Setembro, 2012, Nicolás González Varela, (enviado pelo autor, por e-mail)
“Cierto negro brasileño leproso”
un sueño político-filosófico de Spinoza (cont.)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Ler
antes:
22/8/2012, redecastorphoto, Nicolás González Varela, “Certo
negro brasileiro leproso” num sonho político-filosófico de Spinoza
O sonho de Spinoza |
“Os escravos
nas colônias europeias são incapazes de levar a cabo as funções humanas normais”
(Marie-Jean-Antoine Nicolas de
Caritat, marquês de Condorcet, 1788)
“E
seguramente alguns espíritos fracos exageram muito sobre a injustiça que se faz
aos africanos”
(Barão de
Montesquieu, Do espírito das leis, V, 1748)
“Aristóteles
não se enganava quando afirmava que certo tipo de pessoas são por sua natureza
escravas”
(Hugo
Grocio, De iure praedae commentarius, VI, Quest. V, I, 1605)
“Os
benefícios que os holandeses obtêm depois de permanecer nove ou dez anos nessas
terras coloniais são maravilhosos: todos voltam ricos”
(François
Pyrard de Laval, Voyage…, 1619)
Nicolás Alberto González Varela |
Spinoza conhecia os fatos
básicos da Escravidão, tinha plena consciência da exploração econômica do
trabalho forçado nas colônias e, mesmo assim, nada disse? Se é isso, trata-se de
silêncio cúmplice, racista e repulsivo. Um mutismo teórico, só rompido no sonho
do aziago. Como dizia Schelling, “o maldito” (das Unheimliche) nomeia
tudo que devia permanecer ocultado, em segredo, e, sem embargo, veio à luz”. O
estranho sonho do truculentus negro sarnoso brasileiro
[1]
é
inquietante. Ou, como dizia Canetti, o saber tem de se manifestar; se é
ocultado, necessariamente o saber se vinga.
Esse
substrato reflete-se na ideologia holandesa e europeia da época? A filosofia
prática de Spinoza tende a autorizar a instituição da Escravidão? Encontra-se em
sua concepção política a dobra espaço-temporal que havia no real? O spinozismo faz parte da expressão do
amplo movimento de um agressivo capitalismo mercantil, mais racional e
calculador? Mas Spinoza não é o único fechado nesse sepulcral mutismo
filosófico; absolutamente não é uma anomalia.
A
indiferença que manifesta ante o fato do escravo é parte do sentido comum da
ideologia dominante, elemento fundamental da dimensão implícita. Ao usar o
jargão, seus meneios e as próprias palavras preferidas, os filósofos são
literalmente inocentes; absolutamente não suspeitam o quanto se traem eles
mesmos, ao afirmar tanto do que afirmam. Creem que quando falam de outras coisas
– motivo pelo qual tantas vezes é preciso procurar a verdade de um filósofo em
seus textos não filosóficos, nas intervenções privadas, nos escritos menores
(prólogos, proêmios, notas eruditas, esboços, manuscritos, legado literário) –
guardam algum segredo. Mas eis que, de repente, das expressões mais frequentes,
visível, claro, brutal e ameaçador, o segredo aparece.
Spinoza
oculta completamente os fatos brutais da Escravidão em toda sua obra para
divulgação [orig. obra exotérica], quer dizer: não é capaz de analisar a
contradição político-jurídica do escravo, seu não sentido. Mas utiliza todo o
léxico da instituição da Escravidão nas suas metáforas filosófico-políticas:
tanto servus (escravo macho) como ancilla (escrava fêmea) – termos
que lhe chegaram, intactos , da Lex Romana. Nem o paradoxo de que Direito
e Escravidão convivam numa mesma ideologia homogênea. Mas o segredo lhe escapa,
sob a forma de um sonho, à moda bem cartesiana.
Perplexidade semelhante à de Spinoza
repete-se na maioria das figuras da Ilustração europeia. Um silêncio indiferente
atravessa toda a oeuvre de seu mestre René Descartes ou a de outros
grandes cartesianos radicais como Nicolás Malebranche, cujos livros circulavam
normalmente e eram editados nos Países Baixos.
Aí
está uma questão fundamental: o desenvolvimento do moderno sistema colonial e o
estabelecimento do nascente estado liberal são dois fenômenos que dependem um do
outro, tanto na teoria como na prática. Um é inconcebível sem o outro; e a
gênese do capitalismo maduro está ligada a ambos.
Trataremos
de Descartes com algum detalhe, pela enorme influência, reconhecida, que teve
sobre o próprio Spinoza. Em toda a obra filosófica cartesiana não quase menções
à questão da raça, racismo ou escravidão, apesar de Descartes,
gentilhomme, nascido em família acomodada de altos funcionários reais,
educado por jesuítas ao longo da vida, ter informação abundante sobre o
Colonialismo, as missões e os viajantes jesuítas, a exploração dos nativos no
Novo Mundo [que Descartes chama de “canibais”] e do intenso tráfico de escravos.
