quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Diálogos de paz na Colômbia: Duas visões que se enfrentam já desde o primeiro instante


20/10/2012, Narciso Isa Conde*, Tiro Al Blanco/La Pluma (Santo Domingo, Republica Dominicana)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Nas montanhas da Colômbia, Narciso é ladeado pelos comandantes Ivan Márquez e Jesús Santrich, ambos representantes das FARC-EP no diálogos de paz
A prolongada guerra civil colombiana tem suas causas no regime violento e cruel de dominação, exploração e exclusão social, econômica, política, cultural (...) que se formou ao longo da história da Colômbia, muito especialmente nos últimos 60 anos.

É produto do modelo agrário, do latifúndio, da dependência, das aberrações de um capitalismo constantemente recolonizado, do sistema de repressão e terror político patrocinado pelos EUA e suas doutrinas militares, da negação da real democracia, da cultura violenta e despótica promovida pela classe dominante-governante durante seis décadas, pelo ímpeto de depredação e empobrecimento do neoliberalismo ao longo dos últimos 20 anos e da crescente intervenção de unidades militares especializadas e de bases norte-americanas e israelenses de operações em território colombiano, para tutelar guerra local de baixa e média intensidade contra as forças insurgentes e a população insatisfeita.

Isso se traduziu em fome, desigualdades escandalosas, profundas injustiças sociais e de todo tipo, abuso de poder, torturas, paramilitarismo (perversamente acolhido e mantido a partir do Estado), narcomilitarismo e narcopolítica, assassinatos a granel (incluídos os executados com motosserras, chamados “falsos positivos”), as grandes covas comuns e cemitérios clandestinos), despejos massivos e cruéis, deslocamentos massivos forçados, restrições às liberdades, delinquência de Estado e corrupção do sistema de partidos tradicional...

A insurgência armada e a rebeldia social e política não armada foram uma resposta político-social a essa realidade cruel, a essa guerra suja em tempo integral: guerra de Estado, da classe dominante, do poder imperialista e máfias associadas a essas forças.

O problema da posse e do uso de armas

As armas em poder dos e das revolucionários e revolucionárias civis das FARC-EP e do ELN não são causa dessa guerra, mas resposta forçada à violência social, econômica, cultural, política, militar e paramilitar que chega ao povo imposta de cima para baixo e usada sistematicamente como fator de submetimento, opressão e represálias.

Armas podem existir e não ser usadas, podem ser necessárias ou desnecessárias, possuem-se ou não se possuem armas, conforme as circunstâncias. Nem sempre é necessário distribuir armas no curso das lutas populares. Mas, sim, podem ser indispensáveis quando são garantia de direitos justos, de vários deles, inclusive do direito de dialogar em busca de paz.

Os/as primeiros a ter e usar armas não foram membro das forças insurgentes revolucionárias colombianas. Esses foram, isso sim, os primeiros a propor um cessar-fogo, para que se criasse clima adequado a essa segunda fase dos diálogos de paz inaugurados em Oslo-Noruega, dia 19/10/2012.

Agenda comum e intenções reveladas

Comandantes Iván Márquez e Jesús Santrich na mesa de negociações
O comandante Iván Márquez – que conheço, de quem gosto e que admiro – falando em nome da delegação das FARC-EP no ato inaugural, procurou, em sentido geral, de forma elegante e profunda ir à medula do problema, às causas profundas do conflito armado, identificar a guerra e as injustiças e desigualdades, ao modelo agrário, ao modelo mineiro, à dependência e à intervenção estrangeira, ao tipo de sociedade, ao sistema político excludente, à necessidade de mudança profunda e integral. E o fez nos termos da agenda preliminar aprovada pelas partes.

O representante do governo e do poder estabelecido na Colômbia, o ex-vice-presidente Humberto De la Calle, respondeu dizendo que “nem o modelo econômico, nem a doutrina militar nem a inversão estrangeira estão em discussão. A mesa se limitará só aos temas que estão na agenda. As ideias que as FARC queiram ventilar são suas, podem promovê-las depois de acabado o conflito e terão de fazê-lo sem armas”.

O caso é que a agenda aprovada contempla a questão agrária, a participação política, o narcotráfico, a situação das vítimas e o fim do conflito, nessa ordem e sem que em momento algum a agenda inclua ou preveja, como condição a entrega prévia e unilateral das armas das FARC-EP.

O senhor De la Calle – personagem com escassa experiência de andar por ruas das periferias – enunciou, sem querer querendo, saídas diretamente das entranhas, as intenções fundamentais de poderosos setores do oficialismo pró-imperialista ativas nesses diálogos: cercar, pressionar fortemente as FARC-EP, para que aceitem entregar unilateralmente suas armas. É o meio com que contam para continuar a apresentar o exército popular, construído pelos e pelas guerrilheiros e guerrilheiras, durante décadas de sacrifícios, como causa básica, quase única, da guerra e da violência.

