20/10/2012, Narciso Isa Conde*, Tiro Al
Blanco/La Pluma (Santo Domingo, Republica Dominicana)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Nas
montanhas da Colômbia, Narciso é ladeado pelos comandantes Ivan Márquez e Jesús
Santrich, ambos representantes das FARC-EP no diálogos de paz |
A
prolongada guerra civil colombiana tem suas causas no regime violento e cruel de
dominação, exploração e exclusão social, econômica, política, cultural (...) que
se formou ao longo da história da Colômbia, muito especialmente nos últimos 60
anos.
É
produto do modelo agrário, do latifúndio, da dependência, das aberrações de um
capitalismo constantemente recolonizado, do sistema de repressão e terror
político patrocinado pelos EUA e suas doutrinas militares, da negação da real
democracia, da cultura violenta e despótica promovida pela classe
dominante-governante durante seis décadas, pelo ímpeto de depredação e
empobrecimento do neoliberalismo ao longo dos últimos 20 anos e da crescente
intervenção de unidades militares especializadas e de bases norte-americanas e
israelenses de operações em território colombiano, para tutelar guerra local de
baixa e média intensidade contra as forças insurgentes e a população
insatisfeita.
Isso
se traduziu em fome, desigualdades escandalosas, profundas injustiças sociais e
de todo tipo, abuso de poder, torturas, paramilitarismo (perversamente acolhido
e mantido a partir do Estado), narcomilitarismo e narcopolítica, assassinatos a
granel (incluídos os executados com motosserras, chamados “falsos positivos”),
as grandes covas comuns e cemitérios clandestinos), despejos massivos e cruéis,
deslocamentos massivos forçados, restrições às liberdades, delinquência de
Estado e corrupção do sistema de partidos tradicional...
A
insurgência armada e a rebeldia social e política não armada foram uma resposta
político-social a essa realidade cruel, a essa guerra suja em tempo integral:
guerra de Estado, da classe dominante, do poder imperialista e máfias associadas
a essas forças.
O
problema da posse e do uso de armas
As
armas em poder dos e das revolucionários e revolucionárias civis das FARC-EP e
do ELN não são causa dessa guerra, mas resposta forçada à violência social,
econômica, cultural, política, militar e paramilitar que chega ao povo imposta
de cima para baixo e usada sistematicamente como fator de submetimento, opressão
e represálias.
Armas
podem existir e não ser usadas, podem ser necessárias ou desnecessárias,
possuem-se ou não se possuem armas, conforme as circunstâncias. Nem sempre é
necessário distribuir armas no curso das lutas populares. Mas, sim, podem ser
indispensáveis quando são garantia de direitos justos, de vários deles,
inclusive do direito de dialogar em busca de paz.
Os/as
primeiros a ter e usar armas não foram membro das forças insurgentes
revolucionárias colombianas. Esses foram, isso sim, os primeiros a propor um
cessar-fogo, para que se criasse clima adequado a essa segunda fase dos diálogos
de paz inaugurados em Oslo-Noruega, dia 19/10/2012.
Agenda
comum e intenções reveladas
Comandantes Iván Márquez e Jesús Santrich na mesa de negociações |
O
comandante Iván Márquez – que conheço, de quem gosto e que admiro – falando em
nome da delegação das FARC-EP no ato inaugural, procurou, em sentido geral, de
forma elegante e profunda ir à medula do problema, às causas profundas do
conflito armado, identificar a guerra e as injustiças e desigualdades, ao modelo
agrário, ao modelo mineiro, à dependência e à intervenção estrangeira, ao tipo
de sociedade, ao sistema político excludente, à necessidade de mudança profunda
e integral. E o fez nos termos da agenda preliminar aprovada pelas partes.
O
representante do governo e do poder estabelecido na Colômbia, o
ex-vice-presidente Humberto De la Calle, respondeu dizendo que “nem o modelo
econômico, nem a doutrina militar nem a inversão estrangeira estão em discussão.
A mesa se limitará só aos temas que estão na agenda. As ideias que as FARC
queiram ventilar são suas, podem promovê-las depois de acabado o conflito e
terão de fazê-lo sem armas”.
O
caso é que a agenda aprovada contempla a questão agrária, a participação
política, o narcotráfico, a situação das vítimas e o fim do conflito, nessa
ordem e sem que em momento algum a agenda inclua ou preveja, como condição a
entrega prévia e unilateral das armas das FARC-EP.
O
senhor De la Calle – personagem com escassa experiência de andar por ruas das
periferias – enunciou, sem querer querendo, saídas diretamente das entranhas, as
intenções fundamentais de poderosos setores do oficialismo pró-imperialista
ativas nesses diálogos: cercar, pressionar fortemente as FARC-EP, para que
aceitem entregar unilateralmente suas armas. É o meio com que contam para
continuar a apresentar o exército popular, construído pelos e pelas
guerrilheiros e guerrilheiras, durante décadas de sacrifícios, como causa
básica, quase única, da guerra e da violência.