Deve-se
considerar Descartes como o primeiro pensador ateu no que tenha a ver com a
questão política, embora a exegese acadêmica o reduza a epistemólogo, e só. A
política aparece na obra de Descartes nas entrelinhas (estratégia consciente
para evitar a censura e a perseguição) e também numa rede coerente de
intervenções, mascaradas de falsa humildade, que Descartes no considera
necessário reunir em torno de uma ideia central e não chega a constituir obra
autônoma. É um campo de reflexão que não está ausenta de sua especulação, mas
que não chega a articular-se como tal.
O
vínculo entre a filosofia de Descartes e o nascente mercantilismo, o Doux
Commerce [comércio doce], foi encontrado no antitradicionalismo e em seu
individualismo (egotisme) e racionalismo manifestos. Isso posto, não é
menos verdade que o próprio Descartes abjurou a discussão da política (a qual se
baseia na acumulação de experiência, não na Razão) como reñida com a
dimensão tanto do filósofo como do cidadão privado.
O
aparente parentesco ou vínculo entre Descartes e o primeiro Liberalismo da
Revolução Francesa localiza-se em seu radical antitradicionalismo, em seu
individualismo metodológico (cogito) e no seu racionalismo.
Por um
lado, o ataque cartesiano contra a tradição e a autoridade na esfera
intelectual, evidente em seu Discours
[2],
pode ter um
correlato no político, uma re-tradução na práxis. Por outro lado, seu
individualismo descarnado e rigoroso racionalismo servem de base para uma nova
concepção da sociedade, do governo e da ideologia. Não por acaso, Nietzsche
chama Descartes de “o avô” (Grossvater) da Grande Revolução francesa.
Mas
não é menos certo que o próprio Descartes era um absolutista de facto
(sempre afirmou a primazia do Direito divino e odiava o reformismo, apesar da
tese de Negri de que teria gerado uma “razoável ideologia” para a burguesia
nascente) e defensor do status quo político. A sedição e a desobediência
são a ruína de reinos e repúblicas. Como assinala Grimaldi sobre
Sartre:
Como
pode dizer que a liberdade é o fundamento do ser em Descartes, que nos manda
trocar antes nossos desejos que a ordem do mundo, freudiano avant
la lettre, no
qual o futuro pode ser deduzido do presente, no qual Deus nos cria a toda hora,
no qual a vontade é como a marca que “Ele” pôs em sua criatura e onde, portanto,
o ser necessário é o único fundamento de nossa liberdade? Descartes não é nenhum
democrata mascarado, nenhum arcano liberal
burguês.
Apesar do auto de fé
conservador, a obra cartesiana foi duplamente condenada: posta no Índex
de livros proibidos pela Igreja católica romana; e rechaçada em todos os Sínodos
protestantes. Da moral cartesiana se deduzem pontos de vista sobre a sociedade,
as classes e a forma estado, quer dizer: contém uma Política madura e coerente,
construída sobre o silêncio e a indiferença em torno da instituição da
Escravidão.
Primeira
regra na filosofia prática cartesiana, emanada de seu próprio relato biográfico,
é a moral par provision:
Obedecer
às leis e costumes de meu país, conservando constantemente a Religião na qual,
pela graça de Deus fui educado desde a infância, regendo-me nas restantes coisas
segundo as opiniões mais moderadas e afastadas de qualquer excesso, que fossem
aceitas comumente na prática pelas pessoas mais sensatas com as quais tivera de
conviver.
Será
a única vez que Descartes falará de formas de governo numa obra para o público,
no Discours, fazendo um paralelismo (tenso, contraditório) entre
Metafísica e Política. Contraditório? A Política cartesiana baseia-se num
gigantesco e inevitável mal-entendido: a Filosofia define-se por uma vontade
constante e tenaz de seguir os conselhos da Razão; a Política, que é a
resultante dos costumes, pela experiência e a verdade da opinião, caracteriza-se
pela constante queda e atração pelas paixões e pelo sem-razão. Se de algum modo
pode ser chamada de científica, a Política é mera ciência prudencial, arte do
possível. A Filosofia, sob pena de perecer pela intolerância, exige o
conformismo, a hipocrisia e o cinismo. Antes que criticar ou empurrar a Política
na direção da reforma ou da mudança, o filósofo deve adaptar-se ao justo meio
termo, ao polo mais moderado do leque político, abster-se de atuar, dado que a
sociedade civil é sempre, por definição, não racional.