De la Calle expôs imprudentemente fora de hora, tolamente precipitado, a pretensão do governo de apresentar “outras” raízes para o conflito armado, diferentes das que o comandante Iván Márquez listara; situou aquelas raízes, outra vez, no fato de haver armas em mãos de guerrilheiros: a insurgência seria causa do conflito, não consequência do conflito; já pressionando na direção de exigir a rendição das FARC; como se a paz só fosse cogitável se a guerrilha for desarmada, desmobilizada e “legalizada”, deixando intactos o sistema e seus modelos setoriais, ou modificado, só, por reformas limitadas e mudanças domésticas.

Bandeira das FARC-EP
Por tratamento especial para o tema das armas

O representante do presidente Manuel Santos, cujo governo está montado numa crise sistêmica integral e sitiado por movimento político-social (armado e não armado) em ascensão, ignorou que agora, mais que nunca na Colômbia, a palavra paz significa justiça; os acordos entre as partes implicam mudanças substanciais, e a questão das armas exige tratamento totalmente diferente do tradicional.

E isso vale igualmente para as FARC-EP e o ELN e também para o vergonhoso regime colombiano.

A ninguém deve ocorrer a ideia de que seriam tolos os guerrilheiros que lutam a guerrilha mais antiga, mais experiente e mais heroica da história moderna em todo o mundo. E confesso que, para mim, seria desconcertante, triste surpresa, que cometessem erro dessa magnitude – repetindo os erros que tanto nos custaram, do M-19, raiz da desmobilização e da deposição das armas, efeito dos acordos que deram lugar à vida legal-eleitoral da União Patriótica, do pactado na Guatemala e, inclusive do que ocorreu nesse plano, embora com consequências menos graves, em El Salvador.

Manuel Marulanda
Relembrando Marulanda

Nunca esquecerei o que me disse o camarada Manuel Marulanda durante longa, íntima conversa, quando visitei a Colômbia no início dos diálogos de paz do Caguán, quando me deu plena certeza de que os dirigentes das FARC jamais aceitariam dissolver, numa mesa de conversa, o exército popular construído com enormes sacrifícios durante mais de 40 anos. O camarada Marulanda repetiu que o exército popular é patrimônio do povo em luta e a revolução em marcha, que tinha de ser parte e garantia das mudanças a serem feitas, mesmo que sob o marco de qualquer acordo com vistas a uma etapa de paz e a uma transição democrática.

Tenho certeza de que a nova e talentosa direção dessa força insurgente continuará leal a essa concepção medular exposta por seu líder legendário, que, além de defender acertadamente o que o esforço revolucionário coletivo acumulou, rechaça categoricamente a ideia do desarmamento unilateral e de entregar o monopólio da ação militar em mãos das direitas e do bloco dominante.

O fim do atual conflito armado na Colômbia é o último ponto a ser abordado, na agenda acordada. A inclusão nessa posição indica que tratamento adequado da questão dependerá dos êxitos que se obtenham nos quesitos anteriores e que de modo algum o fim do conflito armado estaria inexoravelmente amarrado à entrega de armas por qualquer das partes, embora, sim, por definição a paz implique o fim do recurso às armas e, consequentemente, dos combates armados.

Sou dos que pensam que, nesse caso, uma paz com garantias duradouras, sem riscos graves de desequilíbrios inadmissíveis e de violações imediatas, nunca será obtida mediante a dissolução sumária dos exércitos populares, mas, sim, buscando-se formas novas, originais, de convivência e coexistência de todos no processo da transição democrática e de construção da nova institucionalidade.

As FARC e o ELN são organizações político-militares com ampla presença nacional. O militar, o político e o social que nelas se combinam são a garantia de sua existência e de sua potência duradoura, de que se cumprirá a agenda de mudanças nacionais, de que os movimentos democráticos, patrióticos e revolucionários civis serão defendidos. Se se deixassem desarmar unilateralmente, estariam, lamentavelmente, decretando seu autoextermínio progressivo e o retrocesso de qualquer avanço que se possa obter nos diálogos de paz. Esse é dado muito claro e forte da história colombiana e lição a extrair dessa fase altamente perigosa, consequência da decadência e da ainda maior agressividade do imperialismo norte-americano.

Jamais a paz foi sinônimo necessário do desarmamento de apenas um dos lados. A paz é, isso sim, sinônimo necessário de justiça, liberdade, bem-estar coletivo, fim dos conflitos armados e plena garantia de que o que for acordado agora será executado, com plena participação e sob vigilância popular. As atuais conversações de paz não podem vir a ser exceção, nessa definição de paz efetiva.



Narciso Isa Conde* é marxista. É analista político, escritor e veterano das lutas contra a ditadura de Trujillo e a invasão ianque à República Dominicana em 1965. Durante a revolução de abril de 1965, representou o Partido Comunista no comando político da revolução chefiado pelo coronel Francisco Caamaño. Em sua longa carreira política, foi preso, perseguido e exilado pelo governo de Joaquín Balaguer. Isa Conde é hoje um dos líderes do Movimento Caamañista (MC) e participa da presidência coletiva do Movimento Continental Bolivariano.

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