De
la Calle expôs imprudentemente fora de hora, tolamente precipitado, a pretensão
do governo de apresentar “outras” raízes para o conflito armado, diferentes das
que o comandante Iván Márquez listara; situou aquelas raízes, outra vez, no fato
de haver armas em mãos de guerrilheiros: a insurgência seria causa do conflito,
não consequência do conflito; já pressionando na direção de exigir a rendição
das FARC; como se a paz só fosse cogitável se a guerrilha for desarmada,
desmobilizada e “legalizada”, deixando intactos o sistema e seus modelos
setoriais, ou modificado, só, por reformas limitadas e mudanças domésticas.
Bandeira das FARC-EP |
Por
tratamento especial para o tema das armas
O
representante do presidente Manuel Santos, cujo governo está montado numa crise
sistêmica integral e sitiado por movimento político-social (armado e não armado)
em ascensão, ignorou que agora, mais que nunca na Colômbia, a palavra paz
significa justiça; os acordos entre as partes implicam mudanças substanciais, e
a questão das armas exige tratamento totalmente diferente do tradicional.
E
isso vale igualmente para as FARC-EP e o ELN e também para o vergonhoso regime
colombiano.
A
ninguém deve ocorrer a ideia de que seriam tolos os guerrilheiros que lutam a
guerrilha mais antiga, mais experiente e mais heroica da história moderna em
todo o mundo. E confesso que, para mim, seria desconcertante, triste surpresa,
que cometessem erro dessa magnitude – repetindo os erros que tanto nos custaram,
do M-19, raiz da desmobilização e da deposição das armas, efeito dos acordos que
deram lugar à vida legal-eleitoral da União Patriótica, do pactado na Guatemala
e, inclusive do que ocorreu nesse plano, embora com consequências menos graves,
em El Salvador.
Manuel Marulanda |
Relembrando
Marulanda
Nunca
esquecerei o que me disse o camarada Manuel Marulanda durante longa, íntima
conversa, quando visitei a Colômbia no início dos diálogos de paz do Caguán,
quando me deu plena certeza de que os dirigentes das FARC jamais aceitariam
dissolver, numa mesa de conversa, o exército popular construído com enormes
sacrifícios durante mais de 40 anos. O camarada Marulanda repetiu que o exército
popular é patrimônio do povo em luta e a revolução em marcha, que tinha de ser
parte e garantia das mudanças a serem feitas, mesmo que sob o marco de qualquer
acordo com vistas a uma etapa de paz e a uma transição democrática.
Tenho
certeza de que a nova e talentosa direção dessa força insurgente continuará leal
a essa concepção medular exposta por seu líder legendário, que, além de defender
acertadamente o que o esforço revolucionário coletivo acumulou, rechaça
categoricamente a ideia do desarmamento unilateral e de entregar o monopólio da
ação militar em mãos das direitas e do bloco dominante.
O
fim do atual conflito armado na Colômbia é o último ponto a ser abordado, na
agenda acordada. A inclusão nessa posição indica que tratamento adequado da
questão dependerá dos êxitos que se obtenham nos quesitos anteriores e que de
modo algum o fim do conflito armado estaria inexoravelmente amarrado à entrega
de armas por qualquer das partes, embora, sim, por definição a paz implique o
fim do recurso às armas e, consequentemente, dos combates armados.
Sou
dos que pensam que, nesse caso, uma paz com garantias duradouras, sem riscos
graves de desequilíbrios inadmissíveis e de violações imediatas, nunca será
obtida mediante a dissolução sumária dos exércitos populares, mas, sim,
buscando-se formas novas, originais, de convivência e coexistência de todos no
processo da transição democrática e de construção da nova institucionalidade.
As
FARC e o ELN são organizações político-militares com ampla presença nacional. O
militar, o político e o social que nelas se combinam são a garantia de sua
existência e de sua potência duradoura, de que se cumprirá a agenda de mudanças
nacionais, de que os movimentos democráticos, patrióticos e revolucionários
civis serão defendidos. Se se deixassem desarmar unilateralmente, estariam,
lamentavelmente, decretando seu autoextermínio progressivo e o retrocesso de
qualquer avanço que se possa obter nos diálogos de paz. Esse é dado muito claro
e forte da história colombiana e lição a extrair dessa fase altamente perigosa,
consequência da decadência e da ainda maior agressividade do imperialismo
norte-americano.
Jamais
a paz foi sinônimo necessário do desarmamento de apenas um dos lados. A paz é,
isso sim, sinônimo necessário de justiça, liberdade, bem-estar coletivo, fim dos
conflitos armados e plena garantia de que o que for acordado agora será
executado, com plena participação e sob vigilância popular. As atuais
conversações de paz não podem vir a ser exceção, nessa definição de paz
efetiva.
Narciso Isa Conde* é marxista. É analista político, escritor e veterano
das lutas contra a ditadura de Trujillo e a invasão ianque à República
Dominicana em 1965. Durante a revolução de abril de 1965, representou o Partido
Comunista no comando político da revolução chefiado pelo coronel Francisco
Caamaño. Em sua longa carreira política, foi preso, perseguido e exilado pelo
governo de Joaquín Balaguer. Isa Conde é hoje um dos líderes do Movimento
Caamañista (MC) e participa da presidência coletiva do Movimento Continental
Bolivariano.
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