A
palavra-mestre de Descartes em Política, como em Filosofia – e nisso coincide
com Spinoza é - faire son compte sur le pied des choses presentes -
considerar todas as coisas com os pés bem firmados no presente. A Razão exige a
acomodação da Filosofia prática à não razão do mundo social e político. Em
Descartes, existe uma dimensão de Grande Politique, como o equivalente do
conceito nietzscheano de Gross Politik, que consiste na indiferença pelas
formas políticas, e cuja meta final é a geração de melhores condições de vida
para o gênero humano (melhorias na saúde pública, multiplicação das comodidades
cotidianas, substituição do trabalho físico e esgotador, por forças produtivas
mecânicas).
Deve-se
assinalar também que, nas suas meditações políticas, há poucas citações
importantes e os autores são raros: o absolutista Jean Bodin (a quem Descartes
chama de “o novo Aristóteles político”), os Essais – Ensaios - de Montaigne, os
tratados do filósofo cético e libertino François de La Mothe Le Vayer (codinome de
Orosius Tubero, preceptor de Louis XIV, a quem Descartes chama de “o Plutarco do
século 17” ), e alguns autores
latinos.
Em agudo contraste com Spinoza,
Descartes não utiliza referências bíblicas: sua reflexão política é absolutista,
mas ateia e radicalmente laica. E não o oculta: como seu Discurso do Método
Científico, sua filosofia prática e sua Ética então no pólo antípoda do pólo
teológico, mas, ao mesmo tempo, próximas de uma espécie de moral aristocrática.
Descartes é o autêntico pai da Tolérance e do estado laico, já que a
diversidade e a paz social são os fundamentos de um estado estável,
em
contraposição ao Leviathan de Hobbes que leva a marca da
cruz. Descartes era conservador a ponto de derivar em reacionário, quase, no
limite, um Filmus ou um Bossuet.
No Discours assinala que “o estado da verdadeira Religião - l’état dela vraie Religion - cujas
ordenações foram feitas por Deus, deve estar incomparavelmente mais bem acertado
que os demais” e, diferente de Maquiavel e seu “espelho de príncipes”, não
acreditava que fora do círculo imediato do Poder fossem capazes de compreender o
tipo de forma estado ou, inclusive, que estivessem qualificados para julgar a
sabedoria da Política. O filósofo nada tem a ensinar politicamente a um Príncipe
ou a um Regente: “seria ridículo se pensasse que pudesse ensinar algo a Sua
Alteza, em Política” – confessa à princesa Elizabeth. Adiante, no mesmo
Discours, Descartes deixa claro que “aqueles povos que foram em outro
tempo semisselvagens e foram-se civilizando aos poucos, estabelecendo leis à
medida que a isso eram obrigados pelo mal-estar causado pelos delitos e
querelas, não podem estar tão bem constituídos como os que observaram as
constituições de um prudente Legislador (Legislateur)”.
No Discours assinala que “o estado da verdadeira Religião - l’état de
Para
Descartes, o equivalente a uma Metafísica racional, clara e evidente em
filosofia prática, na política, aproximava-se quando a Europa tendia na direção
do modelo eterno de Esparta, e a encarnar a figura absolutista de seu legislador
mais famoso, Licurgo: “creio que se Esparta (Sparte) foi tão florescente
(floriffante), não foi pela bondade de cada uma de suas leis em
particular – pois muitas eram muito estranhas e até contrárias aos bons costumes
– mas, sim, por serem leis concebidas por um homem só e, assim, tendiam todas ao
mesmo fim”.
Se
há melhoria geral e objetiva do Esprit humano, não importam tanto os
custos finais e prometêicos (povos escravizados) do progresso. Não há por que se
assustar: Montaigne, acompanhando nisso a opinião cartesiana, qualificará como
“um prodígio” o espartano Licurgo (como Platão).
Descartes
também valoriza a forma “Estado”, como o farão Spinoza e Nietzsche, sua
estabilidade, duração, permanência e longevidade, embora o preço seja o
colonialismo, a militarização e o trabalho forçado. Mas é sintomático que a
utopia cartesiana autocrática de Esparta e o absolutismo ditatorial de Licurgo
sejam um violento Estado escravista – o primeiro estado racial ocidental, que se
apoiava na pavorosa servidão dos ilotas – e que esse traço não surja, ante seu
método, como algo contraditório, confuso ou sem
fundamento.
