas”. Três anos depois, todos viram
que acertara em cheio, nas duas pontas. [6]
Evidentemente,
nenhuma perspectiva política tem algum monopólio da sabedoria, jamais erra ou
está a salvo de reproduzir ideias já comprovadas falsas ou irracionais. Mas,
como A Vingança da História ajuda a lembrar, a esquerda, nos últimos dez
anos, acertou muito mais vezes – sobretudo em questões e economia e política
exterior –, com a direita e os liberais praticamente sempre errados, em tudo que
disseram e previram. E não poucos casos, grosseiramente errados. Como se pode
explicar isso?
Como
o respeitado historiador marxista Eric Hobsbawm (falecido esse mês) escreveu,
“só quem se livre das ilusões da sociedade burguesa pode ser bom cientista
social”. O princípio aplica-se – mais amplamente que a qualquer outro cientista
ou profissional que viva de tornar inteligível o mundo social e político – aos
jornalistas.
Ainda
que qualquer genuína e total objetividade seja impossível, é preciso, pelo
menos, não se deixar submergir, sem nada questionar, na sabedoria convencional
do dia ou da moda. Todas as ideias políticas dominantes em qualquer dado momento
são inevitavelmente e desproporcionalmente modeladas pelos que gritam mais alto:
os mais ricos e mais poderosos. E é indispensável que o jornalista prepare-se
para não se deixar tomar completamente por ideias dominantes ou não conseguirá,
nem ter, nem oferecer visão clara sobre o que esteja acontecendo.
Na
prática, hoje, o que se vê é que internalizar “as ilusões da sociedade burguesa”
parece ser quase pré-requisito para ingressar na vida política “oficial”, seja
como político ou como colunista de jornal da imprensa-empresa em nossos dias.
Pelos olhos de Milne, lendo seus escritos, chama a atenção a
frequência com que sua opinião afasta-se do consenso, desafiando não só opiniões
individuais, mas também a opinião generalizada em seu grupo de atividade, o
jornalismo.
Elemento-chave
nesse distanciamento, ao comentar questões de política exterior, é o instinto
que move esse jornalista para sempre escrever de olhos postos nos povos do sul
global, não nas prioridades do poder ocidental. Durante a guerra de Israel
contra Gaza, entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009, Milne explicitamente
convocou seus leitores a se porem na pele dos povos de todo o Oriente Médio, que
viam diariamente pela televisão imagens horrendas da carnificina diária que
Israel estava promovendo em Gaza (imagens que nós, no ocidente, não vimos), e a
“considerar que espécie de resposta o ocidente daria, se o povo atacado fosse
israelense (ou norte-americano ou britânico) e, em apenas alguns dias, alguma
cidade ocidental visse as ruas cobertas de mais de 300 cadáveres de inocentes”.
Fracassos
da URSS
É
muito raro, para dizer o mínimo, que jornalistas comentaristas de política
exterior, na imprensa-empresa britânica ou norte-americana, deem voz aos
objetos-alvos do poder ocidental e enfatizem seu ponto de vista. Praticamente só
o próprio poder fala.
A
disposição de Milne para considerar o ponto de vista de outros combina-se a uma
habilidade para afastar-se do momento e ver as notícias do dia sempre em
contexto histórico mais amplo. No período coberto por esses ensaios, várias
vezes construiu comparações muito pertinentes entre a era anterior do
liberalismo imperial e a tentativa de dar-lhe sobrevida no período Blair e Bush.
No século 19, como no século 21,
os agressores viram-se eles mesmos, sempre, como força a favor do progresso e da
civilização. Então, como hoje, os objetos-alvos do império recusaram-se a
aceitar que seus próprios interesses fossem subordinados aos interesses de força
estrangeira ocupante. Milne identifica corretamente os debates contemporâneos
sobre história imperial e as tentativas de recuperar o prestígio moral do
império [7], não como meros exercícios
acadêmicos, mas como lutas nas quais o que está em disputa é o enquadramento
intelectual das políticas contemporâneas.
Nova era
glacial: a “guerra ao terror”, dez anos depois
O
que se exige nem é tanto alguma reparação pelos crimes do século 19, mas que a
política, hoje, seja informada por “uma compreensão de que a barbárie é
consequência inevitável de tentativas de impor o poder de força estrangeira
ocupante, sobre povos vistos como objetos-alvos”. Que os agentes de uma
pressuposta “intervenção humanitária” tenham acabado por produzir os horrores de
Fallujah e Abu Ghraib não seria jamais surpresa para quem se tivesse preparado
para nunca deixar de ver o contexto histórico.
Assim
também, no campo econômico, a catatonia generalizada do pensamento, que se
seguiu ao fracasso em 2008 do livre mercado, poderia ser facilmente evitada se,
em vez de usar o colapso do modelo soviético para explicar qualquer coisa; como
ponto de referência com 1001 utilidades; e como substituto de qualquer reflexão
sobre os 20 anos anteriores, jornalistas e analistas tivessem considerado
objetivamente também o que aconteceu na Rússia nos anos pós-Guerra Fria.