A
unipersonalidade é a chave da soberania, e a unidade da soberania o punctum
saliens da forma do estado ideal; e Descartes não vacila ao afirmar que “só
os Soberanos (Souverains), ou as pessoas autorizadas por eles, têm o
direito de ocupar-se com a regulação da Moral das gentes.” Revolução, rebelião,
sedição, revoltas? Nada disso. Reformas? Descartes deixa bem claro
que:
...não
é razoável que um particular tente reformar um Estado (reformer
un État)
mudando tudo nele, desde os fundamentos, e derrubando-o para depois reerguê-lo
(...) Esses grandes corpos políticos são difíceis de levantar quando tenham
caído e de sustentar quando vacilam, e suas quedas são necessariamente muito
duras. E quanto às imperfeições, se as têm (...) o uso suavizou-as bastante
(...) mas tais imperfeições são quase sempre mais suportáveis que mudá-las
(...)
para
arrematar afirmando que:
...não
posso de modo algum aprovar a conduta de homens de caráter inquieto e confuso
que, sem terem sido chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna ao manejo dos
negócios públicos (affaires
publiques),
nunca deixam de fazer, na mente, alguma nova
reforma.
Esse
raciocínio político cartesiano vale para o tema do racismo e da
escravidão
Esse raciocínio político
cartesiano vale para o tema do racismo e da escravidão, essas
imperféctions dos grandes corpos políticos europeus. A figura
fantasmagórica do Esclave como antítese do homem racional e livre,
contudo, aparece como a encarnação da falsidade e das boas ilusões. O uso de uma
palavra num enunciado é sempre uma instância daquela palavra. Nas suas
Méditations metaphysiques, obra que Spinoza tinha em sua biblioteca
pessoal, Descartes assinala que a tarefa de evitar a falsidade não é fácil de
cumprir, é árdua, penosa, semelhante à “do escravo que goza em sonhos de uma
Liberdade imaginária, enquanto começa a suspeitar que sua liberdade não passa de
sonho, tem medo de acordar e conspira com essas gratas ilusões para gozar por
mais tempo do próprio engano (...)”.
O
piedoso pensador cartesiano tem como antinomia, léxica mas também ontológica, o
Esclave, essa “coisa animada” (Aristóteles), que desafia, sem
possibilidade de síntese, o cogito ergo sum.
Toda
a antropologia cartesiana está fundada sobre uma distinção ontológica “entre as
almas maiores e as que são baixas e vulgares” – quer dizer, entre as que são
naturalmente fortes e as que são naturalmente fracas. Alguns homens podem,
assim, ser “menos” homens que outros; e outros, ao contrário, podem ser mais
generosos que outros e, porque são capazes de querer a infinitude da própria
vontade, podem até exercê-la absolutamente. São homens livres no sentido amplo
do termo. A igualdade formal no bon sens ou na Razão não exclui a
desigualdade dos espíritos, como se deduz no Discours.
Em
Descartes há uma natureza individual constituída e que marca nosso destino. Ou
seja: há poucos homens absolutamente não humanos, excluídos do Cogito,
sub-homens. São poucos, mas, cartesianamente, existem.
O
que é essa coisa que não duvida, pensa ou sente, e não pode querer, rejeitar,
negar ou imaginar? Se Descartes fala explicitamente da figura de um
Esclave, seguindo suas próprias Meditations, é porque essa coisa
que aflora na linguagem é concebida com “perfeita clareza”, com “clareza e
distinção”. Não violaria sua própria vontade e entendimento, já que Descartes
obrigou-se a tomar como tal as coisas que “o Entendimento apresenta como claras
e distintas (clairement et distinctement)”: o Esclave é algo
cartesianamente real e positivo; e, como corolário, o Esclave como coisa
que tem, necessariamente, de ter sido criada por Deus. E sendo o escravo uma
coisa – já veremos que tipo de coisa – que conheço com clareza e distinção, é
verdadeiro.
Se
a essência do homem livre cartesiano é ser une chose qui pense (“uma
coisa que pensa”), quer dizer, substância cuja natureza toda consiste em
“pensar” – penser - não meramente extensa, minha união ao meu corpo, diz
Descartes que “esse Eu (quer dizer: minha Alma, pela qual sou o que sou) é
inteiramente distinta de meu corpo e pode existir sem ele”. Há a plena
possibilidade de um corpo servil, inerte, ontologicamente diminuído, coisa que
não pensa, que se pode desagregar, desmembrar, na qual a mutilação só faz
engrandecer essa alma (ame). Uma Alma que já não carece de sentidos.
Uma
vez que se estabeleça quem é o homem racional e livre, pode-se determinar quem/o
quê não o é; pode-se reificar o outro, fazê-lo um Sub-homem (Untermensch)
manipulável. A metódica e metafórica despossessão cartesiana proclamada
converte-se, assim, na base para a expropriação literal e para o desinvestimento
necessário para converter homem em coisa, como um animal ou um objeto
manufaturado. De fato, Descartes surpreende-se ao ver que as faculdades do
Moi de mover-se livremente, de sentir e pensar, “encontram-se em alguns
corpos”. Em alguns; não em todos. Há corpos “sub-rogados”, inferiores na própria
estrutura ontológica.
“Quatro
corpos escravos”
A tradição ocidental recolhe
essa concepção: a palavra grega soma, funcionava na Antiguidade como
sinônimo de ho doulos, escravo; no rol de propriedades, nos requerimentos
de heranças, frequentemente os escravos são listados como “corpos”. Por exemplo:
como parte da solução de uma disputa por herança no Egito, no ano 47 dC, três
filhos fazem acordo para dividir o patrimônio constituído de, literalmente
“quatro corpos escravos”, ta doulika Somata.
No
documento, declara-se que os irmãos recebem corpos femininos como parte da
herança; que também herdam a descendência potencial dos escravos, como o
demonstra o uso generalizado das mulheres escravas como meio de cria para novas
gerações de bens humanos semoventes. Essa semântica racista manteve-se intacta
ao longo do primeiro cristianismo. E o autêntico cogito é definido como
“Uma coisa que pensa”, res cogitans. O que é uma coisa que pensa? É uma
coisa que duvida, concebe, afirma, nega, quer, não quer, imagina também, e que
sente”.
O
que é, então, essa coisa que não pensa, não sente, não pode querer, rejeitar,
negar ou imaginar? São os restos recuperados do que Descartes descartou de
início, no descarte metodológico radical: “peças das Índias”, “madeira de
ébano”, “quadros e pinturas”, “bárbaros e selvagens”, “chineses e canibais”,
“corpos” prontos a serem comprados, trocados, vendidos, no mesmo nível da besta,
bête, brutum, cabeças de gado, moedas, terrenos ou utensílios
domésticos.
Invertendo
o axioma: Non cogitant, ergo non sunt.
Se se inverte o axioma, tem-se
que Non cogitant, ergo non sunt. Como os escravos são interpretados como
um tipo especial de propriedade, mas essencialmente uma res extensa,
nenhum tipo de amputação, exploração, tortura ou desfiguração faz qualquer
diferença; e salva-se o ius in re [direito sobre a coisa], sem qualquer
controle, sobre o soma.
Não
por acaso, os primeiros aborígenes avistados no Brasil foram catalogados como
animais com aparência humana, bêtes irrasonables.
A
unanimidade etnocentrista era geral, tanto de católicos como de protestantes.
Descartes faz a experiência consigo mesmo, para estabelecer a ideia clara e
distinta de um sujeito universal branco dominante; simultaneamente, fazia um
experimento legal coletivo que produzia não pessoas no Novo Mundo.
As
regras para controlar negros e escravos, essas “máquinas de osso e carne” -
machine composée d’os et de chair - nas colônias, dependia da estratégia
do Iluminismo, para construir uma genealogia da ascendência dos autênticos
humanos, teológica e eminentemente poligenésica – e de uma fantasia da
reificação.
Poligenismo
é uma teoria das origens do homem que postula a existência de diferentes
linhagens para as raças humanas. Alguns de seus defensores derivam seus
postulados de bases científicas, outros, de bases pseudocientíficas ou
religiosas. Alguns mitos da criação de diversas culturas mostram narrativas
interpretáveis como explicação poligenista da origem do homem. A interpretação
poligenista da Bíblia é exegese pouco comum, que até meados do século 19 foi
considerada herética.
Simultaneamente,
“o europeu” se autoconverteu em sujeito de reflexão e análise
A comoção que causou na Europa o
descobrimento de que na América havia pessoas sem qualquer tipo de sentimento
religioso positivo, salvo o consagrado a alguma forma de religião puramente
natural, fraturou uma fissura que havia na ideologia europeia. A resposta foi
recorrer a um processo de relativização e, simultaneamente, “o europeu” se
autoconverteu em sujeito de reflexão e análise.
As
notícias etnográficas que chegavam do Novo Mundo geraram violentas polêmicas,
com um pathos anticristão, que se orientavam em duas direções: uma contra
a concepção “mosaica” da monogênese da Humanidade a partir de Adão; a outra
contra a própria cronologia universal da Bíblia (de Santo Agostinho,
em especial).
Paradoxalmente contudo, a poligenesia podia ser usada
precisamente para “salvar” a Teologia étnica, como veremos, por mais que muitos
defensores fossem ateus ou deístas.
O
primeiro a defender a poligenesia, aplicada aos índios americanos recém
descobertos pelos europeus foi o famoso cientista-alquimista Theophrastus
Bombastus von Hohenheim, mais conhecido como Paracelso, “pai” da medicina
moderna, em seu
livro Astronomia magna de 1536-1537, mas
aparecido em 1571. Ali, num contexto secundário em relação ao argumento central
cosmológico-teológico, Paracelso dizia que
...todos
descendemos de Adão. E não posso deixar de fazer breve menção aos que foram
encontrados em ilhas escondidas [sobre os quais] ainda se conhece pouco. É
difícil imaginar que se acredite que descendam de Adão, como é difícil pensar
que os filhos de Adão teriam ido àquelas ilhas perdidas. Mas também se deve
considerar se podem descender de outro Adão. É difícil defender que estejam
relacionadas na mesma base da mesma carne e osso.