Uma
terapia de choque neoliberal ampliou os fracassos da URSS a nível catastrófico e
transformou uma claque de burocratas que não tinham de prestar contas a ninguém
em claque de cleptocratas que não tinham de prestar contas a ninguém – enquanto
o número dos que viviam na miséria subiu de 14 milhões em 1989 para espantosos
147 milhões, em menos de dez anos. Realizações desse modelo econômico marcaram,
triunfantemente, o “fim da história”.
Milne,
nesses anos, serviu-se de disciplinas analíticas e, em larga medida, do
pensamento de esquerda: a decisão de manter-se fora do círculo das “ilusões da
sociedade burguesa”, para considerar a perspectiva dos que estão do lado fraco
da mira dos fuzis e ver o contexto histórico como deve ser visto, não como o
poder deseja que seja visto.
Acima
de tudo, o que torna o jornalismo de Milne caso absolutamente à parte entre seus
pares na imprensa britânica é a decisão de jamais apagar os repetidos fracassos
do liberalismo; e de sempre considerar as relações materiais de poder inerentes
à política, com o papel crucial que têm na modelagem das políticas dos governos
ocidentais.
Confiança
intelectual
Adotar esses princípios não
assegura infalibilidade a ninguém. Em 2001, Milne escreveu que o fim da URSS
havia “reduzido o escopo para alianças diferentes” acessíveis para os países em
desenvolvimento que buscavam tornar-se independentes do poder ocidental. Mas os
anos seguintes assistiram ao acentuado declínio da influência dos EUA em seu
próprio quintal, com um estado depois do outro, na América Latina, encontrando
vias para livrar-se de Washington; e com a cooperação regional [8] convertendo o fim da dominação do
norte global em possibilidade real, pela primeira vez em 500 anos. Diga-se a bem
da justiça que Milne não foi absolutamente o único a ser prazerosamente
surpreendido por esses bem-vindos desenvolvimentos.
Nem
o fato de adotar o quadro teórico da esquerda anti-establishment fecha os
espaços de discordância e debate. Em minha avaliação, as colunas recentes de
Milne sobre a guerra civil na Síria exageram na significação (por importante que
sejam) das dimensões geopolíticas do conflito, e não levam suficientemente em
conta as dinâmicas internas que, no final, ainda se poderão comprovar mais
decisivas. Perspectivas analíticas são apenas guias gerais imprecisos, cuja
utilidade depende de como se as tomam, em cada situação particular. (...)
O
mais importante, na mensagem que se extrai do livro é o próprio tema principal –
quem teve mais sucesso na exposição/explicação do mundo pós-Guerra Fria em que
vivemos, e por quê. Afinal, a esquerda já pode deixar para trás o estilo
cabisbaixo que a caracterizou nos anos 90s, quando parecia aturdida pela onda
montante do neoliberalismo.
As
Cassandras estão vingadas, mas essa pode ser vitória sem vencedores, ou
beneficiar, no máximo, alguns de nossos egos. Hoje, diferente do que se viu nas
peças clássicas, só muito raramente os que se deixaram tomar pela húbris são
punidos pelos próprios erros. Quem continua a pagar preço mais caro ainda são os
objetos-alvos do poder. De Bagdá a Atenas. De Wisconsin ao Bahrain.
A
esquerda precisa, urgentemente, reencontrar a confiança que Milne trabalha para
reinsuflar nela, porque as apostas, hoje, são mais altas que nunca. Como disse
Naomi Klein, “é tempo de vencer mais do que discussões”.
Notas
de tradução
[1] Cassandra era
filha de Príamo, rei de Tróia. Impressionado pela beleza de Cassandra, Apolo
deu-lhe o dom da profecia. Mas quando Cassandra recusou os avanços apaixonados
de Apolo, ele a amaldiçoou: Cassandra conservaria o dom da profecia, mas ninguém
jamais acreditaria nela. Cassandra, assim, é aquela que conhece o futuro e o
enuncia, mas sem conseguir convencer ninguém.
[2] 17/10/2004, “Faith,
Certainty and the Presidency of George W. Bush” [Fé, certeza e a
presidência de George W. Bush], Ron Suskind, The New York Times, Magazine.
[3]
19/10/2012, redecastorphoto em: “O
fim da Nova Ordem Mundial”, Seumas Milnes, em português.
[4]
16/6/2009, Joseph Stiglitz, Carta Maior, “As
mensagens tóxicas de Wall Street” em português.
[5] “Double-Dip Recession” ocorre quando o PIB volta a ter crescimento negativo, depois de um trimestre ou dois de crescimento positivo. Em português “recessão de duplo mergulho”, “recessão e repique”, “repique de recessão” ou “repique recessivo” refere-se a recessão seguida de recuperação não duradoura, seguida de nova recessão, (em inglês).
[6] 25/7/2012, The Guardian,
Larry Elliot em: “UK
GDP slump: Osborne's blundering incompetence made the economy sicker”
(em inglês),
[7] Pankaj Mishra, “Watch this
man”, London Review of Books, vol. 33, n. 21, 3/11/2011, pp.
10-12, em inglês.
[8] 5/1/2007, International Herald Tribune, Noam Chomsky em: “South America: Toward an
Alternative Future”.
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