Os
índios americanos e os negros teriam nascido antes do Dilúvio Universal – e
portanto não têm alma – como Giordano Bruno declara, em aberta posição
libertina. Bruno nomeia especificamente os negros etíopes (Nigra
Aethiopum) – o assustador fantasma do sonho de Spinoza – e conclui que é
impossível que descendam do mesmo progenitor comum do qual evoluíram os
europeus. Os habitantes da África e da América não são “outros seres humanos”:
são subespécies, Untermenschen, subpessoas, mais aparentados com os
personagens que se criavam na cova de Netuno, como gnomos, ninfas, salamandras,
sílfides, sereias e tritões, que conosco, humanos europeus descendentes de Adão
e Noé.
A
conclusão positiva foi o desenvolvimento de uma Cosmologia naturalista, já não
teológica, que abriria o campo para o ateísmo científico na Europa.
O outro momento da maturação da
teoria poliginésica deve-se a um pensador libertino italiano, o execrável doutor
Giulio Cesare Vanini [1585-1619], tragicamente executado em 1619 e autor citado
por Descartes (em cartas pessoais); por Leibniz; e que Spinoza com certeza
conhecia, porque seus escritos circulavam em cópias privadas nos ambientes
cartesianos. Não por acaso, uma das obras de Vanini é ambientada na liberal
Amsterdam e seu diálogo e personagens giram em torno de um ateu, Alexander,
mescla reconhecível de dois heróis laicos holandeses: Rijswijck e Van den Enden.
O primeiro foi condenado por heresia e queimado na fogueira; o segundo,
libertino e “lucianista”, negava que Cristo fosse filho de Deus e que Moisés
tivesse recebido alguma lei das mãos de algum Deus.
A
filosofia prática de Spinoza tem muito em comum com Vanini , com o qual
também partilha o pathos antiutópico, como seu mestre Descartes. E tem
muito também da teoria poliginésica das raças, de Vanini. Vanini defendia que os
africanos, novamente exemplificados na figura dos etíopes (Aethiopes),
não descendiam de Adão e Noé, mas de raça mais antiga, de menor grau ontológico,
que em algum momento andara sobre quatro patas e que descendia diretamente dos
macacos (ex simiarum genere).
O
nome de Spinoza estava a tal ponto aproximado de Vanini que, durante muito
tempo, circulou um texto apócrifo – El espíritu del señor Benedicto de
Spinosa o Tratado de los tres impostores - o livro herético mais polêmico do
século 17, no qual se desenvolvem, dentre outros argumentos libertinos, fórmulas
extraídas do livro de Vanini De anfiteatrum…, mas atribuídas a Spinoza.
Evidência de que, para muitos, os conteúdos e o estilo de Vanini podiam passar
por spinozianos e vice-versa.
Depois
da horrenda execução de Vanini e de seu sacrifício literário (em 1623 seus
livros foram incluídos no Índex de livros proibidos pelo Vaticano), já
praticamente ninguém, no século 17, estava disposto a aceitar, publicamente, de
modo claro e explícito, a teoria pré-adâmica ou qualquer outra forma de
poligenesia. Não por acaso, no ataque dos calvinistas contra Descartes na
Holanda, o argumento central da acusação foi que Descartes seria “um segundo
Vanini”.
De
Isaac La Peyrère... até Marx
Depois de Vanini, outro pensador
libertino francês, Isaac La Peyrère [Pererius, 1596-1676), tentou ainda
reconciliar o número pequeno de gerações de Adão e Eva até o presente,
postulando a existência de humanos “pré-adamitas”.
O
enfant terrible La Peyrère, huguenote, cuja principal obra era conhecida
de Spinoza, que a tinha em sua biblioteca pessoal, embora hoje ensombrecido
pelas figuras de Descartes e Spinoza, foi, em sua época, considerado pensador de
categoria igual ou superior a ambos. Foi até comparado a Copérnico, chamado o
“Galileu dos exegetas da Bíblia”. Numa deriva ideológica curiosa, La Peyrère,
por sua vez, havia sido muito influenciado por Paracelso e, em Paris, participou
do círculo de Gassendi, Grocio, Hobbes, La Mothe Le Vayer e Mersenne.
Há
mais um dado biográfico importante: La Peyrère viveu durante muito tempo na
república holandesa entre 1654 e 1655, e, durante seis meses, viveu em Amsterdam
– onde se encontrou pessoalmente com um de seus grandes admiradores, Menasseh
ben Israel, professor de Spinoza. E, para encerrar essas afinidades eletivas, La
Peyrère descendia de judeus “marranos” portugueses que emigraram para a França.
É pensador importante no nascimento da moderna hermenêutica e crítica exegética
da Bíblia, com clara orientação política, antecipando-se a Spinoza (que repete
argumentos dele no Tractatus theologicus politicus) a aos jovens
hegelianos, entre os quais Strauss, Bauer e Marx.
O
messianismo dos judeus europeus
Em Prae-Adamitae
[publicada em latim em 1655 e em inglês, como Men Before Adam em 1656] e
obra muito influente em
toda a Europa , La Peyrère trata de resolver as dificuldades de
interpretação dos versículos 12-14 do capítulo V da “Epístola aos Romanos”, que
propõe precisamente a hipótese da existência de pessoas que viveram antes de
Adão, como única explicação plausível para o argumento de Paulo, segundo o qual
aquelas pessoas não teriam pecado original semelhante ao de Adão. Propunha-se
assim a resolver o problema da origem da espécie humana, as leis e a relação
entre a lei natural e a lei humana, e a coexistência, depois do descobrimento do
Novo Mundo; e utilizando material etnográfico da China, Egito, Groenlândia,
Islândia e Israel.
La
Peyrère estava convencido de que sua interpretação era a que mais bem se aderia
aos ditos bíblicos e a mais capaz de esclarecer o pensamento do Apóstolo e toda
a história do Gênese, conciliando não só o Paganismo mas também a moderna
Astronomia, com mitos e filosofias dos povos mais antigos: chineses, egípcios e
caldeus. A Bíblia não seria a História de toda a Humanidade, de modo algum.
Teria havido épocas ainda ignoradas, um Estado de Natureza anterior cronológica
e ontologicamente à religião; Adão não fora o primeiro humano.
E
daí se desenvolveriam conclusões fundamentais no plano biogeográfico e no plano
ético – além de conclusões messiânicas para os judeus europeus.
O
racismo moderno
A Bíblia não valia para todos:
valia exclusivamente para um povo específico e limitado: os judeus. Adão não era
o primeiro homem, mas o primeiro hebreu. Essa lição foi aprendida por Spinoza.
Muitos de seus críticos já observaram que Spinoza repetia todas as argumentações
contra a autoridade de Moisés que La Peyrère escrevera. As Escrituras não
explicavam de modo algum a origem e a genealogia de toda a humanidade.
Claro:
o livro de La Peyrère foi imediatamente proibido nas Províncias Unidas. Embora
suas premissas fossem libertinas, esses argumentos poligenesistas alimentaram
argumentalmente muitos preconceitos inconscientes do racismo
moderno.
As
implicações não religiosas eram significativas demais para a teoria
poliginesista, que com certeza foi tida como acertada muito antes do
amadurecimento científico moderno do Iluminismo. Suas teorias eram muito
intuitivas, falíveis, ad hoc. Seu valor explicativo teria grandes
consequências num esquema evolucionista científico. Mas perigo muito maior era,
talvez, o perigo de as mesmas teorias serem exploradas em sentido classista e
racista.
No
contexto holandês da época, combateram-se igualmente os cartesianos e os
teóricos pré-adamistas: todos foram rotulados de ateus, libertinos,
materialistas e blasfemos. Um deles foi Spinoza, que era visto não só como
suspeito de cartesianismo radical mas, também, como pensador que aceitava a
teoria poligenesista das raças – o que se vê exposto tanto no léxico como na
retórica no Tractatus theologicus politicus.
“Deus
deu a Moisés as leis do estado hebreu” (Spinoza)
No Tractatus, Spinoza
afirma categoricamente que “as leis reveladas por Deus a Moisés não foram outra
coisa que o Direito específico do Estado hebreu (Hebraeorum imperii) e
que, portanto, nenhum outro estado tinha alguma obrigação de aceitá-las”.
Assinala também que a história de Adão é uma parábola (parabolice), ou,
pior, um emaranhado de enigmas (aenigmatice), ou “simples narrativa”
(simplicem narrationem). No que envolva a lei mosaica, Spinoza segue a
trilha dos libertinos: os conteúdos do Antigo Testamento, como todas as leis de
Moisés “a ninguém interessavam saldo ao Estado dos hebreus”. E que “o Decálogo
(os dez mandamentos) foi lei que só dizia respeito aos hebreus”.
No
capítulo IX, Spinoza volta a afirmar que a cronologia bíblica é errônea,
fantasiosa, e que é muito evidente “que não podemos chegar a um cálculo real dos
anos acontecidos na História Universal, e que, além disso, muitos relatos sobre
o mesmo tema são incompatíveis entre eles”.
Num
parágrafo polêmico, pouco antes dos acima citados, Spinoza assinala que o dom de
raciocinar é patrimônio de todo o gênero humano, não só do povo hebreu, porque,
se assim não fosse, ter-se-ia de especular que “a Natureza teria engendrado
desde antigamente diversos gêneros de homens (diversa hominum)”. Aqui se
pode entender que Spinoza considera que a Razão é definição do humano, sua
differentia specifica, e humano é o que pode “entender as coisas por suas
causas primeiras”. Nesse ponto, seu critério ontológico é plenamente cartesiano.
Por mais que se possa supor a existência de múltiplas raças humanoides,
subumanas ou inferiores ontologicamente (africanos, índios americanos, etc.),
elas não podem ser satisfatoriamente consideradas parte do hominum, posto
que não reúnem todas as condições mínimas para ser um cogito.
Spinoza
não rejeita os “paralogismos dos ateístas” (Leibniz). Não há diversos gêneros de
hominum, mas de raças e subespécies pré-adamicas. Assim, sem o dizer,
Spinoza introduz nas entrelinhas a discussão poligenesista. Qualquer leitor
culto (ao qual se dirigia o Tractatus theologicus politicus, e já
falaremos de sua estratégia político-retórica) adivinharia que aí se fala de
Paracelso, Bruno, Vanini e La Peyrère.
O
ignominioso Code Noir
À guisa de fim de capítulo, o
Cartesianismo como École viu-se envolvido também na procriação de uma
monstruosidade jurídico-literária: o ignominioso Code Noir(Recueil
d'édits, déclarations et arrêts concernant les esclaves nègres de l'Amérique
[3]),
promulgado em 1685, durante o reinado de Luiz XIV, e que muitos especialistas
consideram como o texto mais monstruoso da Modernidade, inspiração do famoso
ministro Jean-Baptiste Colbert.
Colbert,
racionalista obsessivo e defensor do Mercantilismo, é uma das estrelas
literárias na famosa Enciclopédie dos iluministas franceses. O
colonialismo (e o comércio de escravos) era parte essencial do esquema colbertiano, na linha mercantilista da
Republique des Marchands (República dos Mercadores) e do Contrato
Colonial. A base operativa era calcada dos holandeses: companhias comerciais
privilegiadas, multinacionais e autônomas, das quais a mais afamada é a
Companhia das Índias Ocidentais, impulsionadas diretamente pelo Estado
absolutista. Como na ideologia holandesa, a França repetiu a dupla dimensão
espaço-temporal-moral, tanto na prática como na teoria.
O
Code Noir responde ao inventar, por configuração racional, o escravo –
cujos únicos direitos e deveres (além da libertação terrivelmente ambígua da
Alma no batismo e a proibição de serem protestantes) são os que cabem na
sociedade europeia às bestas (algumas) e aos objetos. O Código Negro foi vigente
durante 163 anos. Regulava, em 60 artigos, todas as relações do comércio e
exploração de escravos nas colônias francesas e na metrópole.
É
texto racionalista plenamente cartesiano in extremis, um escrito
filosófico iluminista, no qual o escravo é legalmente definido como
marchandise, uma mercadoria a mais, transmissível e negociável.
Tecnicamente, o escravo é uma Não Pessoa, não dotado de ser (cogito),
quer dizer, objeto exterior que, pela via da propriedade, satisfazia
necessidades humanos fossem do tipo que fossem. Assim definido, o escravo podia
ser qualificado, pela utilidade, também pelo valor de uso.
No
artigo 44, por exemplo, lê-se que “les esclaves etre meubles, et comme tels
entrer dans la communauté...” [os escravos são considerados bens móveis e,
como tais, são parte da Comunidade].
A
linguagem e a retórica do texto fazem dele uma filosofia prática da
desnaturalização, operação que tem visível alma cartesiana, sucessora em linha
direta de Meditations e do Discours, que assenta os fundamentos da
exploração do sub-homem, não ilustrado, não iluminado, não cogitado, mediante a
intervenção racional do homem ilustrado europeu. Esse sub-homem é uma peça de
mobiliário? Uma coisa que pensa, com corpo mas sem possibilidade de praticar a
dúvida metódica?
Depois
de definido o homo rationalis, o escravo pode então ser definido em
termos do que não-é, como um animal ou um objeto.
[Continua]
Notas
dos tradutores
[1]
Ver:
22/8/2012, Nicolás González Varela
em: “Certo
negro brasileiro leproso” num sonho político-filosófico de Spinoza.
[2]
DESCARTES, René, 1637, “Discurso sobre a origem do
método” (em
português).
[3] Le Code Noir primeira versão completa (em francês).
[3] Le Code Noir primeira versão completa (em francês).
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